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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 2

Um fim-de-semana fora da cidade deixaria os amigos distantes de olhares curiosos e de interferências indesejadas. Joe parecia querer manter as expectativas baixas, mas no fundo sabia que era-lhe praticamente impossível. Ela vinha sendo adorável naqueles dias e era-lhe difícil mostrar indiferença ou pouco interesse, apesar dos esforços em parecer casual. Já começava a perceber uma sensação conhecida invadir-lhe a alma. As borboletas que esvoaçavam em seu estômago eram apenas um prémio extra – uma compensação.

Como era a primeira vez que teriam dois dias completos somente para eles, saíram cedo, antes de o sol nascer. Não tinham de ir muito longe, mas não conseguiam controlar a ansiedade. Desejavam aproveitar tudo que aqueles dias pudessem lhes oferecer e os momentos que passariam juntos. O sol começava a tingir o céu em tons de vermelho e alaranjado quando eles chegaram ao lago – uma visão de encher os olhos, a aquecer-lhes a alma, apesar do ar frio da manhã.

 O tempo não parou. Passou rápido demais, na verdade. Eles estiveram unidos, mais que apenas fisicamente, por um laço que parecia inquebrável. A jovem mulher sentia-se especial nos braços do amante. Joe deixava-se perder no olhar cristalino e no corpo deliciosamente morno e esbelto dela. Por alguns momentos a vida pareceu assustadoramente perfeita…

Já de volta à cidade, no domingo à noite, decidiram parar no Café, para fechar o fim-de-semana da maneira mais perfeita possível, na concepção deles. Estavam ambos com o astral alto, rindo com espontaneidade e sem vontade de esconder quão bem se sentiam naquele momento. Não perceberam o par de olhos que os vigiava ao entrarem e sentarem no lugar usual. Ela fez um sinal ao rapaz do balcão, para que tocasse sua música favorita. Ele sorriu, diante da subtileza do gesto, quando os primeiros acordes da canção começaram a preencher o ar do Café.

A voz levemente rouca e sedosa da vocalista repetia: …”let me do the ‘B’ part, please… oh! Please”…* (Hess is More - Yes, Boss)

Joe pensava que talvez fosse, mesmo, tempo de passar para uma fase mais adiante no relacionamento deles e olhou-a directa e profundamente nos olhos. Ela não conseguiu deixar de enrubescer, ante o olhar magnético dele e estendeu-lhe a mão, nervosamente, enquanto um arrepio lhe passava pela coluna. A sensação era estranha e não combinou com o momento, mas ela deixou-a passar.

Aquele homem observava-os, com cuidado de não ser notado, por detrás do copo de água tónica, temperado com rodelas de limão. Levantou-se, foi até o caixa e pagou a conta, saindo logo em seguida. Os dois amigos estavam fechando a conta com a garçonete, quando ele cruzou a porta e mergulhou na rua escura.

Lá fora, o ar frio da noite de Outono obrigou-o a levantar a gola do casaco. Conhecia-lhes os hábitos suficientemente bem para saber que caminho tomariam. Embrenhou-se no beco e esperou. Sabia que se separariam quase que imediatamente após chegarem perto de onde espreitava. O jogo corpo a corpo seria mais fácil quando a vítima fosse pega de surpresa, pois não teria tanto tempo de reagir ou de se defender. Ele sentia-se como um predador. Assim como os animais, estudara os hábitos de sua presa e sabia qual a melhor estratégia de ataque, para ser mais eficiente.

