domingo, 13 de abril de 2014

Anno Domini: 4553 (Epílogo: Irmãos)



O rapaz alto, de cabelos longos, escuros e visivelmente sujos, observava a invulgar figura a passar pelo outro lado da rua. Bebia um café amargo, preto e forte, fingindo olhar distraidamente para o lado de fora da janela, mas tinha, por instinto, todos os sentidos em estado de alerta. O rapaz estava visivelmente maltratado pelo tempo, com barba comprida e desmazelada, pele e roupas sujas e aspecto de um andrajoso mendigo morador de rua. Aparentava bem mais que os seus parcos vinte e poucos anos de idade, boa parte dos quais vividos a esconder-se nos túneis dos esgotos da cidadela e a fugir dos assassinos do pai, o cientista que havia morrido num incidente causado pelo puro e inescrupuloso interesse económico-financeiro da poderosa indústria química e farmacêutica, quando ele era ainda muito jovem.

O cientista e o filho pré-adolescente haviam sido perseguidos por terem em seu poder uma vacina que agia diretamente no DNA dos seres humanos, aumentando, espontaneamente, a capacidade de combater as doenças e enfermidades, mantendo as células revigoradas e permitindo-lhes, desta forma, ampliar a expectativa de vida.

A irmã havia desaparecido misteriosamente após um ataque à casa onde estava escondida, no lado oposto da vila. O menino afirmava tê-la visto fugir, em companhia de um homenzinho estranho, pouco antes de desaparecer, mas ninguém, além do pai, acreditava nele. Sem saber se ela havia efetivamente conseguido fugir, sem notícias nem vestígios do corpo, o pai e o irmão refugiaram-se dos assassinos nas dependências do laboratório de uma universidade, cujo chefe da unidade de Pesquisa e Desenvolvimento tinha especial interesse no seu experimento. Através de um contacto dele, foi negociado que a fórmula e uma amostra da vacina seriam enviadas a um programa ultrassecreto, onde estariam reunidos os mais brilhantes cientistas do mundo, em uma estação espacial experimental, que objetivava a viabilidade de povoar outros planetas.

O menino estava ausente, no liceu do campus da universidade, quando o laboratório foi invadido, revirado e destruído. O pai havia sido torturado e assassinado e ele passava a correr sério perigo de vida. Aconselhado a esconder-se, até a ameaça passar, pelo amigo do pai na unidade de Pesquisa e Desenvolvimento, o rapaz viveu como pode, com o pouco que obteve do tutor, até não lhe restar mais nada, além de um asfixiante desejo de vingança, que foi crescendo com o passar dos anos.

Apesar da falta de evidências, porém, ele sentia que a irmã estava, de alguma forma, a salvo e, por isso, passou a procurar, desesperadamente, uma maneira de encontrá-la. O homenzinho que passara do outro lado da ampla calçada, onde os transeuntes passeavam ao sol, lembrava-lhe alguém que ele vira há muito tempo atrás. Os olhos profundamente verdes acompanharam o estranho até ele quase desaparecer do campo de visão. O rapaz levantou-se e dirigiu-se à porta, para ver a direção a seguir. Não queria perder de vista a sua oportunidade de ter certeza que ainda havia algo pelo que lutar, além de sua sede de vingança e destruição.

A explosão que seguiu-se, assim que chegou a porta, foi suficiente para pô-lo a correr em desabalada carreira pelo calçadão da Rambla, desviando dos transeuntes e frequentadores dos bares e restaurantes, que não percebiam o que acabara de acontecer. Até então, ele não sabia que estava sendo observado de perto por seus velhos algozes. Escapara por um triz, mas os outros frequentadores do pequeno Café não tiveram a mesma sorte. Sem poder fazer nada além de fugir, ele tomou um desvio à sua esquerda e entrou no movimentado Mercado Público, onde poderia passar por um simples transeunte apressado. Livrou-se do casaco, roubou um chapéu de palha trançada e um par de óculos de sol e saiu pelos fundos da área onde havia o comércio de pescado. Já do lado de fora, seguiu, a largos passos, até a praia. Jogou a camisa, as calças e os sapatos no lixo, ficando somente com os calções que lhe serviam de cuecas. Foi então que avistou dois homens vindo na sua direção.

Tentando manter a calma e para não dar muito na vista, entrou pelo grande tubo de esgoto que levava aos labirintos obscuros das galerias, que tanto conhecia. Correu como nunca na vida, descalço e sem roupas, deixando pelo caminho o chapéu e os óculos e entrando por vários desvios, de modo a dificultar sua perseguição. Foi quando ouviu o som de passos, num dos túneis à sua frente, que parou e escondeu-se atrás de uma coluna de concreto. Com extremo cuidado, espiou a sombra que se movimentava à sua frente e preparou-se para o combate.

O homenzinho estava entrando por uma pequena fenda atrás de uma das colunas, quando foi atacado. Puxado com violência para o meio do túnel, seus olhos mostravam um pavor que o rapaz nunca havia visto antes. Ele protegeu o rosto com os braços pálidos, tremendo de medo e sem conseguir dizer nada. O rapaz reconheceu-o como o estranho transeunte que observava do lado de fora do Café. Ia começar a interrogá-lo, quando ouviu passos atrás de si. Instintivamente puxou o homenzinho para um canto, cobrindo a boca do mesmo com sua mão grande e suja. Os dois perseguidores passaram correndo por eles, sem percebê-los e foram-se afastando. Ele afrouxou a mão da boca do prisioneiro e fez um sinal para o mesmo ficar quieto.

O homenzinho aproveitou o momento, virou-se e empurrou o rapaz para a fenda atrás da coluna, fazendo-o perder o equilíbrio, mas colocando a si mesmo exposto no meio da galeria. O rapaz ainda ouviu o som de um tiro e depois outro, seguido de uma explosão. Fechou os olhos e deixou-se tombar.

