domingo, 9 de abril de 2017

Olhares (Parte 2)


Quando cheguei ao trabalho, no dia seguinte, estava praticamente atrasado, pois demorei a adormecer e perdi a hora. Era quinta-feira e, para confirmar minha ojeriza ao pior dia da semana, desde há muito, fui chamado para uma reunião, que durou a manhã inteira e que não deixou-me tempo para pensar em mais nada, a não ser as decisões que eram exigidas ao grupo.

Quando saí para o almoço, já era passado da minha hora normal e tive que ir a um restaurante próximo do escritório, junto com alguns dos colegas, que participaram da mesma reunião.

Pedi um peixe grelhado com arroz e salada, que estava melhor que eu esperava, para a refeição que era. Estava distraído com a conversa, quando o rapaz que servia à mesa trouxe uma taça de vinho tinto e pousou à minha frente. Como eu não havia pedido vinho para beber, por ser um dia de trabalho normal, recusei o pedido, mas ele apontou para uma mesa na extremidade oposta e disse:

- É cortesia daquele cliente…

Eu olhei naquela direção e vi um homem vestido com roupas escuras a levantar a sua taça de vinho e mexer os lábios, no que pareceu-me ser votos de ‘saúde’.

Por algum motivo, senti uma pontada no estômago e não quis beber, de imediato, mas pensei melhor e decidi que era mais conveniente forçar-me, apesar da apreensão. Meus colegas terminaram a refeição antes de mim e levantaram-se, mas eu disse que ia demorar-me um pouco, ainda.

Quando fiquei a sós, olhei para o local onde antes havia sentado meu beneficiário, mas já não o vi. Levantei-me e fui até o caixa. O rapaz que estava de serviço disse-me que a conta estava paga, o que eu achei estranho, pois nós não costumamos pagar, em dia de trabalho, as contas uns dos outros. Foi quando ele entregou-me um papel dobrado com um pequeno sinal rabiscado a preto, ao lado de fora da mensagem.

- O cliente que pagou a conta pediu-me para entregar-lhe este bilhete…

Foi então que eu percebi que não havia sido nenhum dos meus colegas que havia saldado minha pequena dívida daquela refeição.

Desdobrei a mensagem e olhei à volta, mas já não avistei o tal homem. Li, intrigado, e lembrei-me do que ele havia-me falado ao telefone.

Eu devia desconfiar que a oferta de uma taça de vinho não era, exatamente, aquilo que eu deveria chamar de uma conversa, como ele havia indicado claramente, quando ligou-me, àquela hora da noite. Como não fui almoçar sozinho, ele resolveu adiar a conferência para outra ocasião, o que deixou-me, de certa forma, aliviado. Mas ter a minha refeição paga por um estranho, deixava-me bastante desconfortável.

De todo jeito, eu não sabia se estava preparado para uma conversa com aquele personagem… ainda…

Não tinha como saber do que se tratava e achava aquela história toda muito estranha. Na verdade, ele dava-me mais tempo, para me preparar para um encontro, quando chegasse a hora. Adiar a tal reunião, era o melhor que se podia fazer.

Quando preparei-me para atravessar a rua, senti uma pressão no braço e voltei-me, entre surpreso e assustado.

Uma moça bem vestida, com um tailleur cinza escuro e os cabelos presos atrás da cabeça, num coque bem arranjado, havia-me puxado para trás, milésimos de segundos antes de um carro preto passar, em alta velocidade, muito próximo da calçada.

- Cuidado! Ele avançou o sinal vermelho!

- Obrigado. Estava mesmo absorto…

- Não é uma boa estratégia distrair-se ao atravessar a rua.

- É verdade… Vou tomar mais cuidado. Agradeço imensamente.

Ela sorriu, condescendentemente, atravessando a faixa de pedestres e perdendo-se no meio dos transeuntes que iam e vinham pela calçada movimentada. Um suor frio correu-me pelo corpo, apesar de estar um dia agradavelmente morno.

‘Descuido. Grande descuido! E, para piorar, numa quinta-feira. Odeio isso, tanto quanto as quintas-feiras!’

***

A meio da tarde, estava tão envolvido com um trabalho, que não percebi o telefone tocar insistentemente. Um colega chamou-me à atenção e eu atendi de pronto. A voz rouca e conhecida, do outro lado da linha, falou:

- Deves ter mais cautela ao atravessar a rua. As pessoas descuidadas podem machucar-se…

- É. Eu sei…

- O vinho estava bom? Pareceu-me um pouco frutado demais, para acompanhar o peixe.
- Era bastante denso e encorpado, eu concordo. Mas é como eu gosto. Estava muito bom. Obrigado pela oferta.

- Ótimo. Não há de quê.

Antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ouvi o som da linha desligar e fiquei ali, parado, como o telefone ao ouvido, como se desacreditasse que a conversa fosse somente aquela. Aquilo estava ficando, além de entediante, também um pouco perturbador.

Alguém chamou-me e eu tive que participar de outra reunião não programada, o que deixou-me ocupado pelo resto da tarde e um pedacinho da noite, após o encerramento do expediente normal.

Quando saí do escritório, já passava das oito da noite e eu estava visivelmente cansado. Pensei em comprar algo num ‘take-away’ a caminho de casa, ao invés de preparar comida, pois assim tinha menos trabalho e comia logo que chegasse. Depois podia descansar do longo dia. Já nem conseguia pensar muito claramente. Eu só queria chegar em casa, comer e deitar-me.

O frango no churrasco ainda estava quente quando comecei a comer e as batatas fritas bem firmes e saborosas. Pensei em como era bom ser simples. O gato ganhou uma porção de peito de frango picado e ainda estava feliz da vida a saboreá-la, quando terminei o meu jantar. Arranjei a louça na máquina de lavar, dei uma olhada na tigela de água do bichano, para certificar-me que não ia faltar-lhe nada e fui arranjar-me para repousar.

Adormeci em pouco tempo.

A meio da madrugada, acordei-me sobressaltado, com a impressão que havia mais alguém dentro de casa. Olhei à volta e percebi que o gato, minha referência, estava acordado e a olhar fixamente para um ponto fora do quarto. Levantei-me e acendi todas a luzes, fui até a cozinha, depois à sala, mas não vi ninguém.

Verifiquei, também, se a porta de entrada estava bem trancada por dentro, para ficar mais aliviado.