A hora chegava devagar, mas ele não tinha pressa nenhuma. Saboreava os segundos que antecediam o ataque, sentindo um crescendo de emoções. Quase já nem precisava pensar. Era uma máquina que atingia o momento certo de operar – no ponto da melhor eficiência. O botão de partida havia sido accionado. Era chegada a sua grande oportunidade. Pobre vítima…

***

Joe caminhava sozinho, com seus passos ligeiros. Acabara de se despedir da amiga e sentia-se satisfeito e um pouco ansioso, até. Desta vez, queria que fosse diferente. Seguia pelo caminho que fazia automática e rotineiramente. Não precisava pensar muito, para chegar em casa - bastava seguir seus pés. Seus pensamentos estavam, na realidade, em outro lugar, em outra situação. Ele sorria, quase que secretamente. Era evidente que sua mente estava bem distante dali. Seus pensamentos iam soltos, carregados pelo vento da noite.

***

A jovem mulher seguia a rota conhecida, rumo ao seu apartamento. Seus pés moviam-se leves por sobre as pedras duras e frias das calçadas. Naquela noite pareceu-lhe que podia ser feliz. Apesar de sempre ter sido cautelosa em seus relacionamentos anteriores, a vida parecia que lhe dava novas chances, que ela valorizava, agora, de uma maneira peculiar. O homem com quem passara o fim-de-semana era especial e ímpar. Ela experimentava uma sensação distinta. Sentia-se, depois de muito tempo, amada. Era como se aquela menina, que lutava por sobreviver em seu peito - depois de sufocada por algum tempo - rejuvenescesse.

***

O vento soprava as folhas secas pela ruela semi-iluminada do beco. Quando passou pela face mais escura, não percebeu que estava sendo vigiado. Não percebeu um homem de casaco cinza se aproximar por trás de si. Não conseguiu reagir ao ser puxado pelo ombro com violência estudada. Não viu que a caneta em seu bolso fora arrancada com precisão e, num golpe certeiro, a tampa removida e a ponta de Irídio transformada em arma letal, cravada em sua jugular.

Só percebeu mesmo, antes de cair, que o homem sorriu e disse, com um certo sarcasmo na voz grave e rouca: “Adeus, Joe Hardy… Nos vemos no inferno”.

Sentiu um frio na coluna e uma sensação estranha de enfraquecimento, enquanto o sangue fluía solto de seu pescoço. Colocou a mão sobre o ferimento, mas a luz apagou-se muito rapidamente, enquanto ele caía sobre as pedras frias do calçamento, com uma expressão de assombro estampada no rosto... E não sentiu mais nenhuma dor.

***

Uma ambulância passou em alta velocidade, com as sirenes ligadas, profanando o quase silêncio da noite fresca. Ela sentiu um desconforto no peito. Uma angústia passou-lhe pela alma, o que lhe pareceu estranho, pois estava se sentindo animada, depois do fim-de-semana que passaram juntos. Mas ela confiava na sua intuição. Algo não estava certo…

Para desfazer-se da má impressão e do desconforto que instalou-se em seu peito, resolveu voltar atrás e seguir na direcção da casa de Joe. Precisava ter certeza que tudo estava bem e queria partilhar seu receio com o amigo. Precisava ter convicção que era apenas uma má impressão, nada mais que isso….

Ao reaproximar-se do Café, uma fisgada de dor atingiu-lhe em cheio, como se fosse ferida pela ponta duma lança envenenada. Ela olhou para a parte escura do beco e viu um corpo de homem caído na penumbra. A princípio achou que era um bêbado, mas seus olhos perceberam algo mais. A roupa do homem caído era-lhe familiar...

Não teve dúvida nenhuma ao correr na direcção do homem caído no chão de pedra suja, já puxando do bolso o telefone e sentindo lágrimas de dor brotarem descontroladamente de seus olhos. Mal conseguiu digitar o número da emergência, com seus dedos trémulos e clamar por socorro.