Segundos depois ouvia o som estridente de uma sirene, quando caiu no meio de uma sala pouco iluminada. Um forte facho de luz branca, vindo de um ponto no teto, acendeu-se à sua volta, limitando-lhe os movimentos a uma área muitíssimo restrita.  

Um alerta no sistema de segurança indicava que um intruso tentara penetrar nos terminais sem autorização. Sem o código de segurança implantado, ele aguardava na sala intermediária do Limbo, para questionamentos. Seria devidamente higienizado, ficaria em quarentena e deveria ser interrogado, até ser libertado... ou não.

***

- Eu esperei por longos anos. Como pudeste fazer isto connosco? Não pensaste no que deixaste para trás? Não tentaste voltar?

- Eu não podia voltar. Não tinha permissão para tal e não podia colocar em risco a segurança dos outros.

- Foi ele, não foi? Ele quem te induziu a ficar do lado de cá…Como pudeste fazer isto, Leona?

- Isso aqui é o futuro, meu irmão. Esta sociedade desconhece a violência, a ganância, a maldade... e também a beleza e o prazer... Nós, para eles, somos aberrações pertencentes ao passado...não temos nossos desejos, nem as vontades satisfeitas...

- Leona, me tire daqui. Eu sou teu irmão!

- Eu não tenho como fazer isso, por mim própria, mas vou tentar, mesmo assim, convencer o Conselho a libertar-te.

***

- Quando nós chegamos à esta galáxia, há muitos anos atrás, nosso único intuito era preservar a nossa vida e reproduzir o habitat de nosso planeta-casa anterior. Nossa intenção foi de dar à nossa raça sobrevivente, condições de vida. De vida, somente. Não quisemos aceitar que éramos uma estirpe falida e em extinção, como tantas outras que deixamos, por descuido ou propósito, desaparecerem por completo da face da terra. Este planeta era árido e sem vida. Nós tentamos reproduzir a sobrevivência, através do processamento das condições naturais, filtros e reutilização do Oxigénio e outros elementos essenciais. Nossos cientistas eram os mais especializados – a elite dos cérebros mais brilhantes da casta mais douta, selecionados para instalar uma estação de sobrevivência fora da Terra. Quando a estação foi trazida, tínhamos poucas esperanças, por isso fizemos o melhor que pudemos, para construir a 'Acrópole' e extinguir o medo e a insegurança.

Quando conseguimos reprogramar os terminais de transporte, para fazer as viagens também através do tempo, conquistamos um grande marco na nossa história. Tínhamos porém que ser cuidadosos, para não trazer ou levar problemas para onde íamos ou de onde vínhamos. Por este motivo o controle dos terminais de tempo passou a ser atribuição do Conselho.

Como é de vosso conhecimento, os membros são escolhidos por meio de testes de aptidão científica e ainda pelo discernimento e controle emocional. O chefe tem ainda que ser o mais votado, em sessão secreta, por todos os membros do Conselho e ainda tem que ser submetido a uma outra bateria de testes de cunho psicológico. Além de ser especialista em ciência, tem que saber exprimir-se em público e ter controlo emocional suficiente para não provocar o pânico, quando alguma tragédia for reportada.

O que temos em nosso terminal de segregação é um visitante do passado. Ele é filho do grande cientista que desenvolveu a imunidade, que hoje utilizamos e que nos permite viver tão longa e saudavelmente. O que vos peço é que considerem permitir-lhe viver entre nós. O meu voto já foi dado. O vosso é necessário. Votem conscientemente, por favor. O Conselho voltará a reunir-se em dois dias.

***

O chefe do Conselho parecia cansado. Ele sabia que a decisão não era fácil para os membros do Conselho. A responsabilidade sobre a decisão era grande demais, por isso tinha que ser muito ponderada, antes de expressa. Eles experimentavam, naquele momento, uma emoção que há muito não sentiam: medo!

- Leona, agora é uma questão de tempo. A decisão não é minha, somente, como tu sabes.

- Eu sei, meu querido. Sei o que se passa na cabeça de todos e também sei quão difícil será tomar a deliberação. Agradeço muitíssimo a tentativa.

Leona havia sido trazida há bastante tempo atrás. O conceito de beleza e paz havia mudado desde que viera. Ela fora apresentada como a filha do cientista responsável pela longevidade dos habitantes daquele planeta e era vista e respeitada como uma personagem a ser protegida.

- É tão difícil...

- Eu sei, meu amado... eu sei...

- Meu mundo sempre foi frio e monocromático...Nós somos cientistas, não somos guerreiros, nem artistas. Ensina-me, Liana. Eu quero aprender a ver mais beleza nas coisas.

- Meu amado, ela está nos olhos de quem a vê. A razão é, por defeito, míope e não vê a beleza com os mesmos olhos que a emoção a vê.

Ele olhou a mulher com um carinho que não lembrava haver sentido antes. Ela era sábia e segura de si; uma ilha no meio do oceano imenso de incertezas e inseguranças em que o mundo dele vivia. Os olhos, verde-esmeralda, eram tão expressivos, que ele às vezes não precisava de palavras para saber o que ela sentia. Os lábios eram bem desenhados e impressionavam quando ela abria o sorriso de menina e praticamente incendiava a alma do homem, cuja responsabilidade sobre a vida daquela gente, era imensa. Ao estar com ela, ele quase podia esquecer o peso da carga que trazia sobre os ombros.

- Ensina-me mais, por favor. Eu gosto quando tu falas. A tua sabedoria é-me valiosa e deixa-me perplexo, enchendo meu coração de calor e...