‘Devo ter sonhado com algo que não consigo lembrar… ou estou começando a enlouquecer…’   

Quando eu virei-me para voltar ao quarto, percebi que a janela da sala estava aberta, para minha surpresa. Aquilo era absolutamente inaceitável, pois eu sempre mantinha as janelas bem fechadas, para evitar que o gato saísse sem que eu soubesse. Eu não lembrava mesmo de havê-la aberto. Eu nunca seria tão descuidado… ou seria?

‘Tenho que parar com esta paranóia! Vou acabar indo parar num hospício!’

***

No dia seguinte, estive tão ocupado com o trabalho, que não tive tempo de pensar em muitas coisas. Pelo menos era o último dia útil da semana e eu ia poder descansar nos dois dias seguintes.

Cheguei em casa tão cansado, que até o gato estranhou que não ganhou carinho suficiente, mas deitou-se ao meu lado, no sofá e adormeceu comigo, como se compreendesse que eu também precisava do suporte dele.

O telefone tocou quando faltavam poucos minutos para a meia-noite.

A mesma voz rouca, tranquila e monótona, demonstrava uma afinidade que não possuía, na realidade.

- Não devias dormir no sofá. Vais levantar com dores no corpo.

- E como é que sabes que eu estou no sofá?

- Pelo jeito ainda não estás convencido… No que é que tu acreditas, afinal?

- Eu sou um homem de mente totalmente racional. Não acredito em nada que não possa provar cientificamente.

- Existem muitos mistérios inexplicáveis neste mundo. Devias ser mais aberto às experiências que não consegues provar com a tua lógica. Quem é que garante que não existem outras dimensões além dessa?

- Outras dimensões? Deves estar a brincar comigo…

O homem não argumentou. Eu ouvia sua respiração pesada, do outro lado da linha, sem saber o que viria a seguir. Para minha surpresa, antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ele desligou.

O que ele quer comigo? Conversa mais estranha! Outra dimensão? Que porcaria é essa? Só conheço três dimensões… e olhe lá!

***

- Era preciso que tu estivesses aberto para a perceção. Não basta acreditar. É preciso aceitar.

- Mas isso só pode ser uma ilusão… Não posso acreditar!

- Abra a mente. Não há nada impossível, como podes perceber.

Eu calei-me. Estava-me passando por ridículo. Se ver não for suficiente para crer, então o que será?

Ele apontou-me o caminho, deixando-me passar e logo começou a andar ao meu lado. Eu nem sabia o que pensar. Não havia o que dizer. Aquilo parecia uma loja de souvenirs, com muitas galerias que se abriam, como os túneis de esgotos por baixo da cidade… só que não estávamos por baixo da cidade e as galerias não estavam vazias, nem escuras. As várias entradas e saídas levavam a muitos pontos estratégicos, como se fossem portais de acesso. Estes mudavam de lugar, constantemente, como se pretendessem impedir que fossem detectados, o que fazia um certo sentido.

- Este lado serve de equilíbrio para o outro, mas agora está totalmente caótico, por causa das barbaridades que acontecem daquele lado. As coisas ficaram fora de controlo e o equilíbrio está cada vez mais difícil.

- E por que eu estou aqui?

O homem parou e olhou-me, com um ar estranho.

- Alguém do lado de cá enviou-me para mostrar-te o que acontece e pedir-te ajuda.

- Ajuda? Quem poderia necessitar de minha ajuda?

Ele olhou por cima dos meus ombros, como se não conseguisse acreditar que eu fosse tão ingénuo.

- Eu.

Virei-me rapidamente, para ver quem havia falado. Minhas pernas tremeram e eu senti um aperto na garganta. Tentei parecer normal, mas minha voz traiu-me completamente.

- Eu já devia esperar…

***

sábado, 25 de março de 2017

Stares (Part 1)



I do not like social occasions. I really dislike gatherings, cocktail parties and happy hours. I can tolerate a dinner with friends, but just with no more than a few people. The noise of a lot of people talking, especially if they are loud, bothers me. I can open exceptions, but they would be very scarce.

On one of these rare occasions, I was at a painting vernissage, invited by one of the artists, a friend of long date, who was participating in a show like that for the first time, after much insistence of his friends and acquaintances. He did not think his artwork was mature enough to become public, but everyone insisted that his paintings were very good and he eventually gave in. I had to agree that there was still a long way to go for what he might call "mature", but they were far better than many of the other artworks on display there.

I accepted the invitation to give him the support new artists need and also to break my own preconceived taboos and ideas about going out on a weekday evening. I had already decided that I would stay just long enough to be noticed by my friend and give him some public support, but I knew he would be quite busy with the other guests and would not be upset if I left early. He knew that my presence at such events could already be considered a rarity, so he would not be disappointed if I went home before the end of the event.

I glanced over at the group of people present, pacing back and forth, leisurely, pretending they liked what they were seeing, as if they knew more than they did of modern art. The wine was of good quality, but nothing exceptional. The food was good, but not luxurious or overly sophisticated. The purpose of the catering was not to keep the guests focused on eating, but to create the atmosphere of a certain formality.

I was feeling displaced, as almost always, among strangers. I would rather be at home listening to music, reading, or just playing with the cat. But one has to support a friend every now and then...

Someone bumped into me and some white wine spilt on the sleeve of my coat. A meagre apology and a strategic leaving me alone followed my awkward 'it’s all right'. It was, definitely, not all right. I set the glass down on a table and tried to go to the bathroom and quickly wash the wine from my coat so it would not do any more damage it had already done.

On my way back, determined to leave the place immediately, I sought out my artist friend in order to bid him farewell, but he was busy with a group of women who were laughing loudly and not discreetly.

- Rookies!

I thought and said that aloud.

For some reason my eyes were drawn towards the staircase that led to the mezzanine, where there were a few other paintings exposed. A man dressed in black was staring at me and seemed to smile. I was not sure if it was for me, but a shiver ran up my spine. He had a glass of red wine in his hand and lifted it, as if toasting with me. I looked back, but there was no one around who he could be looking at in the same direction. When I turned back again, he was gone. I looked around, but I could not find him.

'Strange thing', I thought. 'Why did he look at me like that? This cannot be normal or I must be really drunk.'

I left the place right away.


My annoyance did not last long. On my way home, I no longer thought about that little incident and went back to my normal state. I do not like driving and the traffic makes me tense, so I try not to think too much when I'm in the car.