Ajoelhou-se junto ao amigo e, ao virar o corpo, viu um bilhete escrito a sangue, saindo do bolso da camisa do amigo já inconsciente. Abraçou-o, desesperada e, na sua impotência em reparar a situação irremediável, enterrou o rosto no ombro do homem ferido e chorou copiosamente, sem sentir vergonha nenhuma de ser vista naquela posição. Mal percebeu a pequena chave, saindo para fora do bolso da camisa, pendurada num cordão pardo, daqueles que se usa atado ao pescoço…

***

O homem de casaco cinza escuro afastou-se do beco, sentindo uma espécie de onda de calor, já conhecida, percorrer-lhe o corpo. Sirenes, ao longe, anunciavam a vinda da ambulância ao local e pessoas começavam a olhar, curiosas. Seguiu, sem pressa, com naturalidade e sem olhar para trás, para não levantar suspeitas.

Havia-se livrado de um ‘serial killer’ ordinário e sentimental, porém extremamente prudente, que investigava por longo tempo. Muitas mulheres haviam sido suas presas, após serem envolvidas em uma cuidadosa artimanha afectiva. Sua mente era perversa e paciente. Fazia suas - por assim dizer - vítimas, se apaixonarem por ele e depois de muito envolvidas sentimentalmente, escolher um souvenir de cada uma delas, para ser a arma do crime. Após o acto haver sido consumado, o algoz guardava os pequenos objectos, cuidadosamente, ainda manchados do sangue de suas amantes. Sabia-se, também, que as mortes aconteciam durante o acto sexual. Talvez por piedade ou algum sentimento menos pérfido, porém, não parecia haver vestígios de tortura.

O que fazia um homem se envolver com aquelas mulheres e depois matá-las da forma que ele fazia? Seria o assassino movido por algum delírio ou por um surto de esquizofrenia? Porque guardava lembranças de suas vítimas, como se quisesse recordar dos momentos vividos com elas? Estas eram questões que jamais teriam respostas. Ele nunca saberia o que movia a mente daquele homem que acabara de matar.

O que ele tinha, como certo, naquele momento, era que até mesmo os criminosos mais calculistas e frios podiam ser previsíveis. Uma pequena distracção - desatenção, talvez - foi o que bastou para condenar o assassino. Teria ele, finalmente, se apaixonado e se tornado descuidado? Ou teria o excesso de confiança lhe subido à cabeça? Fosse uma ou outra razão, nunca se saberia… e tampouco importava naquele momento. Joe Hardy havia cometido um erro, que lhe custara a vida – nada mais que isso…

Ainda lembrou, com detalhe fotograficamente admirável, como os olhos esverdeados do homem se arregalaram, ao ser surpreendido pelo golpe da ponta metálica de sua própria caneta. Ele havia usado a mesma técnica que sabia que o assassino usava: atacar de surpresa e, depois, guardar um souvenir da vítima consigo. O bilhete, escrito com o sangue da vítima, havia sido o pormenor mais subtil e sádico da história. Era o seu próprio detalhe de “requinte de crueldade”, que aprendera em tantos anos de “serviço à comunidade”, avaliando crimes hediondos. Sentiu orgulho de haver pensado naquilo, no pouco tempo que esteve junto ao corpo. Sorriu para si mesmo, sentindo-se vitorioso…

Aprumou a gola do casaco surrado, para se proteger do frio e saiu, pensando em como tinha sorte de não se relacionar com ninguém há muito tempo. As emoções deixam as pessoas vulneráveis e à mercê de oportunistas. Ele, porém, tinha que manter o sangue frio a todo custo…

Ainda tocou de leve o bolso, onde a caneta manchada de sangue aparecia ostensiva - embora discretamente - e desceu as escadas que o levariam à estação do metro. Agora, pensou, precisava fazer um relatório aos seus superiores. Havia cumprido a sua parte. Sua promoção estava sobre a mesa do chefe e era garantida, caso conseguisse fechar aquele caso de uma vez por todas…

‘Missão cumprida’, pensou e desapareceu no meio da multidão, que se dirigia aos corredores de acesso às plataformas.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 1

O vento do sul sopra pelo beco, agitando as folhas secas e revelando um corpo tombado de frente, contra o chão frio e encardido. Um fio do viscoso líquido vermelho escorre pelos espaços entre as pedras gastas. 