Ele hesitou, por uma fração de segundo, apenas. Ela fingiu não perceber. Olhou para ele, como tentasse ler o que havia por trás daquela estranha parada no discurso, mas ele já continuava a falar.

- … de vontade de viver…

Ela continuou, sem deixar transparecer haver percebido a pausa, mas, lá no fundo, seu coração apertou.

- O que importa não é a velocidade, nem a quantidade de coisas que se faz. Tampouco é o exagero. A intensidade é que conta. O sabor das amoras, do chocolate e o aroma do café, o cheiro da terra molhada pela primeira chuva… tudo aquilo que te deu prazer em fazer, em usufruir, em sentir. Isso é o que conta…

Ele desconhecia aquelas sensações. Em seu mundo não havia aroma de café, nem sabor a chocolate ou amoras… Olhou-a como se não percebesse muito bem o que ela queria dizer. Os olhos de Leona brilharam, como se ela tivesse tido uma ideia repentina. Ela sorriu e disse:

- Como o toque das asas das borboletas na pele, então… Faz mais sentido?

Ele assentiu, sorrindo. Aquela era uma sensação que conhecia e que havia despertado nele um interesse inesperado por viver. Ele quase esquecia o peso da carga que teria que assumir, em dois dias, em nome da decisão do Conselho.

***

- O que nós fazemos aqui? Não somos um povo conquistador. Não somos um povo preservador, pois já não há nada a preservar. Não deixamos descendentes; então não há legado. Somos cientistas que mantêm a vida, sem saber direito o porquê. Nossa raça está em decadência… e em depressão. O passado pode nos ensinar a viver o futuro com mais consciência da beleza, pelo menos...

Ele olhou na direção da mulher com a cabeça coberta por um capuz, que escondia boa parte de sua face, mas cujos lábios eram evidentes. Numa multitude de cabeças, quase todas tão iguais, ela destacava-se. Ela ergueu a cabeça e seus olhos pareceram brilhar, ao fixarem nele. Um aperto na garganta quase impediu-o de continuar.

- Vamos ao veredito...

Leona era o único motivo pelo qual ele havia mudado completamente o modo de pensar, nos últimos tempos. Ela havia trazido vida a quem não tinha objetivos e beleza a quem já não sentia prazer em viver. Ele tinha medo de decepcioná-la, se o Conselho tomasse uma decisão desfavorável.

***

Leona abraçou o irmão com ardor. A sentença havia sido dada. Ele passaria por um período probatório, convivendo com os novos humanos da 'Acrópole'. O Conselho iria reunir-se dentro de alguns meses, para tomar a decisão final, baseada no comportamento dele.

O chefe do Conselho entrou no aposento e sorriu ao ver os irmãos abraçados. Leona desvencilhou-se do abraço do irmão e correu em sua direção, com um sorriso do tamanho da gratidão de sua alma.

- Obrigada, meu amado. Sem ti, isso nunca seria possível.

Ela abraçou-o e beijou-lhe os lábios. Fora tomada por uma alegria sem limites e uma sensação de alívio, como há muito não sentia. O irmão aproximou-se e estendeu a mão ao amante da irmã, com um sorriso um tanto sem jeito.

O homem abraça o cunhado, com carinho. O outro retribui o abraço, primeiro levemente, depois com mais ardor e, em seguida, com uma força descomunal, que o chefe do Conselho não sabia que existia. Seu corpo era frágil demais, perto do outro, que apertou-o até ouvir uma série de estalos nos ossos das costelas e o homenzinho começar a esmorecer.

Quando Leona percebeu o que estava acontecendo, gritou-lhe, desesperada, que parasse. O rapaz libertou o homem, que já sangrava pela boca e nariz e caía ao chão, desfalecido.

O rapaz tentou puxar a irmã pelo braço, mas naquele momento um grupo de homens da segurança entrou no aposento e imobilizou-o com uma descarga elétrica de um poderoso 'taser'. A arma nunca havia sido usada antes e o choque deixou-os um tanto apavorados, mas conseguiram conter-se e levar o rapaz, desacordado, de volta ao Limbo.

Leona chorava abraçada ao corpo do amante. A respiração era fraca... difícil...

- Tragam um médico, urgente!

O segurança saiu correndo pela porta afora e deixou-a sozinha, ajoelhada no chão, ao lado do chefe do Conselho, que abriu os olhos, vagarosamente, com um esforço enorme. Sua face mostrava tanto a dor física quanto a da decepção. Sua mente já não conseguia pensar claramente e ele sentia um rio de sangue a inundar-lhe o peito, vindo do pulmão perfurado pelos ossos quebrados das costelas. Ela viu que a vida dele estava por um fio e disse-lhe chorando:

- Foi minha culpa. Eu nunca devia ter deixado...

 - Liana… Eu cometi um erro. Queria ter vivido mais e visto mais coisas; mais beleza, mais prazer... Ah, minha amada Liana...

A moça tenta rir daquela piada comum entre eles. Ela chega-lhe ao ouvido e diz:

- É Leona, meu amado. O nome é Leona…

Ele levanta a mão pálida e frágil e toca-lhe a face, esboçando um sorriso totalmente desajeitado.

- Tu és tão linda!

Ela segura a mão dele contra a face e sente que a vida já não estava mais presente naquele ser tão frágil e pálido, que ela amou tanto. Os olhos encheram-se de lágrimas e um desespero assolou-lhe a alma.

Aquela sociedade nunca havia presenciado a morte daquela forma, como ela havia visto. Os tempos haviam mudado... mas jamais tal violência seria permitida repetir-se...

A moça levantou-se séria e dirigiu-se à sala de segregação do Limbo, disposta a colocar um fim, de uma vez por todas, à qualquer tendência à violência contra aquela raça...