Back at home, I was happy with my normal solitude and usual my hermit condition. I got rid of my formal clothes and put on my old pajamas, ready to go to bed. I almost forgot that the sleeve of my coat needed to dry right before being hung back in the closet, so as soon as I finished brushing my teeth and got ready for bed, I walked back into the living room and laid it on the back of a chair.

I fell asleep so fast I did not even have time to think about anything else. I did not even notice when the cat climbed onto bed and lay down at my feet...

***

He lifted the glass of red wine and smiled. I tried to look away, but I could not. There was something in his gaze that I felt intriguing and at the same time frightening. He moved his lips, as if to say something, but I did not hear any sound. What was he trying to tell me? Would it be important? What does he want from me?

Someone passed in front of me and that distraction broke my eye contact. When I looked back, he was not there anymore.

‘Déjà vu’

"This has happened before," I said aloud.

- But not this way...

I had a fright. I did not expect anyone to hear me.


The man dressed in black, next to me, offered me a glass of red wine, without saying anything else. I took the glass and brought it to my lips, keeping eye contact with him

He smiled in a strange way.

I realized that something was wrong and looked at the contents of the goblet, which fell out of my hand, as soon as I realized it was something else...

The dense, red blood in it splashed across the floor and onto my clothes as the crystal broke into millions of pieces against the dark granite of the floor.

I woke up with a shriek, sweating and panting like an animal after a long run.

- Shame! That was just a dream…

I had not thought about how that little incident had left such a strong mark on my subconscious, coming back to life during my sleep...

***

Going back to my routine, the day after, was enough to keep my mind busy with work and my normal chores, at least until the evening. Sometimes, however, when I was distracted, I had the sensation of seeing those eyes peeking from somewhere, but I concluded that it was just a mere impression... Just a game the mind plays...

When I left the office, I rushed to the metro station. I never used to go to the city center by car, because of the difficulties of finding places and also because of the cost of parking. It was much more practical to use the subway system. It worked very well and, besides being very practical, was also quite efficient and inexpensive.

I went downstairs and walked to the platform, which was already quite busy, at that hour of the afternoon. It's funny to watch the passers-by coming in and out of the vehicles and imagine where they are going to and where they come from, with their stories, their problems, their joys, their desires...

I was looking vaguely at a couple of women who were talking enthusiastically in front of me when the vehicle arrived on the opposite platform. My attention was naturally directed to that side and I kept watching the people moving in and out until the group of carriages left, as quickly as they came. The character dressed in black and staring at me, caused me an obvious discomfort. I was out of action for a few seconds, until I realized he bowed his head and moved his lips as if he were telling me something. I frowned, but did not respond. The subway car stopped in front of me and the focus of my attention was soon diverted. I walked into the vehicle and looked out the window, but I saw no one on the opposite platform. I had not been wrong. 

He was there and I was feeling I was being chased.

- What the hell was that? Again…

The girl, standing next, laughed at me, when she noticed I was talking to myself.

***

- Why do you wear that awful sleeping shirt?

- What the f…? How do you…

The voice on the other end of the telephone line was hoarse, almost provocative, as if the caller wanted only to show that he knew what he was talking about, but did not want to cause an unnecessary commotion.

The lights were off and I could not remember wearing that piece of clothing before coming into the bedroom, ready for bed. The curtains were closed, so I did not immediately understand how anyone would know that I was dressed in that striped shirt of various colors, which I myself admitted was ridiculous, but it was very comfortable to sleep after all.

I did not turn on the lights. I rolled over to the side and searched for some strange light, like the one that reveals a hidden camera, but I did not see any. How that creature knew what was going on inside my room? I sat on the bed without turning the lights on. The cat jumped from the foot of the bed where it was nestled and stared at me walking toward the door, lit by the faint clarity of the phone I held.

- Do not let the kitten run out of water. He must be thirsty.

- What? What kind of joke is this?

The sign that the line disconnecting followed and to my surprise the cat returned to the room, but did not lie down. He made a move as if to leave, as he did when he wanted something, and I followed him into the kitchen. He stopped and looked at me, sitting on the blue carpet, where the bowl of water was, empty, to my utter astonishment.
I filled it up and also a large empty glass of instant coffee that I always kept full of water on the sink, wondering how they had emptied, if nobody but me had access to the apartment. I shook my head, as if dismissing a bad thought and went back to bed, unwilling to think about it or I would not sleep.

Six minutes after lying down, not exactly to my surprise, the phone rang again...

I heard the heavy breathing on the other side of the line. The same hoarse voice spoke, quietly but firmly.

- I hope I have convinced you that we have things to talk about. We should meet tomorrow at lunchtime. Do not miss...

- But where?

- Do not worry about it...


***

sábado, 18 de março de 2017

Olhares (Parte 1)


Eu não gosto de ocasiões sociais. Não gosto de festas, nem de ‘cocktail parties’, muito menos de ‘happy hours’. Quando muito, tolero um jantar entre amigos, mas com poucas pessoas. O ruído de muita gente a falar, especialmente se for em volume alto, me incomoda. As exceções existem, mas são escassas.

Numa destas raras ocasiões, estava num ‘vernissage’ de pintura, convidado por um dos artistas da coletiva, um amigo de longa data, que participava de uma mostra, pela primeira vez, depois de muita insistência dos conhecidos. Ele não achava que sua arte estava madura para mostrar ao público, mas todos insistiam que eram obras muito boas e ele acabou cedendo. Eu tive que concordar que ainda havia um longo caminho para aquilo que ele poderia chamar de “maduro”, mas eram melhores que muitas das outras obras à mostra naquela coletiva.

Aceitei o convite para dar-lhe o apoio que achava necessário aos artistas novos e, também, para quebrar meus próprios tabus e ideias pré-concebidas a respeito de sair de casa, num dia de semana à noite. Já havia decidido que ia ficar apenas o tempo suficiente para ser notado pelo meu amigo e dar-lhe o suporte público, mas sabia que ele estaria bastante ocupado com os convidados e não ia ficar chateado se eu saísse cedo. Ele sabia que minha presença naquele tipo de eventos já poderia ser considerada uma raridade, por isso não ficaria melindrado, se eu fosse para casa antes do fim do evento.

Passei os olhos num apanhado geral ao grupo que ali estava reunido, a andar de um lado para o outro, descontraidamente, a fingir que gostavam do que viam ou que percebiam de artes. O vinho era de boa qualidade, mas nada excepcional. Os canapés estavam bons, mas sem serem luxuosos ou sofisticados demais. Percebia-se que o objetivo do ‘catering’ não era manter os visitantes atentos ou ansiosos por comer, mas apenas servir para criar o clima de uma certa formalidade.

