O rapaz alto, de cabelos longos, escuros e visivelmente sujos, observava a invulgar figura a passar pelo outro lado da rua. Bebia um café amargo, preto e forte, fingindo olhar distraidamente para o lado de fora da janela, mas tinha, por instinto, todos os sentidos em estado de alerta. O rapaz estava visivelmente maltratado pelo tempo, com barba comprida e desmazelada, pele e roupas sujas e aspecto de um andrajoso mendigo morador de rua. Aparentava bem mais que os seus parcos vinte e poucos anos de idade, boa parte dos quais vividos a esconder-se nos túneis dos esgotos da cidadela e a fugir dos assassinos do pai, o cientista que havia morrido num incidente causado pelo puro e inescrupuloso interesse económico-financeiro da poderosa indústria química e farmacêutica, quando ele era ainda muito jovem.
O cientista e o filho pré-adolescente
haviam sido perseguidos por terem em seu poder uma vacina que agia diretamente
no DNA dos seres humanos, aumentando, espontaneamente, a capacidade de combater
as doenças e enfermidades, mantendo as células revigoradas e permitindo-lhes,
desta forma, ampliar a expectativa de vida.
A irmã havia
desaparecido misteriosamente após um ataque à casa onde estava escondida, no
lado oposto da vila. O menino afirmava tê-la visto fugir, em companhia de um
homenzinho estranho, pouco antes de desaparecer, mas ninguém, além do pai,
acreditava nele. Sem saber se ela havia efetivamente conseguido fugir, sem
notícias nem vestígios do corpo, o pai e o irmão refugiaram-se dos assassinos nas
dependências do laboratório de uma universidade, cujo chefe da unidade de
Pesquisa e Desenvolvimento tinha especial interesse no seu experimento. Através
de um contacto dele, foi negociado que a fórmula e uma amostra da vacina seriam
enviadas a um programa ultrassecreto, onde estariam reunidos os mais brilhantes
cientistas do mundo, em uma estação espacial experimental, que objetivava a
viabilidade de povoar outros planetas.
O menino estava ausente,
no liceu do campus da universidade, quando o laboratório foi invadido, revirado
e destruído. O pai havia sido torturado e assassinado e ele passava a correr
sério perigo de vida. Aconselhado a esconder-se, até a ameaça passar, pelo
amigo do pai na unidade de Pesquisa e Desenvolvimento, o rapaz viveu como pode,
com o pouco que obteve do tutor, até não lhe restar mais nada, além de um
asfixiante desejo de vingança, que foi crescendo com o passar dos anos.
Apesar da falta de
evidências, porém, ele sentia que a irmã estava, de alguma forma, a salvo e,
por isso, passou a procurar, desesperadamente, uma maneira de encontrá-la. O
homenzinho que passara do outro lado da ampla calçada, onde os transeuntes
passeavam ao sol, lembrava-lhe alguém que ele vira há muito tempo atrás. Os
olhos profundamente verdes acompanharam o estranho até ele quase desaparecer do
campo de visão. O rapaz levantou-se e dirigiu-se à porta, para ver a direção a
seguir. Não queria perder de vista a sua oportunidade de ter certeza que ainda
havia algo pelo que lutar, além de sua sede de vingança e destruição.
A explosão que
seguiu-se, assim que chegou a porta, foi suficiente para pô-lo a correr em
desabalada carreira pelo calçadão da Rambla,
desviando dos transeuntes e frequentadores dos bares e restaurantes, que
não percebiam o que acabara de acontecer. Até então, ele não sabia que estava
sendo observado de perto por seus velhos algozes. Escapara por um triz, mas os
outros frequentadores do pequeno Café não
tiveram a mesma sorte. Sem poder fazer nada além de fugir, ele tomou um desvio
à sua esquerda e entrou no movimentado Mercado
Público, onde poderia passar por um simples transeunte apressado. Livrou-se
do casaco, roubou um chapéu de palha trançada e um par de óculos de sol e saiu
pelos fundos da área onde havia o comércio de pescado. Já do lado de fora,
seguiu, a largos passos, até a praia. Jogou a camisa, as calças e os sapatos no
lixo, ficando somente com os calções que lhe serviam de cuecas. Foi então que
avistou dois homens vindo na sua direção.
Tentando manter a
calma e para não dar muito na vista, entrou pelo grande tubo de esgoto que levava
aos labirintos obscuros das galerias, que tanto conhecia. Correu como nunca na
vida, descalço e sem roupas, deixando pelo caminho o chapéu e os óculos e entrando
por vários desvios, de modo a dificultar sua perseguição. Foi quando ouviu o
som de passos, num dos túneis à sua frente, que parou e escondeu-se atrás de
uma coluna de concreto. Com extremo cuidado, espiou a sombra que se movimentava
à sua frente e preparou-se para o combate.
O homenzinho estava
entrando por uma pequena fenda atrás de uma das colunas, quando foi atacado.
Puxado com violência para o meio do túnel, seus olhos mostravam um pavor que o
rapaz nunca havia visto antes. Ele protegeu o rosto com os braços pálidos,
tremendo de medo e sem conseguir dizer nada. O rapaz reconheceu-o como o
estranho transeunte que observava do lado de fora do Café. Ia começar a interrogá-lo, quando ouviu passos atrás de si.