***

sábado, 5 de abril de 2014

Anno Domini: 4553 (P3: Leona)



- Eu preciso voltar a falar com ele. Preciso saber o que aconteceu…

- Não. De jeito nenhum. Não podemos deixar-te arriscar. Tu viste a agressividade dele. Ele é violento e perigoso.

- Ele é meu irmão!

- Não sabemos disso ainda. Pode ser uma estratégia para nos enganar. É preciso muito cuidado.

- Eu conheço aqueles olhos e conheço a tatuagem. Não pode ser um engano!

O chefe do Conselho estremeceu um pouco, diante da menção à tatuagem, mas não deixou-se fraquejar. Segurou-lhe firmemente ambos os braços, com suas mãos pálidas de dedos longos e aparentemente frágeis. Ela parecia impassível e ele já não sabia como chamá-la à razão. Os olhos grandes de Leona pareciam, agora, duas esmeraldas banhadas por fontes de águas cristalinas. Ele sabia que estava prestes a perder uma das muitas batalhas que travara com ela, vezes e vezes sem par. Esta era outra daquelas que sabia não ter muitas hipóteses de vencer. Ele quase não conseguia resistir à súplica no olhar daquela mulher.

- Por favor…

- Liana, use a razão, por favor. Todo cuidado é pouco!

- O nome é Leona!

Ela não conseguiu manter a seriedade depois de ser chamada pela alcunha que ele lhe havia dado, há muito tempo atrás. Ela riu, mas lágrimas insistiram em turbar-lhe a visão clara das coisas. O homem puxou-a para si e abraçou-a com firmeza e carinho. Ela soluçou aninhada ao peito dele. Seu corpo escondia a fragilidade, protegida pela veste longa a cobrir-lhe da cabeça aos pés. O capuz escorregou-lhe, deixando à mostra a cabeça bem desenhada e muito diferente, em formato, daqueles seres contemporâneos que viviam à sua volta. Os cabelos, cortados muito curtos, davam a impressão que seus olhos fossem enormes…

- Eu só quero proteger-te. Não quero expor-te a um perigo desnecessário. Já passamos por perigos maiores... antes...

- Ele é meu irmão!

A voz era um sussurro desesperado, mas impotente, abafado pelo contato no peito do amante. Ele apertou-lhe o corpo, mais firmemente, contra o seu. Ela aninhou-se dentro daquele abraço. Naquele momento as memórias invadiram os pensamentos de ambos com tanta nitidez, que pareciam estar juntos no mesmo processo mental.

***

- Leona, use a rota de fuga e leve-o daqui, depressa, antes que eles o descubram.

A ordem do pai era inquestionável. Ele sabia do perigo que corriam e tinha que proteger a ambos, a qualquer custo. Alguém acabava de passar pelo sensor do alarme na entrada da propriedade onde ficava a casa em que estavam.

Eles vinham sendo constantemente atacados por um bando de assassinos, contratados por uma poderosa cooperativa químico-farmacêutica, que não tinha interesse nenhum em que suas pesquisas dessem certo, pois colocariam em risco o comércio de drogas e fármacos e, consequentemente,  os resultados estupendos daquela lucrativa indústria.

O Doutor era um renomado - mas humilde - cientista que pesquisava uma vacina capaz de recompor deformidades no DNA dos seres humanos, com o ingénuo intuito de erradicar as doenças e permiti-los viver por mais tempo. Vários testes haviam sido feitos a partir de um profundo e longo estudo do DNA das borboletas Monarca, que possuíam um ciclo de vida muito maior que qualquer outra de sua espécie e apresentavam uma resistência incomum às doenças.

Após uma série de testes, a experiência pareceu, finalmente, dar certo. Além de haver inoculado a si mesmo, como cobaia, a filha do cientista, Leona, também havia testado a vacina, com sucesso. O estranho visitante era a prova que o seu experimento havia tido sucesso. O nome do doutor era parte da história contada no futuro.

O homenzinho havia vindo ao passado, através de um portal de transporte, para contactar o Doutor, acerca da longevidade de sua espécie. Em sua época e no planeta em que habitavam, as pessoas viviam por tempo extremamente longo, livres de quaisquer problemas de saúde física. Uma onda de depressão, porém, começava a assolar os membros mais velhos, que já não viam objetivo nem sentiam prazer em viver por tanto tempo. Ele esperava que o Doutor pudesse ajudá-lo. A interrupção em seu colóquio, deu-se antes mesmo que o cientista pedisse uma amostra de seu sangue, para comparar com o seu e da filha. O interesse científico era-lhe, naquele momento, mais relevante que o problema de depressão da futura geração, mas o doutor escondeu aquela impressão do visitante.

- Venha depressa, pela passagem por trás da casa.

O homem seguiu a jovem, sem pestanejar, ambos protegendo-se contra o ataque repentino. A passagem estava escondida dentro do galpão que ficava na traseira do terreno onde a casa fora construída. Uma espécie de bunker conduzia-os por uma passagem para uma série de túneis, um dos quais levava até um outro edifício, cerca de sete quilómetros longe do local original. Os outros túneis fariam o perseguidor andar em círculos, antes de descobrir o engano. Aquele homem não tinha forças suficientes para correr todo o percurso, por isso precisou de algumas paradas, mas a moça começava a perder a paciência com o atraso na fuga. O pai ficara para trás, para defender-lhes, proteger o filho mais novo e distrair os intrusos.

Ela já havia passado por situação semelhante, mas sabia que seu coração não ficaria tranquilo enquanto não tivesse notícias da origem. Ela e o irmão mais novo já haviam passado por situação semelhante, por isso ela conhecia bem o procedimento e o caminho. A moça olhou o homem de aparência estranha a tentar recuperar o fôlego e deixou de sentir-se incomodada com o atraso. Sentiu apenas pena. Ele percebeu que era observado e olhou-a, com um ar de quem se desculpa. Ela sorriu, meio sem jeito, quase sentindo-se culpada por haver estado impaciente.