Sentia-me deslocado, como quase sempre. Preferia estar em casa a ouvir música, a ler, ou, simplesmente a fazer festinhas ao gato. O que uma pessoa não faz para apoiar um amigo…

Alguém esbarrou em mim e fez-me derramar um pouco de vinho branco na manga do casaco. Um mirrado pedido de desculpas e uma saída estratégica seguiram-se ao meu desajeitado ‘tudo bem’. Pousei o copo numa mesa e tratei de ir à casa de banho, a fim de lavar, rapidamente, o vinho do casaco, para não fazer mais estrago que já havia feito.

Na volta, decidido a deixar imediatamente o local, procurei por meu amigo artista, a fim de despedir-me, mas ele estava ocupado com um grupo de mulheres que riam à solta e nada discretamente.

- Gralhas!

Pensei alto e entre os dentes.

Por algum motivo meus olhos foram atraídos na direção da escadaria que levava ao mezanino, onde haviam alguns outros quadros expostos. Um homem vestido de preto olhava na minha direção e parecia sorrir. Eu não tinha certeza se era para mim, mas um arrepio subiu-me pela espinha. Ele tinha um copo de vinho tinto na mão e levantou-o, como se brindasse comigo. Olhei para trás, mas não havia ninguém por perto que estivesse a olhar na mesma direção. Ao voltar-me novamente, não mais vi o tal convidado. Procurei, com os olhos, mas não o encontrei.

- ‘Coisa mais estranha’, pensei. ‘Por que me olhava assim? Isso não pode ser normal. Devo estar mesmo bêbado.’

Saí logo em seguida.

Minha perturbação não durou muito. A caminho de casa, já não pensava mais naquele pequeno acontecimento. Em muito poucos minutos esquecia o incidente e voltava ao meu estado normal. Eu também não gosto de conduzir e o trânsito deixa-me tenso, por isso tento não pensar muito, quando estou no carro.

Já em casa, voltei à minha condição normal de eremita. Livrei-me das roupas formais e vesti um pijama, disposto já a preparar-me para deitar. Quase esquecia que a manga do casaco precisava secar direito, antes de ser pendurado de volta no armário, por isso, assim que escovei os dentes e preparei-me para dormir, voltei à sala e deixei-o sobre o encosto de uma cadeira.

Adormeci tão rápido que nem tive tempo de pensar em mais nada. Nem vi quando o gato subiu na cama e deitou-se aos meus pés…

***

Ele levantou a taça de vinho tinto e sorriu. Eu tentei desviar o olhar, mas não consegui. Havia algo em seu olhar que me deixava intrigado e, ao mesmo tempo, assustado. Ele moveu os lábios, como se a dizer algo, mas não ouvi nenhum som. O que ele tentava dizer-me? Seria importante? O que ele quer de mim?

Alguém passou na minha frente e aquela distração quebrou o contato visual. Quando voltei o olhar, ele já não se encontrava.

Déjà vu…

- ‘Isso já aconteceu antes’, falei em voz alta.

- Mas não desta forma…

Dei um salto. Não esperava que alguém me ouvisse.

O homem que estava ao meu lado ofereceu-me uma taça de vinho tinto, sem dizer mais nada. Eu tomei a taça e levei aos lábios, mantendo o contacto visual com ele. Ele sorriu de uma maneira estranha. Eu percebi que havia algo errado e olhei para o conteúdo da taça, que caiu da minha mão, assim que percebi tratar-se de outra coisa…

O denso e rubro sangue que estava nela respingou pelo chão e nas minhas roupas, assim que o cristal partiu-se em milhões de pedaços, contra o granito escuro do piso...

Acordei sobressaltado, com um grito, suando e ofegante como um animal depois de uma longa corrida.

- Merda! Foi um sonho…

Não havia pensado em como aquele incidente havia deixado uma marca tão grande no meu subconsciente, voltando à tona durante meu sono...

***

Minha volta à rotina, já de amanhã, tratou logo de manter minha mente ocupada com o trabalho e meus afazeres normais, pelo menos até a noite. Às vezes, porém, quando distraía-me, tinha a sensação que via aqueles olhos a espreitarem de algum lugar, que eu não conseguia realmente distinguir, mas cheguei à conclusão que não passava de uma mera impressão… peças que a mente prega na gente…

Na saída do trabalho, fui até a estação de metro, pois nunca ia ao centro de carro, pelas dificuldades de achar vagas e, também, devido ao custo para estacionar. Era muito mais prático ir de metro. O sistema funcionava bem e, além de ser prático, era também bastante eficiente e barato.

Desci as escadas e fui para a plataforma, que já estava bastante movimentada, àquela hora da tarde. É engraçado ficar a observar os transeuntes entrarem e saírem dos veículos e imaginar para onde vão e de onde vêem, com suas histórias, seus problemas, suas alegrias, seus desejos…

Estava distraído a olhar um casal que conversava animadamente à minha frente, quando o veículo chegou na plataforma do lado oposto. Minha atenção foi naturalmente direcionada para aquele lado e fiquei a olhar as pessoas a movimentarem-se até o grupo de vagões partir, tão rapidamente quanto veio. A figura vestida de negro a olhar para mim, com uma fixação tão evidente, causou-me um óbvio desconforto. Fiquei sem ação por uns segundos, até que percebi que ele fez uma vénia com a cabeça e mexeu os lábios como se estivesse a dizer-me algo. Franzi o cenho, sem responder ao cumprimento. 

O vagão do metro parou à minha frente e o foco da minha atenção foi logo desviado. Entrei no veículo e olhei pela janela, mas já não vi ninguém na plataforma oposta. Eu não havia-me enganado. Ele esteve lá e eu já sentia-me sendo perseguido.

- Que droga! Outra vez…

A moça, de pé ao meu lado, riu-se, ao ouvir-me e perceber que falava sozinho.

***

- Por que tu usas esta camisa horrível para dormir?

- O quê? Como é que…

A voz do outro lado da linha telefónica era rouca, mas parecia tranquila, quase provocadora, como se o interlocutor quisesse somente mostrar que sabia do que falava, mas não queria causar um desnecessário furor.

As luzes estavam apagadas e não lembrava de haver vestido aquela peça de vestuário antes de chegar ao quarto, já pronto para deitar. As cortinas estavam fechadas, por isso não compreendi, de imediato, como alguém poderia saber que eu estava vestido com aquela camisa listrada de várias cores, que eu mesmo admitia ser ridícula, mas era confortável para dormir, afinal.