No bolso do homem caído, um papel com uma mensagem escrita em rubro: “I killed Joe Hardy”, aparentemente recém colocado, mal é percebido. A letra era quase uma garatuja rebuscada, porém bem desenhada e um pouco antiquada, aparentemente pertencendo à uma mão firme e masculina, acostumada com a escrita. 

A figura vestida em um casaco cinza escuro olha o corpo caído e recoloca a tampa prateada na caneta, com a ponta manchada de vermelho, sem limpá-la. Com um sorriso de soslaio, coloca a arma cuidadosa, mas ostensivamente, no bolso superior do casaco. As inicias JH, gravadas em relevo no corpo da caneta, desapareciam para dentro do tecido grosso do agasalho. Era provocação, sabia, mas aquilo parecia acender uma veia perversamente sádica em sua mente. 

Quem diria que aquele objecto, com uma aparência tão inocente, seria uma arma assim perigosa? 

Morto com seu próprio instrumento de trabalho, um pequeno souvenir que o acompanhara por grande parte da sua vida, o pobre homem jazia com o rosto colado à pedra fria e suja do calçamento na viela do beco. 

Vendo que sua missão estava terminada, o espectador, então, levanta a gola e sai. 

*** 

Quando viu o corpo caído, uma angústia profunda assolou-lhe o espírito. Correu, já com o telefone em punho, discando o número da emergência, mesmo sabendo que poderia ser tarde demais para socorrer o pobre corpo inerte jogado no paralelepípedo. Virou-o com cuidado e acolheu-o em seus braços, sentindo-se impotente diante da grandiosidade de uma decorrência tão natural e ao mesmo tempo tão incontrolável e inaceitável da vida. Com a mão, tentou limpar, desajeitadamente, um pouco do sangue que manchava o rosto do homem. Abraçou-o, segurando o corpo dele contra o seu, enterrando o rosto em seu ombro e chorou. Chorou como nunca havia chorado antes, diante da morte de alguém. Chorou como se parte dela estivesse morrendo naquele momento, com aquele, cuja vida esvaía-se como o sangue que já começava a secar por entre as pedras do calçamento. 

A uma certa distância, dois olhos observavam a figura sentada a chorar, abraçada ao homem estendido no chão gelado … 

*** 

Joe é um escritor. Apesar de uma vida cheia de percalços e pouca sorte em termos sentimentais, seu coração se entrega facilmente. Ele não tem medo de se expor, pois acha que as oportunidades não batem duas vezes na mesma porta. Mas ele nem sempre foi assim. A maturidade ensinou-o a despojar-se de prosaísmos. Como as coisas vieram tardiamente…quase tudo… ao atingir a meia-idade, começou a arriscar mais, com receio que o tempo que lhe restava não fosse suficiente para viver com a intensidade que sempre almejara. Riscos calculados e cuidadosamente planeados começaram a fazer parte de sua vida. 

Joe não acredita em Amor - com letra maiúscula -, ou é isso que sempre diz…o que não o impede de estar apaixonado constantemente, como todo escritor e poeta que alguma vez conheceu. Apaixonar-se inspira-lhe e aguça-lhe a imaginação, fazendo-o escrever sem parar, como se fosse acometido de uma febre. Platão morreria de inveja daquele homem, que precisava sentir calor no espírito ou não conseguiria produzir sua literatura. Um solitário, por assim dizer, com uma vida praticamente desconhecida pelas pessoas com as quais convivia. 

Ela o viu pela primeira vez num dia em que nada parecia lhe dar satisfação. Tentou parecer indiferente, apesar de não se sentir à vontade naquele ambiente pouco familiar. Era uma desconhecida, trazida por um amigo comum. 

Enquanto se entretinha com uma taça da única bebida alcoólica naquele evento, estudava os movimentos do homem de meia-idade - seu sorriso aberto, sua forma ligeira de caminhar, a maneira como tocava de leve nas pessoas, quando passava. 