- Temos que continuar.

O homem tinha uma expressão desesperada na face. Ela puxou-o pela mão e rumaram para o lugar seguro. Depois de saírem dos túneis e do tal edifício, teriam que passar por um pequeno bosque, cruzar uma clareira e um parque, para finalmente chegar à uma outra casa, que cobria toda a área de um quarteirão, do outro lado da vila.

Ao passarem pelo bosque, esbarraram nos galhos de uma velha conífera, que tinha uma espécie de cobertura viva e colorida em tons amarelo-alaranjados, pretos e com pontículos brancos. Algumas das Monarcas da colônia, à passagem dos intrusos, levantaram voo e começaram a circular à volta deles. O homem parou, encantado com a visão.

- Oh... O que são?

- São as borboletas Monarca.

- Nunca vi nada igual. São… são…

- São lindas! E frágeis…mas estas são as únicas borboletas que têm o ciclo de vida mais longo, que pode chegar a nove meses, se não houver nenhum agente externo que cause sua morte... Como nós… As experiências do meu pai são baseadas nos estudos do DNA delas...

Ele levantou a mão e deixou-se tocar pelas asas dos insetos em voo.  Ela percebeu que ele sorriu, pela primeira vez.

Na casa havia uma cozinha enorme, um amplo espaço, com uma mesa para, pelo menos, doze pessoas. Na sala havia outra, tão grande quanto aquela. Na varanda havia outra, menor.

- Liana – há muitas mesas nesta casa…

- O nome é Leona…

- Oh... Desculpe.

Ele olhou a moça, com seus olhos estranhamente azuis, de um tom escuro, quase ultramar e pediu-lhe:

- Fale-me das borboletas, por favor.

- A migração das Borboletas Monarca  é um dos mais maravilhosos eventos que ocorre em nosso planeta. Começa no final do verão e elas viajam cerca de cinquenta quilômetros por dia. Esse período também marca o nascimento de uma nova geração de borboletas que emergem de suas crisálidas. Essas novas borboletas não acasalarão ou colocarão ovos até a primavera seguinte. Durante o ciclo da migração muitas perdem suas vidas nos obstáculos. No total, as Monarcas viajam quatro mil quilómetros,  para fugir do inverno e a gordura armazenada no seu abdômen garante combustível para um voô  de até cinco mil quilômetros. Acredita-se que as borboletas "economizam" combustível viajando, soltas, a aproveitar as correntes de ar.

- Que coisa absolutamente maravilhosa. Nunca pensei que tal coisa existisse. É realmente fascinante.

Leona olhou aquele homem estranho, com a cabeça praticamente sem pelos, olhos grandes e pele muito pálida e pensou como uma coisa tão banal e que tinha tão pouca importância para muitos, podia impressionar alguém, daquela forma, naqueles tempos conturbados. Quanta coisa simples estava sendo deixada para trás. Quanta beleza passando despercebida aos olhos dos humanos cheios de medos e preocupações banais.

***

- É a terceira vez que eu venho... O que é esta marca no teu braço? Oh. É uma Monarca…

- É uma tatuagem. Não pode ser apagada. Significa muito para mim...

O olhar interrogador do homem para a moça fê-la corar imediatamente. Ela fora surpreendida e não sabia como explicar porque havia feito a tatuagem.

- É tão linda. Como faço para ter uma igual?

O olhar que a moça dirigiu-lhe foi tão terno que o homem sentiu uma sensação desconhecida vir de suas entranhas. Ela aproximou-se e beijou-lhe os lábios pálidos. Uma outra sensação estranha turvou-lhe os pensamentos e provocou-lhe uma série de reações físicas, que ele desconhecia totalmente. Instintivamente, passou os braços à volta dela, apertando-a contra si. Seu corpo reagiu imediatamente e o dela também.

***

- Coça e arde um pouco. É normal?

A mulher olhou o homem deitado a seu lado: o corpo pálido, os braços pouco musculosos e a cabeça grande e quase sem cabelos e pensou na ingenuidade e transparência dele. Ele acariciava, com os dedos longos e pálidos, a tatuagem recém impressa na pele. Ela percebeu que estava cada vez mais envolvida.

- É normal, sim. A tatuagem é um pouco agressiva, no começo, mas ficou muito bonita na tua pele assim tão branca e fina.

A borboleta Monarca tatuada no braço do homem era idêntica à dela, representando o símbolo da transformação e resistência e, também, da fragilidade efêmera da beleza. Passou a ser também a assinatura da relação entre ela e o chefe do Conselho. Agora acostumado com o carinho dela, o homem beijou-a.

- Liana… o que é isso que eu sinto?

- O nome é Leona.

Ele riu. Ela também.

- É afeto, o que tu sentes, meu querido…. Deve ser amor!

Leona beijou-o como se sentisse um misto de desespero e fome. Naquele momento, ele era como um oásis no meio da aridez do deserto de medo e incerteza em que vivia. Quase se sentia segura, ali, protegida pelo calor ameno do corpo dele…

Então, como se os deuses estivessem a brincar com ela, ouviu-se um estrondo vindo da entrada. Ela saltou da cama, com a agilidade de uma gata e espiou pela janela, enquanto vestia uma t-shirt e os jeans surrados. O grupo de invasores acabava de explodir a entrada e entrar na casa. O esconderijo já não era seguro.