Não acendi as luzes. Virei-me para o lado e procurei algum brilho estranho, como o que delata uma câmara escondida, mas não vi nenhum. Como é que aquela criatura sabia o que se passava dentro do meu quarto. Sentei-me na cama, sem acender as luzes. O gato pulou dos pés da cama, onde estava aninhado e olhou-me a caminho da porta, iluminado pela parca claridade do telefone que eu segurava.

- Não deixes que o gatinho fique sem água. Ele deve ter sede.

- O quê? Que brincadeira é essa?

O sinal de que a linha foi desligada seguiu-se e, para minha surpresa, o gato voltou ao quarto, mas não deitou-se. Fez menção de sair, como fazia quando queria alguma coisa e eu segui-o até a cozinha. Ele parou e olhou-me, sentando-se sobre o tapete azul, onde a tigela de água jazia, vazia, para meu completo espanto.

Enchi aquela e, também, um grande vidro vazio de café solúvel que sempre mantenho cheio de água, em cima da pia, perguntando-me como é que haviam ficado vazios, se ninguém, a não ser eu, tinha acesso ao apartamento. Sacudi a cabeça, como se a afastar um mau pensamento e voltei para a cama, disposto a não mais pensar naquilo, ou não conseguiria dormir.

Seis minutos depois de deitar-me, não exatamente para minha surpresa, o telefone tocou outra vez…

Ouvi a respiração pesada, do outro lado da linha. A mesma voz rouca falou, com tranquilidade, mas firmemente.

- Espero haver-te convencido que temos coisas a conversar. Devemos nos encontrar amanhã à hora do almoço. Não faltes…

- Mas, onde?

- Não te preocupes com isso…


***

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte final: A Batalha)


O sol nasceu como que por encanto. Não que fosse uma coisa inesperada, mas a tensão do momento, pareceu fazer os guardiães esquecerem que o nascer do dia não era a coisa mais natural do mundo. Era como se tivessem tido um lapso de tempo entre a espera e aquele momento, quando um verdadeiro caos se instalou no laranjal.

 A chegada do guerreiro de negro e seu fiel dragão causou uma correria geral.

 Os sete dragões alinharam-se à volta do grande animal pardo, quando este pousou. Era parte da estratégia de distração, mostrar-se mais suscetível, para que sua contraparte estivesse mais liberta, para trazer o terceiro elemento para a batalha, que estava apenas a iniciar-se.

Em seu caminho, porém, o guerreiro encontrava um pai protetor e disposto a tudo para ter o filho do seu lado e um velho cavaleiro, disposto a sacrificar a vida para derrotar o senhor de todo o mal.

 Os dois homens acorreram, tentando impedir a ação do guerreiro inimigo, quando perceberam que ele veio para libertar seu protegido e fazê-lo cumprir sua missão, antes de voltar para o gélido norte.

A investida do guerreiro loiro, entretanto, foi tão violenta, que os homens foram jogados para o lado, como se fossem crianças desajeitadas, quando ele abriu seu caminho para a entrada da caverna, onde seu pupilo estava preso ainda.

A espada do senhor de todo o mal partiu a porta da caverna com um golpe só. O rapaz saiu imediatamente e, apanhando sua própria espada, que estava do lado de fora, tomou lugar ao lado de seu senhor, numa batalha que teria um inevitável e único final.

Por mais que estivessem em vantagem de número, o pai e o amigo estavam, todavia, em evidente desvantagem, tanto pela força e violência dos ataques, quanto pelo treinamento que os dois guerreiros possuíam, bem diferente deles.

Os dragões avançaram contra o pardo, tentando imobilizar seus movimentos, mas sabiam o quão perigoso e poderoso aquele animal era, pois além de ser superior em tamanho e força, era também mais bem preparado que eles, em batalhas contra homens e animais, desde há muito tempo. 

O caçador e o velho retomaram suas posições e a verdadeira luta começou. Nem um nem outro podia antecipar a força com que seus contendores iam atacá-los, mas não foi pouca e, por conseguinte, difícil de segurar por muito tempo. Viram, logo, que estavam em desvantagem e aquela consciência deixou-os, de certa forma, amedrontados.

Os adversários perceberam a fraqueza e, mesmo sem falarem nada, usaram suas forças e habilidades contra os dois homens, que foram derrubados com facilidade.

O tirano ocupou-se do pai do rapaz, enquanto aquele estava a lutar contra o velho cavaleiro. As forças eram praticamente incomparáveis, mas a resistência e o instinto de sobrevivência eram maiores que eles podiam imaginar, por isso tentavam, pelo menos, defender-se. Mas o velho não tinha mais a mesma força de antes e caiu.

O dragão verde-azulado foi em socorro do velho.

O dragão pardo, usando sua habilidade e vigor, logo conseguiu libertar-se, aproveitando a oportunidade e a quebra do círculo de força que os sete mantinham, quando estavam juntos.

Ao chegar perto, o verde-azulado empurrou o rapaz de cima de seu amigo, com uma violência a que ele não era acostumado, de modo a livrar o velho da ponta da espada do outro.

O rapaz caiu de frente, com sua arma na mão. Mesmo com o golpe violento, ele apenas ficou meio atordoado, mas não o suficiente para sentir-se derrotado. Era forte e robusto, muito bem treinado e disposto.

Quando tentou levantar-se, porém, ele sentiu a pressão da garra no seu braço e não teve dúvidas. Agarrou a espada com muita força e desferiu um golpe na pata do dragão, que ficou seriamente ferida, esguichando sangue em grande volume. O guerreiro levantou-se rapidamente, disposto a acabar com o animal, que urrava de dor.

O dragão verde-azulado estava com os olhos arregalados a olhar a cena, de longe, tão surpreso quanto o velho, que erguia-se do chão, um tanto desajeitado.

O guerreiro negro vinha correndo em sua direção com a espada em punho, soltando imprecativos em alta voz, ao ver o dragão pardo seriamente ferido, por engano, quando tentava ajudar o jovem protegido. O homem na armadura negra avançou contra o rapaz, com todo seu ódio afluindo para a arma em suas duas mãos.