Joe acabara de lançar o seu segundo livro - desta vez eram poemas -, um projecto acarinhado pelo ego e pela paixão, três anos depois do primeiro - um romance policial. Trazia uma taça de vinho branco na mão esquerda e tentava dar atenção a todos que lhe cumprimentavam. 

Quando os olhos cruzaram, o poeta sorriu. Uma sensação insólita mexeu-lhe com as entranhas. O homem trouxe-lhe um livro e comentou, enquanto lhe entregava o mesmo: “vejo que és a única pessoa aqui dentro que não carregas nas mãos a obra recém lançada”. Ela ficou meio sem graça, mas entrou na brincadeira, dando um sorriso timidamente encantador. Joe autografou-lhe o livro, com uma frase que a deixou ligeiramente perturbada. “Aos mistérios de estranhos e à emoção da descoberta. Cheers”. 

Nas horas seguintes, embora procurasse contacto visual, não foi correspondida pelo dono da noite. Ao sair, ainda deixou-se levar pela tentativa frustrada de um olhar, mas não topou com nenhum. Teve vontade de jogar o livro na primeira lixeira que encontrasse, mas acabou por resolver levar o exemplar e deixá-lo na estante. Não era aficionada por poesia, nem gostava muito de ler. Era uma mulher prática, não uma sonhadora. 

Alguns dias depois o telefone tocou. “Olá, estranha”. Ela reconheceu a voz. Teve vontade de desligar imediatamente, mas havia algo naquela saudação que a intrigava. “Olá”, disse, seca. “Não foi muito fácil encontrar o número, mas finalmente meus meios deram resultado. Espero que compreendas que não pude dar atenção durante o lançamento do livro. Não vou pedir desculpas, mas espero que não tenhas ficado chateada comigo”. O que aquele homem queria dela? “Não se preocupe. Eu compreendo. Não fiquei chateada, mesmo porque não podia achar que mereci mais atenção do que tive”… Deixou a frase assim reticente, para ver o efeito que causaria. ‘Eu também sei jogar, Joe’… pensou com um sorrisinho, que jamais seria visto pelo seu interlocutor. “Podemos nos encontrar e tomar um café?” Será que ele quer discutir o livro? Eu nem sei direito onde joguei aquela “coisa”, pensou, enquanto corria os olhos pela estante de livros, não muito recheada com uns exemplares tradicionais e alguns velhos CD’s de rock clássico. Avistou o pequeno livro no canto, provavelmente guardado pela mulher que fazia a limpeza. “OK. Escolha o lugar”. 

A figura sentada à mesa saboreava um café de aroma forte quando ele entrou. Tinha os olhos ocupados sobre as páginas de um livro, que folheava displicentemente. Parecia avaliar o conteúdo daquelas passagens, que talvez nem fizessem verdadeiro efeito em sua vida. Ele observou-a por um curto espaço de tempo e aproximou-se com um sorriso. “Este lugar está ocupado?” A leitora levantou os olhos do livro e sorriu em resposta. Joe sentou-se à frente dela e fixou-lhe o olhar. Sentiu-se enrubescer, mas aceitou o desafio, encarando-o com naturalidade estudada. Gostava daquela jogada… 

*** 

O homem de olhos esverdeados abriu a porta do pequeno aposento, parcamente mobilado com uma escrivaninha com gaveta e espelho, mais uma cadeira giratória de escritório. Não havia janelas, apenas uma espécie de veneziana sobre a porta, por onde o ar circulava. 