- Temos que fugir… agora…

O homem mal conseguira vestir-se, quando ela puxou-o pela mão e correu para o fundo do corredor no segundo andar. Havia ali uma passagem para o lado de fora, através de uma escada, que ficava ao lado oposto da entrada recém-bombardeada. Fazia algum tempo que tal não acontecia e já quase sentiam-se seguros. Um trajeto alternativo até os túneis teve que ser usado. Uma vez lá, tiveram que encontrar a passagem para o portal de transporte. Este havia sido movido para um local seguro, de modo a garantir a volta do homem ao seu tempo e lugar no futuro. Ao chegar lá, ouviram outra explosão e os gritos dos invasores. Leona, mais uma vez, liderou a fuga.

- Vá depressa. Eu fico a salvo. Sei defender-me e tenho que ver como estão os outros.

Ele olhou para a entrada do túnel e viu que os invasores estavam chegando perto demais. Ela gritou que ele fosse rápido. Num cálculo mental rápido, ele percebeu que ela não ia conseguir escapar daquela situação, então ao invés de fugir sozinho, puxou-a para dentro do portal e programou a autodestruição para três segundos depois da transferência. O túnel explodiu antes mesmo de os invasores chegarem perto deles.

***

O som estridente e insistente de uma sirene começou a soar poucos segundos depois. A mulher, abraçada ao corpo do homem pálido, olhou a volta e não reconheceu o lugar. Um facho de luz branca muito forte desceu do teto, criando um potente campo de força à volta dos dois, imobilizando-lhes os movimentos.

Um homenzinho de olhos azuis muito claros olhava-os com um ar bastante grave, entre o de preocupação e o de desaprovação…

A sirene tocava sem parar. Ela olhou o rosto do amante e percebeu que, pela primeira vez, desde que o conhecera, ele parecia constrangido…


***

sábado, 29 de março de 2014

Anno Domini: 4553 (P2: Limbo)