O rapaz tentou afastar-se, mas não foi bem-sucedido. O outro foi muito rápido. O impacto foi grande e ele perdeu o equilíbrio, caindo de costas no chão, tentando, com sua espada e com toda a sua força, segurar a ira de seu tutor. Espada contra espada, ele sentiu que começava a perder espaço e a sentir a lâmina afiada quase a tocar-lhe a pele.

O homem estava irascível. O dragão era parte dele e feri-lo seria o mesmo que ferir ao senhor dele. O rapaz nem conseguia dizer nada, apenas tentava conter a força extraordinária do homem, mesmo sabendo que ia perder.

No meio do esforço descomunal que fazia para conter a ira do seu tutor, o rapaz balbuciou o que pode, tentando redimir-se.  

- Eu sinto muito! Pensei que fosse o outro dragão…

- Tua missão era destruir os dragões… aqueles sete dragões! Eliminá-los completamente! Não era para ferir o grande dragão pardo, rapaz estúpido!

 - Eu sinto muito!

 De repente, o homem, que estava com o rosto muito próximo do rapaz, impelindo a espada contra seu pescoço, arregalou os olhos e afrouxou a força que estava fazendo. O rapaz empurrou-o para o lado e levantou-se, deixando o outro a cair pesadamente sobre o solo.

 De pé, o pai olhava os dois, com o cajado firmemente seguro em suas mãos, após haver batido com aquele na cabeça do guerreiro de negro, seu poderoso inimigo e tutor do filho que, então, mostrava-se completamente confuso, como se não compreendesse perfeitamente o que acabara de acontecer.

Mas o guerreiro de negro não era um páreo fácil, nem desistia sem conseguir o que queria. Rapidamente levantou-se e, com a espada em riste, avançou contra o pai e o filho.

Ambos prepararam-se, quase sem ter muito tempo para voltar a reagir, antes que a arma do homem loiro cortasse o ar com velocidade e violência, atingindo o cajado e a espada, ao mesmo tempo, destruindo o primeiro e fragmentando o metal da segunda, como se fosse feito de material extremamente frágil. O rapaz ficou sem ação. O pai caiu de lado, ao ser empurrado com os pés, pelo homem tomado de fúria combativa.

Sem o cajado e sem poder defender-se propriamente, o homem, mesmo assim, partiu para cima do guerreiro loiro, que desviou-se facilmente, deixando o outro a abraçar o ar e perder o equilíbrio. O senhor de todo o mal voltou-se e partiu para cima do rapaz, que já havia levantado, mas estava desarmado. Ao aproximar-se, ouviu um grito atrás de si e viu que o velho trazia uma espada em sua mão e atirava ao rapaz, que agarrou-a com destreza de um bom e bem treinado guerreiro.

O ato foi apenas em tempo suficiente para defender-se, ainda que mal defendido. O rapaz e seu tutor lutavam um contra o outro com violência, mas o primeiro sabia que estava em desvantagem. Quando aproximaram-se a forçar as espadas, uma contra a outra, o rapaz falou:

- Por que lutamos? Estamos ambos do mesmo lado.

 - Nunca estivemos do mesmo lado! Eu usei-te para conseguir o que queria, mas tu não foste destro suficiente para cumprir a missão e, ainda assim, feriste o dragão errado.

 - Mas não foi de propósito!

O guerreiro de negro empurrou o rapaz e voltou à carga com mais violência, tentando atingir e exterminar seu concorrente.

O jovem estava confuso. Fez o que pode para satisfazer os desígnios de seu tutor, foi-lhe fiel e um exímio aluno e, via-se sendo atacado pelo mesmo, como se fosse um inimigo.

O velho, percebendo o perigo, acudiu o pai do rapaz. Ambos partiram para cima do senhor de todo o mal, juntos e dispostos a morrer para salvar o filho e amigo. Com a atenção desviada da luta contra seu pupilo, o guerreiro loiro voltou-se à sua própria defesa, mas percebendo que os atacantes vinham sem armas, tratou de avançar contra os dois, derrubando-os imediatamente, um sobre o outro, e posicionando a espada no pescoço do caçador, de modo que se trespassasse um, atingiria o que estava por baixo. O rapaz percebeu que tinha que fazer algo e partiu para cima, mas o homem gritou:

- Se chegares mais perto, eu mato os dois. Eu posso morrer, mas, antes, eles vão comigo. 

 O rapaz parou a meio caminho. Tinha que fazer algo, mas estava em desvantagem. Não estava sendo bem recebido do lado de seu tutor e estava sendo defendido pelo seu pai e o velho amigo, os quais haviam abandonado a busca, há muito tempo atrás, deixando-o à mercê do inimigo e senhor de todo o mal.

Sentia-se só, abandonado e enganado, mas algo queimava seu peito, com o calor de um estranho fogo. A espada em sua mão tremeu. O amuleto pendurado em seu pescoço e tocando seu jovem peito ardia como se estivesse fervente. O rapaz, então, parou e percebeu que os dragões haviam-se aproximado.

O grande dragão pardo, ferido gravemente, não conseguia ter forças para atacar. Alguns dos dragões, incluindo o verde-azulado, mantinham a vigília sobre a fera ferida. 

Os três dragões mais jovens, o negro, o dourado e o albino colocaram-se à volta do grupo, mas sem mostrar quaisquer formas de ameaça.

O dragão negro fez um sinal com a cabeça, olhando o rapaz. Este não percebeu imediatamente o gesto, mantendo os olhos firmes nos animais e nos homens, que formavam um grupo bizarro à sua frente. O amuleto queimava sua pele. Ele passou a mão no peito e sentiu-se estranhamente diferente. Olhou todos, aproximou-se dos três homens e falou, baixando a espada e deixando-a cair aos seus pés.

- Deixa-os ir. Eu me entrego no lugar deles. Vou lutar ao teu lado até os fins dos meus dias, mas deixa-os viver! Tens a minha palavra de honra.

O guerreiro ficou tão surpreso quanto o pai e o velho amigo.

O dragão negro acedeu com a cabeça. Ele sabia por qual razão o rapaz havia tomado aquela atitude. Era necessário ter muita força de espírito e caráter para tomar uma decisão daquelas, no meio daquela confusão de personagens, de sentimentos e de atitudes contraditórias.

O rapaz baixou os braços e aproximou-se. O guerreiro de negro ainda hesitou um pouco e então, levantando-se lentamente, mostrou que aceitava a oferta.

