- Tens medo?
- Tenho.
- De quê? De mim?
- Não devo responder a isso. Não é muito justo...
Ele olhou-me com uma expressão meio pedinte, quase irresistível. Eu sentia
que devia dizer-lhe o que se passava na minha cabeça...
- Tenho medo, às vezes, dos meus próprios demônios...Não devo condenar-me
por isso, entretanto.
- Não precisas temer. Relaxa e deixa-te levar. Não te quero nenhum mal.
- Se fosse assim tão fácil...
Ele riu. Não era por troça... parecia ser mais por complacência.
Talvez quisesse que eu ficasse mais à vontade. Eu sabia, entretanto que não era
tão fácil.
- Feche os olhos.
- Nem pensar...
- Não tenha medo. Não vou-te machucar. Só quero que relaxes. Vamos lá.
Eu obedeci, apesar da apreensão que sentia. Ele tocou-me o rosto, muito
levemente. Eu abri os olhos. Ele passou-me os dedos pelas pálpebras e fez-me
fechá-las outra vez.
- Shh... Acalma-te. Não pense em nada de mal. Eu não vou fazer nada que não
queiras.
(Ali estava um problema. E se eu quisesse tudo? E se não quisesse nada? E
se eu perdesse o controle? Oh, meu Deus!)
Ele tocou-me o lado da face, passou-me as pontas dos dedos mornos pelos
lóbulos das orelhas, pelo pescoço, pela nuca e subiu, com os dedos entre meus
cabelos e foi além, massajando minha cabeça com destreza e puxando-a um pouco
para trás. Senti o calor de seus lábios macios na minha testa, nos meus olhos,
no meu rosto e, finalmente, no canto da minha boca, a roçar meus lábios, muito
de leve. Eu gemi, baixinho. Ele passou os lábios muito tenuemente sobre os
meus, mas sem fazer qualquer pressão. Eu movi os meus.
- Shh... Não. Deixes que eu te beije. Não faças nada... ainda...
Sua voz era um sussurro e eu quase nem percebia muito as palavras,
mas entendia a intenção. Ele beijou-me o queixo, o pescoço, o peito e, abrindo
um botão e afastando um pouco o tecido para o lado, procurou, na extensão da
pele arrepiada, um dos pontos mais sensíveis do meu corpo, que já estava à
espera do calor de sua boca e, não surpreendentemente, pela ponta da língua,
que ali brincou por uns instantes. Ele abriu mais uns botões e beijou-me um
pouco mais abaixo, virou-se um pouco na exploração e beijou-me acima e abaixo
do umbigo, descendo devagar, a roçar minha pele com a barba macia, que
causava-me sensações estranhas por onde passava. Todos os meus poros estavam em
estado de alerta, à espera que ele descesse um pouco mais, mas, ao invés disso,
ele começou a subir, beijando-me, por uma linha imaginária, desenhada bem ao
centro do meu corpo, até chegar-me à boca, naquilo que pareceu-me um lapso de
tempo tão difícil de saber se havia sido longo ou curto.
Sua boca era morna e seus lábios extremamente macios a pressionar os meus
e, desta vez, permitindo-me responder ao tépido contacto. Ele não forçou mais
do aquele toque superficial de lábios e levou a boca ao meu ouvido, sussurrando
as palavras que eu já sabia que ia ouvir.
- Ainda tens medo?
- Tenho...
Ele abraçou-me ternamente, deixou-me sentir o calor de seu corpo e esperou
que passasse meus braços em volta do seu corpo e relaxasse, antes de falar,
novamente, muito baixinho.
- Não tenhas...
Ele soltou-se, olhou-me nos olhos, enquanto suas mãos voltavam a abotoar-me
a roupa que ele mesmo havia aberto alguns minutos antes. Voltou a beijar-me os
olhos e, depois, as mãos.
- Vamos?
- Vamos!