O terminal de transporte ficava na outra extremidade do edifício, onde os cientistas haviam-se reunido inicialmente. Qualquer indivíduo que lá chegasse e não tivesse uma espécie de chip de dentificação implantado num ponto atrás da orelha direita, ou um respectivo código de barras impresso na pele, na mesma região, era automaticamente transferido para a sala de segregação. Uma vez segregado, o transeunte deveria ser devidamente  identificado, reconhecido e transferido para a correspondente unidade. Ironicamente, a área onde ficava a sala de segregação chamava-se ‘Limbo’, por ser utilizada com a funcionalidade de suspender, temporariamente – ou não -, a transferência do passageiro captivo que estivesse sem a identificação, para o próximo nível.  
O grupo chegou ao terminal poucos minutos após sair da sala onde haviam-se encontrado com o chefe do Conselho. O técnico aguardava-os à entrada para levá-los logo ao seu destino. Ao entrar, alguns dos cientistas mais jovens tiveram um choque.
Envolto por um forte campo magnético circundado por um facho de luz branca, que vinha de uma fonte no teto, bem no centro da sala de segregação do ‘Limbo’, estava uma espécie aparentemente desconhecida de humanoide. Com boa parte do corpo coberto de pelos escuros, a criatura parecia ser uma anomalia genética. Os pelos no alto e à volta da cabeça eram mais longos e estavam desgrenhados e sujos. A pele tinha características humanas, mas parecia mais espessa e escura que as dos cientistas a observarem o estranho. Os olhos eram verdes; profundamente verdes. Havia neles uma certa loucura selvagem, claramente estampada. Ele estava aparentemente imobilizado pelo campo magnético à sua volta, mas não escondia uma agressividade manifesta pelos músculos visivelmente desenvolvidos e tensos.
- Já conseguiram comunicação com ele?
O técnico - um homem jovem e alto – respondeu, prontamente e sem titubear, ao chefe do Conselho.
- Ainda não. Ele expressa-se em uma espécie de linguagem que o tradutor automático não consegue distinguir. Já tentamos todas as variantes possíveis e não obtivemos nenhuma solução clara. O pouco que conseguimos não faz muito sentido, por isso acreditamos que deva ser uma língua ou muito nova ou muito antiga.
- E se for um dialeto?
- O tradutor não consegue distinguir nenhum dialeto conhecido… Já não temos alternativas viáveis…
- Acredito que temos, sim.
O chefe do Conselho olhou o homenzinho de frente e com uma expressão preocupada. Os olhos quase transparentes pareciam desafiá-lo.
- Ah, não. Não temos. Esta hipótese nem pode ser cogitada. Não mesmo…
- É nossa única alternativa… ou então mandá-lo de volta.
Desta vez o técnico quase entrou em pânico.
- Mandá-lo de volta para onde, senhor? Nem sabemos de onde veio… nem de quando…
O rosto do chefe do Conselho não escondeu o assombro que aquela declaração causou-lhe. Ao ver-se observado, o humanoide recomeçou a emitir os sons, que vinha repetindo sem parar, desde que fora apreendido, numa língua completamente irreconhecível.
- Ele sempre repete esta mesma fala, no mesmo tom desesperado e agressivo. Parece querer dizer-nos algo importante ou transmitir-nos uma mensagem qualquer… um aviso ou uma súplica...
O homenzinho sabia que não ia ser fácil convencer o chefe do Conselho. Olhou-o novamente com aquela expressão inquiridora em seus pálidos olhos azuis. Mas o chefe já não tinha paciência.
- Continuem a tentar. Reconfigurem o tradutor. Façam algo diferente. Tem de haver uma maneira…
O homem virou-se e saiu apressado, não sem antes olhar novamente para dentro da sala de segregação. Seu olhar cruzou com o do ser envolto pelo campo de luz e ele sentiu uma súbita dor no estômago. Precisava descansar. Aquele não era um bom sinal.
O grupo de cientistas olhou para o homenzinho de olhos azuis, que abanou a cabeça, num gesto de impotência diante de uma autoridade maior que a sua. O brado do intruso, vindo de dentro da sala protegida por um material transparente e resistente começou a deixá-lo muito mais nervoso que já estivera. Não compreendia porque seu superior não concordava com sua alternativa. Ele já havia visto olhos como os daquele humanoide antes e sabia que havia uma forma muito rápida de resolver aquela situação. O homem contemplou a cabine e seu desesperado prisioneiro, que o olhava com aparência cada vez mais insana. Ele ainda não sabia se o pobre coitado gritava imprecações ou se tentava passar alguma mensagem…
- Procedam com a higienização.
Um tubo transparente desceu do teto, à volta do humanoide, quase que imediatamente à ordem do cientista. A sessão de higienização começara. Após a queima total dos pelos, por um processo químico limpo, transformando-os em uma cinza a cobrir o corpo, segue-se uma nuvem de spray húmido e morno que faz a parte de depuração e remoção da cinza e, por fim, uma aspiração completa o processo.
Quando o tubo sobe, o humanoide está bastante diferente. De pé, sem a cobertura de pelos e sem a sujeira, parecia-se muito com os cientistas a observarem-no com curiosidade, com algumas óbvias exceções. Era mais alto, mais musculoso, tinha o formato da cabeça um tanto diferente - um pouco menor que nos novos humanos - mas era humano, com certeza. Havia uma marca impressa na pele do braço, onde os bíceps mostravam-se firmes e desenvolvidos. Aquela tatuagem, agora visível, não passou despercebida ao cientista.
O homem de olhos azuis escondeu um leve sorriso, ao olhar o homem de pé à sua frente, completamente desnudo e desprotegido e soube que estava certo ao propor a alternativa para o enigma da linguagem. 
- Chamem o chefe do Conselho, de volta, com urgência…. Ou melhor: deixem que eu mesmo vou até ele!
***
- Ainda tem dúvida? Temos que trazer Leona até aqui, com urgência. Por mais que tentais evitar, somente ela pode trazer alguma luz à esta questão. Embora queirais mantê-la longe disto, não há como negar que somente ela pode nos ajudar neste momento. Se há uma chave, não há dúvida que ela a possui.
- Pois bem. Façamos o que deve ser feito. Mas que fique bem claro que eu não gosto nada disso.
Os olhos do chefe do Conselho não esconderam a grande preocupação que ele sentiu naquele momento, mas o cientista estava certo. Não era prudente esperar mais, diante da evidência relatada por seu subordinado.
***
Leona chegou-se à frente, para observar melhor o homem dentro da cabine. Ela usava uma veste inteira, de uma peça só, quase justa ao corpo, que cobria-lhe da cabeça aos pés. Um capuz cobria-lhe a cabeça, deixando à mostra muito pouco da face bastante diferente daqueles cientistas, ansiosos por saber se ela conseguia mesmo decifrar o mistério. Seus grandes olhos, profundamente verdes, não pareceram reconhecer aquele ser, mas quando ele levantou a cabeça e avistou-a, sua expressão mudou completamente.
O homem, ao vê-la, jogou-se contra campo de força, gritando algo que parecia-se com a pronúncia do nome dela. O embate contra o campo de força foi tão violento, que o homem foi jogado para trás, caindo sobre suas costas, quase nocauteado. Aquela reação assustou-a imensamente, fazendo com que desse um passo para trás, em resposta involuntária. Ele, porém,  levantou-se, ainda meio tonto e começou a falar a frase que já havia repetido tantas vezes, mas que não fizera nenhum efeito... pelo menos até aquele momento.
Leona falou devagar, tentando mostra-se calma, mas seus grandes olhos eram expressivos demais.
- Ele fala num dialeto muito antigo. Havia muito que eu não ouvia nada parecido.
- E o que diz?
Ela olhou o chefe do Conselho com um ar muito grave, depois baixou o olhar, como se estivesse constrangida. Sua voz parecia, agora, muito tênue, num tom grave, baixo - quase um sussurro - muito diferente daquele que havia usado antes. Evitando olhar o homem de frente, ela passou a informação. Ele teve que fazer um esforço enorme para compreender bem o que ela dizia, mas a mensagem era bem clara.
- Ele disse: devolvam minha irmã!

***

domingo, 23 de março de 2014

Anno Domini: 4553 (P1: Intro)



O som estridente das sirenes ecoou pelos corredores do grande edifício, com uma insistência pouco usual. Em um pequeno espaço de tempo, pessoas começaram a deslocar-se, apressadas, pelas galerias, numa estudada ação de evacuação. Fazia tempo que tal não acontecia e alguns elementos pareciam realmente perdidos no procedimento e limitavam-se a seguir os mais experientes.

O Conselho de Segurança fora chamado às pressas para uma reunião de emergência. A maioria nunca havia participado em nada parecido em, pelo menos, mais de um par de décadas, após o grande blackout que havia acontecido pelo sistema de emergência haver apresentado uma falha.

- Senhores Membros do Conselho. Ainda não sabemos o que aconteceu, mas por medida de segurança, devemos colocar esta unidade em estado de alerta. Não deve ser nada grave, mas se houver perigo, temos que estar protegidos. Não deve ter sido mais que uma falha no fornecimento de energia, como aconteceu uma vez antes, há muito tempo atrás e que não passou de um grande susto para todos nós.

- Há algum perigo de invasão?

A voz daquele jovem, no meio da grande sala, pareceu ribombar, quando o silêncio seguiu-se e caiu pesado como uma rocha sobre o ambiente. Os olhos todos voltaram-se ao rapaz extremamente pálido, de olhos esverdeados, que levantara-se para ter sua pergunta ouvida. O chefe do Conselho falou, com voz calma, mas com o cenho um tanto franzido.