 Os dois homens levantaram-se e tentaram, ainda, defender aquela atitude com um ataque ao senhor de todo o mal, mas o rapaz gritou com eles e disse-lhes:

- Eu dei minha palavra. E ela foi dada em troca das vossas vidas. Não vou voltar atrás. Ajudem-me a acudir o dragão pardo, que está ferido. Nós partimos assim que ele recuperar suas forças.

Seu tutor, mesmo estando entre estar desconfiado e acreditar na honra do rapaz, afastou-se, mantendo-se de frente, enquanto o grupo acudia a fera ensanguentada. O pobre dragão estava com a pata bastante cortada e precisou de um torniquete e umas bandagens, mas a não ser por um certa fraqueza causada pela perda de sangue, não estava impedido de voar.

Os dois guerreiros passaram a noite a vigiar, para terem certeza que não iam ser surpreendidos e prepararam-se para partir ao amanhecer, sem se despedir de ninguém.

O dragão negro, entretanto, aproximou-se do rapaz e fez um aceno com a cabeça, numa demonstração de afeto e de aceitação daquele destino, mas, ao mesmo tempo de apoio. De uma forma muito discreta, transmitia a mensagem de que estava disponível, se necessário fosse.

O rapaz passou a mão à volta do pescoço e retirou o amuleto que ali estava pendurado e estendeu-o ao dragão, mas este não aceitou, empurrando a mão do rapaz de volta ao seu pescoço. Este percebeu o que a animal quis traduzir.

O amuleto era seu por direito. Era o único vínculo que ficaria vivo entre os dois lados – o bem e o mal – a lembrar que não há um lado sem o outro e que mesmo o mal precisa do bem para equilibrar-se no Universo.

O rapaz repôs o amuleto à volta do pescoço e foi de encontro ao seu mentor e ao dragão pardo, que estava pronto a partir. Deu uma última olhada para trás e fez um aceno com a cabeça, que foi repetido pelo jovem dragão negro.

 Quando o pai e o velho amigo despertaram, o trio já ia alto no céu, viajando contra a luz do sol da manhã.

Um aperto nos corações dos dois foi, também, compartilhado pelos sete dragões.

Todos os personagens sentiram que aquele não era um fim definitivo, mas sabiam que aquela decisão tinha consequências graves no futuro de todos.

Lá longe, no alto do azul cerúleo da manhã, sobre as costas largas do dragão pardo, o rapaz mantinha seus olhos à frente, tentando não deixar que aquelas lágrimas que inundavam seus olhos, sua mente e seu coração, fossem percebidas pelo seu mentor, que sentara-se no dorso do grande animal, um pouco à sua frente.

A viagem para o extremo norte ia ser longa. Também ia ser muito fria, como o coração do senhor de todo o mal…

O guerreiro loiro esboçou um leve sorriso. Havia ganho mais uma batalha. Aquela era uma das mais importantes que ele travara, mas a guerra não estava terminada…

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Azul




Se for Azul,

Que eu seja Céu!


domingo, 22 de janeiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte 5 - Amuleto)


Nos olhos do rapaz, aquela mistura de ódio e mágoa deixavam claras as suas intenções. Ele tinha uma missão – uma tarefa a cumprir, para concluir seu rito de passagem, que havia iniciado com uma batalha sangrenta, não muito antes de chegar ao seu último destino.

Não era apenas uma transição para a idade adulta. Era mais uma confirmação de que havia passado, definitivamente, para o lado do guerreiro de negro. Uma vez que ele estivesse do lado de lá, não haveria volta e ele sabia. Era com isso que seu mentor e senhor de todo o mal contava.

Avançando contra o velho, que mantinha-se impávido, sem demonstrar nenhuma intenção de mover-se, ainda com o dragão verde-azulado desacordado a seus pés, o jovem guerreiro descarregava seu desgosto contra a injustiça que acreditava ter sido feita, quando seus antigos amigos deixaram de procurá-lo.

Ele havia sacrificado sua infância e boa parte de sua adolescência, para proteger seu pai, sua família e seus amigos que, afinal, deixaram-no à mercê do mal e de seus mais poderosos asseclas. Agora, passado tanto tempo, sentia que o sacrifício havia sido em vão, pois nunca existira uma contrapartida. O mal o havia acolhido e adotado, como quem o faz à uma criança órfã.

Felizmente ele era, agora, um guerreiro bem treinado em batalhas contra grandes e poderosos inimigos, sem medo de nada e dominado pelas forças do mal. Aquelas características tornavam-no, não somente poderoso, mas, também, totalmente temerário por onde passava.

O mais perigoso tipo de guerreiro não é o que sabe melhor empunhar uma espada ou outra arma qualquer nas lutas, mas aquele que não respeita as regras, não teme a morte, nem sente pesar por quem quer que seja. Estes são capazes de tudo, pois não têm nada a perder.

Ele não tinha nada a perder e nem temia a nada… nem a ninguém.

O velho fechou os olhos e esperou. Chegou a sentir a ponta da lâmina a tocar seu peito, no mesmo lugar onde uma antiga cicatriz ainda latejava, por vezes. Mas a espada não penetrou seu corpo. Ele sentiu o frio contacto do metal na pele e esperou pelo golpe fatal. No fundo, quase desejava por aquele destino. Sentia-se culpado por não haver procurado o rapaz, mais insistentemente, até conseguir trazê-lo de volta para o mundo ao qual pertencia. No fundo achava-se merecedor de um castigo e sentia que não devia lutar contra aquela sentença. Era sua conta a pagar…

O homem abriu os olhos e fitou os daquele que outrora havia sido seu protegido, mas que agora agia como seu carrasco. Eles tinham um brilho estranho. A face trazia um misto de rancor e angústia. A boca estava estranhamente contorcida. Mas a mão do guerreiro tremia, como se hesitasse ou fosse impedido de dar o empuxo final. Ele sentia a lâmina a arranhar sua pele e um pequeno corte abrir-se, deixando um estreito fio de sangue quente e viscoso a escorrer-lhe vagarosamente pelo torso abaixo.

Foi então que o mundo pareceu-lhe revirar completamente ante seus olhos. A espada foi atirada para cima com tamanha violência, que o rapaz perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Uma grande e escamosa pata verde-azulada pousou sobre seu peito, imobilizando-o completamente, com um peso descomunal e causando-lhe sufocamento, por falta de ar.

O velho olhou para o lado, já prevendo a reação do grande dragão pardo, mas aquele estava cercado por seis outros dragões, cada um de uma cor distinta. Atrás dos mesmos, uma face conhecida surgia, com armas de combate nas mãos e correndo em sua direção.