Ele costumava abrir a gaveta e apreciar seus troféus, cuidadosamente alinhados em um suporte de madeira, feito à mão. O artesão era cuidadoso. Mantinha assim guardados, os últimos vestígios de suas conquistas. Um souvenir de cada uma, ainda tingidos com o sangue das vítimas. Ele passa os dedos por sobre os objectos, quase acarinhando cada um deles, enquanto fechava os olhos sentindo um prazer incompreensível a quem visse de fora. A mente dele funcionava diferente, sabia muito bem… 

Virou-se, tomou o casaco, que se encontrava pendurado num cabide instalado na parede atrás da porta e saiu, fechando o aposento com uma pequena chave que trazia pendurada, num cordão pardo, ao pescoço. Já à porta do prédio, levanta a gola e sai pela rua fria, encarando o vento de Outono que lhe fustigava o rosto bem barbeado. Tinha um encontro marcado e não queria se atrasar… 

*** 

Joe estava sentado à mesma mesa, no mesmo café onde se encontraram pela primeira vez. Parecia tranquilo e feliz. O poeta deixava-se levar pelo coração. Ela, por sua vez, tecia uma teia intrincada, cautelosamente, em torno do homem mais velho. Portavam-se como amigos de longa data. Joe envolvia-se sem medo. Precisava daquela ilusão. 

Ela tinha olhos de um azul quase transparente de água marinha, um tanto puxados e cabelos castanhos, cortados curtos e cuidadosamente arrumados em um penteado para o lado direito, por sobre a pele perfeita da larga e pálida testa. Tinha um sorriso encantador, que nem sempre se abria, nos lábios bem desenhados. Era esbelta e longilínea. Tinha mãos brancas, com dedos finos e compridos. Seu aperto de mão era forte e firme, entretanto. O nariz era recto e delicado, condizendo com a face ovalada, tão agradável de se olhar. Movia-se com harmonia e andar suave e erecto. Parecia ter gostos extravagantes, pela forma como se vestia e pelo carro que conduzia. Joe não pode deixar de notar o relógio caro e ostensivo que carregava ao pulso esquerdo, embora não se impressionasse com aquele tipo de coisas. 

Aquela jovem sabia seduzir como profissional. Observava os movimentos do homem mais velho, quase a não querer ser percebida, mas Joe já sabia como fazer para espreitá-la, sem ter que cruzar os olhares, pois sentia-se constrangido de fazê-lo, com medo de afugentá-la. 

Ao passar por trás da cadeira, roçou de leve o ombro do homem, com os dedos. Aquele toque causava um efeito estranho no corpo do homem sentado. Ele sentia-se arrepiar, como se um frio estivesse preparando para congelar-lhe a alma. Ao se virar, borboletas voaram-lhe das entranhas. Sabia que era um sinal conhecido, mas decidira ignorar. Estava envolvendo-se demais pela mulher que acabara de chegar e gostava de sentir aquele desconforto estranhamente bem-vindo. Jogava alto, sabendo que as perdas poderiam não compensar, no final, mas já não se importava com aquilo. Ele sabia que o tempo não era um amigo fiável, por isso tinha pressa em aproveitar a oportunidade. 

Joe tinha medo de envelhecer, mas não desesperava com a vida e com a velocidade com que as coisas aconteciam à sua volta. 

Aquela canção começou a tocar ao mesmo tempo em que ela sentou-se à frente do homem. Ambos sorriram, ao reconhecer a melodia e as palavras cantadas pela voz aveludada da vocalista. Daquele momento em diante, tornou-se como se fosse o tema deles. Quando tinha oportunidade, murmurava os acordes, cantarolava ou colocava a tocar para os dois.

"Yes, Boss, I'm on the mike... I'll try to give you what you like... I can be soft, I can be hot"... * (Hess is More - Yes, Boss)

Embora parecesse casual, Joe tinha esperança que ela o estivesse provocando, de uma maneira que achava estimulante e até se divertia com aquilo. Os olhos o seguiam, mesmo quando fingia não o fazer. Mas o homem mais experiente já conhecia aquele comportamento. Ele sabia jogar e, jogar com uma pessoa tão bonita, como aquela sentada à sua frente, causava-lhe uma satisfação enorme… 

Mais tarde, na mesma noite, sentiu-se bem diferente de como vinha se sentindo ultimamente: desejado, atraente, sedutor… Pensou na frase que havia usado, não muito antes e que cabia, como uma luva, naquela ocasião: o homem que tem um passado como o dele, não tem porque temer o futuro… e sorriu secretamente, virado para o lado oposto, fechando os olhos e adormecendo em seguida. 

