- E o que tu pensas que é isso nas tuas mãos?
A pergunta não era somente retórica. Minhas mãos estavam pegajosas, sujas de sangue ainda fresco. Eu me sentia drenado, usado, dolorido. Há dias eu não conseguia me concentrar. Estava sem dormir direito, há algumas noites. A falta de sono já me causava delírios e eu não tinha ideia do que era real e o que era imaginário… ou alucinação.
Ele falava com a naturalidade e com a arrogância de sempre. Eu conhecia aquela ironia e não gostava nada. Estudei o ambiente em que me encontrava e não vi nada anormal, a não ser o rastro, quase invisível, que deixara ao entrar. Algumas gotas vermelhas haviam marcado uma trilha até onde eu me encontrava. Olhei-me no espelho à minha frente e quase não me reconheci. Meus olhos mostravam a loucura que nunca tive e havia profundas olheiras ao redor deles. Eu parecia velho e cansado. Logo eu, que tantas vezes havia proferido o quanto me orgulhava do facto de minha aparência esconder a minha verdadeira idade. Pensei em tomar um banho quente e me barbear. Precisava daquilo…
- Não se faça de santo. Achas que tentar me ignorar vai mudar o que fizeste? Não mesmo!
Será que ele não podia se calar, por uns instantes, somente? Minha cabeça doía. Precisava tomar algum analgésico e um estimulante. Qualquer coisa para me manter acordado por tempo suficiente. Odeio ficar na dependência destes químicos, mas não tenho saída e nem tempo…
- Tente…tente…quero ver se consegues deixar de me ouvir… Achas que podes te livrar de mim, assim tão fácil? Não lembras da outra noite?
Ele ria. E era o riso de um louco. Na outra noite, que mencionava, agora, com sarcasmo, ele havia se deitado na minha cama, perto de mim e me dito para não perturbá-lo, porque eu não ia conseguir vencê-lo. Meu corpo todo tremia, de medo e de frio, mas não tive coragem de enfrentá-lo, nem de puxar a coberta para cima de mim…
Eu só queria voltar a ser aquela criança que ainda tinha um pingo de fé e que acreditava em orações, que rezava quando tinha medo e adormecia tranquilo, livre para sonhar. Tornei-me um adulto amargo, sem fé, sem esperança e sem coragem de enfrentar meus próprios demónios. Mas não sinto saudades do meu tempo de criança. Não quero voltar a ser torturado pelos fantasmas que rondavam a casa, nem pelas vozes dentro do quarto, quando as luzes apagavam. Não gosto de acordar no meio da noite, sem saber onde estou…
Cheguei há pouco, da rua. Ele me perseguiu, por horas, pela cidade. Eu o via em cada esquina, em cada porta de bar de subúrbio que eu entrava. Quanto mais eu o evitava ou me escondia, mais inútil era o esforço. Parece que tinha um localizador posto em algum lugar do meu corpo… em algum lugar em baixo da minha pele. Quando se aproximava de mim, ele ria, saboreando os momentos em que me fazia sentir medo. E aquele riso… maléfico, escarnecedor, enlouquecido… aumentava na minha cabeça, como se ele tivesse o dial de um amplificador.
Peguei o carro e dirigi até a ponte, sobre a estrada. Parei no ponto mais alto e saí, fui até a amurada e não tive dúvida. Ele não ia me vencer. Mergulhei no vazio, mesmo sabendo que me jogava de encontro à morte. Eu via o chão se aproximar de mim e já respirava aliviado. Aquele pesadelo ia acabar ali mesmo…
…Só que não acabou. Ele mergulhou atrás de mim e me segurou pelo tornozelo direito.
- Ainda não. Tu ainda não tens o direito de morrer. A tua hora não chegou.
Ele dizia aquilo como se fosse o senhor da Morte… ou de meus dias.
Ao olhar para além das garras que me seguravam o tornozelo e me traziam de volta ao topo, foi que eu percebi que ele tinha asas. Asas de demónio. Negras. Enormes. Asas que me traziam de volta para a borda da ponte – longe da possibilidade de suicídio. Ele tinha controle completo sobre mim.
O que podia fazer um homem que tentava se suicidar e era trazido de volta à vida por um demónio? Voltei para casa, sem muitas esperanças. Eu só queria poder dormir. Quando entrei pela porta da frente, eu já não tinha mais forças. Ele estava de pé, à minha espera. E riu... Alto… Como um louco ri…
Olhei-o com desprezo. Eu já não sentia medo. Era impaciência que eu sentia. Me joguei no sofá da sala e me entreguei ao cansaço. Fechei os olhos. Já considerava que sonhar seria melhor que aquele pesadelo que eu vivia acordado. Foi então que uma ideia me veio à mente. Eu poderia ter uma saída… mas teria somente uma tentativa.
Levantei-me e fui até a cozinha. Ele não me seguiu. Peguei a maior e mais afiada faca que havia na gaveta e voltei à sala. Ele ainda estava lá, no mesmo lugar. Olhou-me como se uma faca enorme na minha mão fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não pensei duas vezes. Com um movimento rápido, perfurei logo abaixo da linha do esterno, perto da última costela esquerda. Ele apenas riu.
Puxei a faca, com as duas mãos, joguei-a no chão da sala e vim directo para o quarto onde estou agora. Eu ainda o ouço… Ele fala e escarnece de mim.
- O que tu pensas que é isto, nas tuas mãos, afinal?
Ele repetia a frase, no meio daquela confusão toda na minha cabeça.
- Olhe para si mesmo. Tu não passas de um farrapo humano, que nem consegue se livrar de seu demónio. Olhe bem para o que fizeste…
Eu não entendi o que ele queria dizer. Olhei em volta. O rastro vermelho era tão subtil, que parecia nem existir. Minhas pernas fraquejaram. Aquela mancha, sobre o tapete do quarto, aumentava à minha volta... Passei a mão na minha camisa e percebi que estava encharcada e pegajosa. Uma pontada de dor partia de um ponto, abaixo do esterno, um pouco para o lado esquerdo, de onde o sangue escorria sem trégua.
Minha visão começou a ficar turva e a risada dele, ao perceber que eu ia me perdendo, se tornava cada vez mais distante. O que eu sentia, finalmente, era uma paz e um silêncio confortante. Uma sensação que não se parecia nada como o frenesi das noites anteriores. O quarto escureceu, devagar e, então, não o ouvi mais…