O recém-chegado olhou o rapaz caído no chão e perguntou ao velho:

- Quem é este, afinal?

O velho respirou fundo e disse:

- Aquele que pensávamos estar morto, mas que nunca devíamos ter desistido de procurar: teu filho mais novo!

***

Apesar de amarrado e de estar sob cuidadosa vigilância, o rapaz não parecia sentir-se derrotado. Havia nele uma certa arrogância, como se soubesse de algo que os outros não sabiam. Que trunfo ele possuía, era um mistério que os dois homens não conseguiam perceber.

O pai estava com sentimentos divididos entre a culpa e o amor, tentando perdoar a investida do filho e arranjar desculpas para aquela mudança tão radical. Tinha esperança que o amor que o abandonara fosse mais forte que o mal que o acolhera, mas também sabia que teria muito trabalho para convencer o rapaz a entender seus motivos. Os filhos e os pais quase nunca conseguem entender as razões que movem as ações de um e do outro.

O velho estava assustado. Tinha medo que a imprevisibilidade do rapaz colocasse as vidas dos outros dragões em risco. O verde-azulado já havia sofrido seu tanto e não era merecedor daquilo. O pobre animal precisava apenas de alguma paz, naquela fase de sua longa e atribulada vida, não de mais conflitos e sofrimento.

O rapaz havia mudado profundamente e aquela transformação era extremamente perigosa… para todos.

Os devaneios dos dois homens foram interrompidos por uma grande barulheira do lado de fora. Os dois correram até a clareira, onde o grande dragão pardo havia sido acorrentado firmemente.

Não foi nenhuma surpresa que o dragão aprisionado houvesse escapado e que os outros estivessem tão estupefactos quanto os dois homens. Dois dos dragões, o prateado e o vermelho, haviam sido feridos pela grande fera e estavam a ser acudidos pelos outros, que decidiram ser uma melhor atitude do que perseguir o inimigo, pois sabiam não ter a mínima hipótese de alcançá-lo.

- Isso complica, demasiadamente, as coisas…

- Muito mesmo! Melhor nós verificarmos o nosso ‘prisioneiro’. Eu sabia que algo estava errado.

O rapaz sorria. Era um sorriso estranho. Malicioso. Triunfante.

Embora não tivesse presenciado o que ocorrera lá fora, tinha consciência da fuga do dragão e das consequências que aquele acontecimento teria. Ao chegar sozinho ao seu destino, o animal seria porta-voz das más notícias ao seu senhor. Era de esperar que houvesse uma reação imediata, por parte do guerreiro de negro, um homem extremamente poderoso e vingativo.

Era premente, entretanto, tratar dos animais feridos, antes que o outro voltasse com reforços. Todas as forças do bem tinham que estar preparadas para a retaliação do mal, o que não seria um combate fácil de travar.

***

Não era de estranhar que o rapaz parecesse tão fora de contexto como naquela ocasião. Sabia que estava preso, mas mantinha uma atitude presunçosa e longe de parecer derrotista. Ele tinha uma missão, afinal, que somente ele e seu protetor sabiam. A esperança de ser liberto e salvo pelo guerreiro de negro era grande e quase uma certeza de sua parte. Se ele o fosse, porém, todos sabiam que ele estaria total e definitivamente voltado para o lado do mal.

Para o pai e também para seu velho amigo, ele era instável e perigoso como um animal selvagem, aprisionado e prestes a enfrentar a tudo e a todos para salvar sua pele. Ainda severamente magoado pelos acontecimentos do passado, era capaz de tudo.

Veio a noite e, com ela, a densa e imprevisível escuridão. Toda e cada hora, minuto e segundo, eram preciosos e imponderáveis. Tudo podia acontecer de um momento para o outro, por isso uma cuidadosa vigília era indispensável.

Os dragões tomaram turnos à porta da caverna, onde o rapaz era mantido prisioneiro.

A madrugada demorava a chegar e ele era atormentado por expectativas, como as que tinha quando esteve prisioneiro do senhor de todo o mal. Ele não dormia um sono tranquilo. Era acordado muitas vezes por qualquer ruído mínimo que atingisse seus ouvidos treinados. Ele levantou a cabeça e olhou para fora, tentando focar a vista na entrada da caverna, onde uma silhueta recortou-se contra a faixa muito ténue de luz que subia por trás do laranjal, anunciando a chegada do dia. À aquela, juntaram-se outras duas, muito semelhantes.

Ele sentou-se e ficou quieto a observar. Quando conseguiu acostumar a visão à pouca luz, percebeu que os três dragões mais jovens, encarregados da vigília daquela noite, estavam ocupados a bicar um objeto conhecido dele. O dragão negro, conseguiu quebrar o pequeno lacre de cera que havia na empunhadura da espada que pertencia ao jovem guerreiro, revelando um pequeno objeto oculto por baixo daquele, numa pequena cavidade feita com o propósito de esconder, de tudo e de todos, um amuleto, que eles lhe haviam dado, ao que parecia haver sido há uma eternidade atrás.

Com a ponta da unha, o dragão recolheu o pequeno amuleto e estendeu ao rapaz, através da grade à porta da caverna. O rapaz segurou-o na palma da mão e lembrou, pela primeira vez, desde muito, por qual razão havia escondido o presente recebido para sua proteção. Ele fechou os olhos e ficou em silêncio por uns momentos. Depois abriu os olhos e a mão, novamente, olhou para fora e atirou o minúsculo objeto para longe de si. O dragão recolheu o amuleto do chão e devolveu-o ao seu legítimo dono, mais uma vez. Por mais que tentasse negar ou refutar, aquele pequeno presente era seu. Por mais que ele quisesse acreditar que odiava aqueles personagens e tudo o que vinha deles, não podia negar seu passado.

O jovem guerreiro atirou o objeto mais uma vez para longe e mais vez o dragão recolheu-o e devolveu-o a ele. Ele percebeu que o animal não desistiria enquanto ele não ficasse com o que lhe pertencia. Então, para evitar repetir a ação, pendurou-o no pescoço. O dragão negro acedeu com a cabeça e afastou-se um pouco da porta.

A luz da madrugada já fazia a paisagem mais visível, especialmente o céu. O rapaz olhou para cima e seus olhos avistaram, muito ao longe, uma estranha figura vindo, por detrás das brancas nuvens, pouco iluminadas pelo sol da manhã.  

Ele sorriu. Faltava pouco, agora.


***