Ele girou a chave na ignição e conduziu, em silêncio, pela avenida à orla
do mar, que à aquela hora pareceu-me um imenso manto negro, a gritar-me, numa
linguagem que eu não percebia, palavras que eu não conseguia distinguir se eram
de alerta ou de incentivo. Minha mente estava numa completa confusão, em um
turbilhão de sentimentos, dúvidas e perguntas. Ele não falou nada. Nem eu,
tampouco. Quando ele saiu da avenida e tomou a direção de uma região que não
era a de onde partimos, inicialmente, eu não fiz perguntas, não comentei, nem
protestei. Apertei uma mão contra a outra, numa espécie de desconforto e olhei
para fora.
Ele colocou a mão sobre a minha e sorriu, sem dizer nada. Esbocei um
sorriso meio sem graça. Felizmente havia pouca luz dentro do carro, exceto
quando passávamos pela iluminação pública, que ia, aos poucos e constantemente,
dando flashes da expressão estranha, ainda estampada na minha
face.
***
O raio de sol que entrava por uma brecha na cortina mal fechada caiu-me em
cheio sobre o rosto e os olhos. Tentei concentrar-me no que havia à minha
volta. Minha cabeça estava às voltas e eu não tinha muita certeza de onde
estava. Apesar de a cabeça doer-me e dos olhos demorarem um pouco a focar,
reconheci o quarto e a cama na qual estava.
Uma batida na porta despertou-me completamente e de uma vez. Levantei-me às
pressas e dirigi-me à porta, que abri de imediato. A camareira olhou-me com uma
expressão engraçada, tentando desviar o olhar do meu corpo nu.
-Posso arrumar o quarto?
- Hum... Claro... Pode entrar.
Enfiei-me na primeira porta e tranquei-a. Precisava de um duche com muita
urgência. Ainda não conseguia pensar nos detalhes da noite passada. Abri a água
morna e entrei no banho, tentando resgatar pedaços de mim, enquanto ensaboava o
corpo, com energia.
('Meu Deus', pensei. 'O que foi que eu fiz?')
- Vai precisar de mais toalhas?
- Ahn? Não, agradeço. Já estou de saída.
Abri a porta, com a toalha enrolada no corpo e saí para o quarto, enquanto
a camareira entrava na casa de banho, para completar o serviço. Apressei-me a
vestir-me e sair, antes mesmo de ter outro encontro com a mulher da limpeza,
que murmurava uma canção, enquanto lá estava a trocar toalhas, material de
higiene pessoal e a lustrar o piso com uma esfregona. Bati a porta atrás de mim
e fui até a receção. A conta estava paga. O pequeno-almoço ainda estava sendo
servido, no salão ao lado da receção, mas decidi sair, sem comer.
Meu estômago estava às voltas, assim como minha cabeça. À porta, chamei um
táxi, para voltar à minha casa, tentando concentrar-me nos detalhes, muito
pouco nítidos na minha memória, apesar de haver passado apenas algumas horas,
desde que havíamos chegado a aquele lugar.
(Concentra-te! O que foi que fizeste?)
Fechei os olhos. Eu precisava recordar. Não lembrava de alguma vez haver
tido qualquer espécie de blackout como aquele. O que é que
impedia-me de lembrar? Eu perguntava-me vezes e vezes, mas não conseguia
resposta.
Chegamos ao meu destino, sem que eu percebesse o caminho por onde viera. O
taxista disse o valor da corrida e eu apressei-me a buscar a carteira, para
pagá-lo. Junto com as poucas notas no compartimento da frente, havia um pedaço
de papel dobrado, com o timbre do hotel, que eu tinha certeza não o haver
colocado ali. Paguei o homem e cruzei a larga calçada.
Minha mão, enfiada no bolso do casaco, segurava, firmemente, o pedaço de
papel dobrado. Minha ansiedade impedia-me de pensar logicamente. O maldito
elevador ainda resolvia estar preso em algum andar, pela demora que levava para
chegar, como se quisesse caçoar do meu desespero e confusão. Eu tentava não
mostrar apreensão às outras pessoas paradas em frente às portas metálicas, no hall do edifício.
Quando, finalmente, entrei no apartamento, esqueci todo o resto, tirei a
mão do bolso e desdobrei o papel. Havia uma mensagem escrita, numa caligrafia
que eu já conhecia. Meus olhos pousaram sobre as letras e as palavras, que não
pareceram fazer muito sentido à primeira vista.
- Mas, que diabos!?...