*** 

O homem observava, de longe, a pequena e quase íntima reunião. Parecia que os dois se davam bastante bem, pela forma como se olhavam, os sorrisos que trocavam e as risadas tão soltas. Vez ou outra tocavam um no braço do outro, furtivamente – numa forma quase desintencional. Percebia uma evolução no comportamento dos dois, desde que começara a observá-los juntos. Agora encontravam-se com frequência, passando vários momentos juntos, contando histórias, rindo de quase tudo. Logo chegaria a hora certa, ele sabia. Já sentia uma certa excitação crescer dentro de si, enquanto pensava no que fazer. Ele tinha certeza que teria de usar o “elemento surpresa”, se quisesse ser bem sucedido em seu intento…… Era imprescindível que agisse no momento certo, ou perderia aquela oportunidade, que poderia nunca se repetir outra vez.

Não podia, nem queria, perder aquela chance - única - ou esta iria-lhe sair muito cara... muito cara mesmo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Esquizo-frenesi


- E o que tu pensas que é isso nas tuas mãos?

A pergunta não era somente retórica. Minhas mãos estavam pegajosas, sujas de sangue ainda fresco. Eu me sentia drenado, usado, dolorido. Há dias eu não conseguia me concentrar. Estava sem dormir direito, há algumas noites. A falta de sono já me causava delírios e eu não tinha ideia do que era real e o que era imaginário… ou alucinação.

Ele falava com a naturalidade e com a arrogância de sempre. Eu conhecia aquela ironia e não gostava nada. Estudei o ambiente em que me encontrava e não vi nada anormal, a não ser o rastro, quase invisível, que deixara ao entrar. Algumas gotas vermelhas haviam marcado uma trilha até onde eu me encontrava. Olhei-me no espelho à minha frente e quase não me reconheci. Meus olhos mostravam a loucura que nunca tive e havia profundas olheiras ao redor deles. Eu parecia velho e cansado. Logo eu, que tantas vezes havia proferido o quanto me orgulhava do facto de minha aparência esconder a minha verdadeira idade. Pensei em tomar um banho quente e me barbear. Precisava daquilo…

- Não se faça de santo. Achas que tentar me ignorar vai mudar o que fizeste? Não mesmo!

Será que ele não podia se calar, por uns instantes, somente? Minha cabeça doía. Precisava tomar algum analgésico e um estimulante. Qualquer coisa para me manter acordado por tempo suficiente. Odeio ficar na dependência destes químicos, mas não tenho saída e nem tempo…

- Tente…tente…quero ver se consegues deixar de me ouvir… Achas que podes te livrar de mim, assim tão fácil? Não lembras da outra noite?

Ele ria. E era o riso de um louco. Na outra noite, que mencionava, agora, com sarcasmo, ele havia se deitado na minha cama, perto de mim e me dito para não perturbá-lo, porque eu não ia conseguir vencê-lo. Meu corpo todo tremia, de medo e de frio, mas não tive coragem de enfrentá-lo, nem de puxar a coberta para cima de mim…

Eu só queria voltar a ser aquela criança que ainda tinha um pingo de fé e que acreditava em orações, que rezava quando tinha medo e adormecia tranquilo, livre para sonhar. Tornei-me um adulto amargo, sem fé, sem esperança e sem coragem de enfrentar meus próprios demónios. Mas não sinto saudades do meu tempo de criança. Não quero voltar a ser torturado pelos fantasmas que rondavam a casa, nem pelas vozes dentro do quarto, quando as luzes apagavam. Não gosto de acordar no meio da noite, sem saber onde estou…