- Invasão? Não acreditamos que seja algo desta natureza. Nós somos um povo pacífico. Não fazemos mal a quem quer que seja, nem temos nada em nosso domínio que alguma outra civilização possa querer tomar. Na verdade, somos uma raça despreparada para invasões ou para guerras. Somos cientistas e estamos preocupados apenas com o bem-estar da nossa civilização e deste planeta.

Uma sombra, entretanto, pareceu passar sobre o semblante sério do Chefe do Conselho.

‘O bem-estar deste planeta estéril… para quê, afinal? Já nem sabemos a razão pela qual ainda estamos cá… nem sabemos porque nos mantemos vivos ou a este sistema sem sentido.’

O pensamento passou-lhe como um flash, abandonando-o logo em seguida, mas deixou o seu incômodo peso na mente do homem. Ele passou o olhar pelas fileiras de cadeiras e sentiu um pouco de pena dos elementos que ali estavam. As faces, tão pouco diferentes umas das outras, demonstravam apreensão. Ele tinha que extinguir qualquer sinal de dúvidas em relação ao perigo, mas não tinha informações concretas ainda, para poder sustentar seu discurso.

- Voltem para seus aposentos. A segurança tratará de mantê-los a salvo. As portas permanecerão fechadas até que se tenha alguma resposta para dar-vos. Agora vão.

A audiência saiu em silêncio e tomou os corredores que davam para as galerias, onde estavam os aposentos. Assim que entravam, o sistema de segurança bloqueava as portas e os monitores ligavam, mostrando imagens captadas por câmeras instaladas do lado de fora do edifício central.

O chefe do Conselho esperou que todos saíssem, evitou o olhar questionador do jovem que fez a pergunta e que o deixara inquieto, virou-se, antes que pudesse ser interpelado uma outra vez e entrou por uma abertura por trás do púlpito, onde estivera por poucos minutos. Dali, teria acesso à sala de controlo central do edifício, onde a segurança lhe daria informações atualizadas sobre o incidente.

Enquanto caminhava pelo corredor pouco iluminado, sua mente trabalhava com rapidez, a preparar-se para o que poderia vir a constatar. As sirenes já lhe soavam bastante distantes e pouco audíveis, mas ainda teriam que permanecer ligadas, até que todos estivessem recolhidos aos seus aposentos. Ele esperava que agora fosse questão de apenas uns poucos minutos a mais.

Entre um pensamento e outro, as lembranças de um passado um tanto remoto iam preenchendo os espaços na mente do chefe do Conselho com uma série de preocupações, que desde há muito tempo já não o assombravam. O homem respirou fundo e entrou na sala de controlo central, onde outros velhos e conhecidos cientistas já o aguardavam, com expressões de preocupação estampadas nas faces. Um outro pequeno grupo entrou na sala, logo em seguida, em silêncio.

- Não me parece nada tranquilizador…

O pensamento saiu-lhe pela boca, antes que ele pudesse controlar ou evitar. Um homenzinho de olhos azuis muito pálidos, quase transparentes, adiantou-se e disse, sem cerimônia e sem demonstrar qualquer sinal de emoção:

- E não é, na verdade… Agora que estamos todos aqui, quero que me sigam até a sala de segregação do Limbo.

O chefe do Conselho seguiu o homenzinho, com uma expressão bem mais preocupada do que aquela com que entrou na sala em que estavam. O caso parecia ser mais sério que ele imaginara. Atrás de si, além do grupo dos mais experientes, um pequeno grupo de jovens cientistas caminhava quieto, mas sem conseguir esconder a carga de curiosidade que sentiam naquele momento. Suas mentes bem treinadas para resolver problemas físico-matemáticos trabalhavam em ritmo acelerado, tentando antecipar o que estava por vir.

Mal sabiam eles que estavam totalmente despreparados para o que iriam enfrentar dentro de poucos minutos.

***

domingo, 16 de março de 2014

Hate Me (And The Big Lie)



Hate me, please.

Don’t pity me

Don’t patronize me,

Don’t look at me like that.

I just can’t stand the way

Your gaze burst

My heart into fierce

Smouldering flames...

Don’t hold my hand

That tightly,

As if you were afraid

Of letting me go;

Don’t look me in the eye,

As if you intended

To read my soul;

Don’t embrace my body,

As if I was running

Away from you...

Because if you look

Deep in my eyes,

Hold my hand,

Or hug me,

Like you usually do,

I will have no escape

But to keep you

In my life

For as long as I can...

(Oh, do not ever consider

Kissing me like that

Once again)...

So, please, my dearest friend,

For the sake of our sanities,

Just hate me

And let me go...

...Before I change

My mind…




Odeia-me (E a Grande Mentira)


Odeia-me, por favor.

Não tenha pena de mim,

Não me proteja,

Não me olhe desta forma.

Eu não posso suportar o modo

Com que o teu olhar

Faz meu coração arder

Em chamas.

Não segure minhas mãos

Tão firmemente,

Como se tivesses medo

De deixar-me partir.

Não me olhe nos olhos,

Como se pretendesses

Ler minha alma.

Não abrace meu corpo,

Como se eu fosse

Fugir de ti...

Porque se tu me olhas,

Assim fundo em meus olhos,

Seguras minha mão,

Ou abraças-me,

Como normalmente fazes,

Não terei escusa alguma,

Além de manter-te,

Em minha vida,

Por tanto tempo quanto eu conseguir...

(Oh e nunca consideres a hipótese

De beijar-me

Uma outra vez, sequer)...

Então, por favor,

Pelo bem da nossa amizade

E pela nossa sanidade,

Odeia-me

E deixa-me ir...

Antes que eu mude

De ideia...