Cheguei há pouco, da rua. Ele me perseguiu, por horas, pela cidade. Eu o via em cada esquina, em cada porta de bar de subúrbio que eu entrava. Quanto mais eu o evitava ou me escondia, mais inútil era o esforço. Parece que tinha um localizador posto em algum lugar do meu corpo… em algum lugar em baixo da minha pele. Quando se aproximava de mim, ele ria, saboreando os momentos em que me fazia sentir medo. E aquele riso… maléfico, escarnecedor, enlouquecido… aumentava na minha cabeça, como se ele tivesse o dial de um amplificador.

Peguei o carro e dirigi até a ponte, sobre a estrada. Parei no ponto mais alto e saí, fui até a amurada e não tive dúvida. Ele não ia me vencer. Mergulhei no vazio, mesmo sabendo que me jogava de encontro à morte. Eu via o chão se aproximar de mim e já respirava aliviado. Aquele pesadelo ia acabar ali mesmo…

…Só que não acabou. Ele mergulhou atrás de mim e me segurou pelo tornozelo direito.

- Ainda não. Tu ainda não tens o direito de morrer. A tua hora não chegou.

Ele dizia aquilo como se fosse o senhor da Morte… ou de meus dias.

Ao olhar para além das garras que me seguravam o tornozelo e me traziam de volta ao topo, foi que eu percebi que ele tinha asas. Asas de demónio. Negras. Enormes. Asas que me traziam de volta para a borda da ponte – longe da possibilidade de suicídio. Ele tinha controle completo sobre mim.

O que podia fazer um homem que tentava se suicidar e era trazido de volta à vida por um demónio? Voltei para casa, sem muitas esperanças. Eu só queria poder dormir. Quando entrei pela porta da frente, eu já não tinha mais forças. Ele estava de pé, à minha espera. E riu... Alto… Como um louco ri…

Olhei-o com desprezo. Eu já não sentia medo. Era impaciência que eu sentia. Me joguei no sofá da sala e me entreguei ao cansaço. Fechei os olhos. Já considerava que sonhar seria melhor que aquele pesadelo que eu vivia acordado. Foi então que uma ideia me veio à mente. Eu poderia ter uma saída… mas teria somente uma tentativa.

Levantei-me e fui até a cozinha. Ele não me seguiu. Peguei a maior e mais afiada faca que havia na gaveta e voltei à sala. Ele ainda estava lá, no mesmo lugar. Olhou-me como se uma faca enorme na minha mão fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não pensei duas vezes. Com um movimento rápido, perfurei logo abaixo da linha do esterno, perto da última costela esquerda. Ele apenas riu.

Puxei a faca, com as duas mãos, joguei-a no chão da sala e vim directo para o quarto onde estou agora. Eu ainda o ouço… Ele fala e escarnece de mim.

- O que tu pensas que é isto, nas tuas mãos, afinal?

Ele repetia a frase, no meio daquela confusão toda na minha cabeça.

- Olhe para si mesmo. Tu não passas de um farrapo humano, que nem consegue se livrar de seu demónio. Olhe bem para o que fizeste…

Eu não entendi o que ele queria dizer. Olhei em volta. O rastro vermelho era tão subtil, que parecia nem existir. Minhas pernas fraquejaram. Aquela mancha, sobre o tapete do quarto, aumentava à minha volta... Passei a mão na minha camisa e percebi que estava encharcada e pegajosa. Uma pontada de dor partia de um ponto, abaixo do esterno, um pouco para o lado esquerdo, de onde o sangue escorria sem trégua.

Minha visão começou a ficar turva e a risada dele, ao perceber que eu ia me perdendo, se tornava cada vez mais distante. O que eu sentia, finalmente, era uma paz e um silêncio confortante. Uma sensação que não se parecia nada como o frenesi das noites anteriores. O quarto escureceu, devagar e, então, não o ouvi mais…