Instintivamente puxou o homenzinho para um canto, cobrindo a boca do mesmo com
sua mão grande e suja. Os dois perseguidores passaram correndo por eles, sem
percebê-los e foram-se afastando. Ele afrouxou a mão da boca do prisioneiro e
fez um sinal para o mesmo ficar quieto.
O homenzinho aproveitou
o momento, virou-se e empurrou o rapaz para a fenda atrás da coluna, fazendo-o
perder o equilíbrio, mas colocando a si mesmo exposto no meio da galeria. O
rapaz ainda ouviu o som de um tiro e depois outro, seguido de uma explosão.
Fechou os olhos e deixou-se tombar.
Segundos depois ouvia
o som estridente de uma sirene, quando caiu no meio de uma sala pouco
iluminada. Um forte facho de luz branca, vindo de um ponto no teto, acendeu-se
à sua volta, limitando-lhe os movimentos a uma área muitíssimo restrita.
Um alerta no sistema de
segurança indicava que um intruso tentara penetrar nos terminais sem
autorização. Sem o código de segurança implantado, ele aguardava na sala
intermediária do Limbo, para
questionamentos. Seria devidamente higienizado, ficaria em quarentena e deveria
ser interrogado, até ser libertado... ou não.
***
- Eu esperei por longos anos. Como pudeste fazer isto
connosco? Não pensaste no que deixaste para trás? Não tentaste voltar?
- Eu não podia voltar. Não tinha permissão para tal e
não podia colocar em risco a segurança dos outros.
- Foi ele, não foi? Ele quem te induziu a ficar do
lado de cá…Como pudeste fazer isto, Leona?
- Isso aqui é o futuro, meu irmão. Esta sociedade
desconhece a violência, a ganância, a maldade... e também a beleza e o
prazer... Nós, para eles, somos aberrações pertencentes ao passado...não temos nossos
desejos, nem as vontades satisfeitas...
- Leona, me tire daqui. Eu sou teu irmão!
- Eu não tenho como fazer isso, por mim própria, mas vou
tentar, mesmo assim, convencer o Conselho a libertar-te.
***
- Quando nós chegamos à esta galáxia, há muitos anos
atrás, nosso único intuito era preservar a nossa vida e reproduzir o habitat de
nosso planeta-casa anterior. Nossa intenção foi de dar à nossa raça sobrevivente,
condições de vida. De vida, somente. Não quisemos aceitar que éramos uma estirpe
falida e em extinção, como tantas outras que deixamos, por descuido ou
propósito, desaparecerem por completo da face da terra. Este planeta era árido
e sem vida. Nós tentamos reproduzir a sobrevivência, através do processamento
das condições naturais, filtros e reutilização do Oxigénio e outros elementos
essenciais. Nossos cientistas eram os mais especializados – a elite dos
cérebros mais brilhantes da casta mais douta, selecionados para instalar uma
estação de sobrevivência fora da Terra. Quando a estação foi trazida, tínhamos
poucas esperanças, por isso fizemos o melhor que pudemos, para construir a 'Acrópole'
e extinguir o medo e a insegurança.
Quando conseguimos reprogramar os terminais de
transporte, para fazer as viagens também através do tempo, conquistamos um
grande marco na nossa história. Tínhamos porém que ser cuidadosos, para não
trazer ou levar problemas para onde íamos ou de onde vínhamos. Por este motivo
o controle dos terminais de tempo passou a ser atribuição do Conselho.
Como é de vosso conhecimento, os membros são
escolhidos por meio de testes de aptidão científica e ainda pelo discernimento
e controle emocional. O chefe tem ainda que ser o mais votado, em sessão
secreta, por todos os membros do Conselho e ainda tem que ser submetido a uma
outra bateria de testes de cunho psicológico. Além de ser especialista em
ciência, tem que saber exprimir-se em público e ter controlo emocional
suficiente para não provocar o pânico, quando alguma tragédia for reportada.
O que temos em nosso terminal de segregação é um
visitante do passado. Ele é filho do grande cientista que desenvolveu a
imunidade, que hoje utilizamos e que nos permite viver tão longa e saudavelmente.
O que vos peço é que considerem permitir-lhe viver entre nós. O meu voto já foi
dado. O vosso é necessário. Votem conscientemente, por favor. O Conselho
voltará a reunir-se em dois dias.
***
O chefe do Conselho
parecia cansado. Ele sabia que a decisão não era fácil para os membros do
Conselho. A responsabilidade sobre a decisão era grande demais, por isso tinha
que ser muito ponderada, antes de expressa. Eles experimentavam, naquele
momento, uma emoção que há muito não sentiam: medo!
- Leona, agora é uma questão de tempo. A decisão não é
minha, somente, como tu sabes.
- Eu sei, meu querido. Sei o que se passa na cabeça de
todos e também sei quão difícil será tomar a deliberação. Agradeço muitíssimo a
tentativa.
Leona havia sido
trazida há bastante tempo atrás. O conceito de beleza e paz havia mudado desde
que viera. Ela fora apresentada como a filha do cientista responsável pela
longevidade dos habitantes daquele planeta e era vista e respeitada como uma
personagem a ser protegida.
- É tão difícil...
- Eu sei, meu amado... eu sei...
- Meu mundo sempre foi frio e monocromático...Nós
somos cientistas, não somos guerreiros, nem artistas. Ensina-me, Liana. Eu
quero aprender a ver mais beleza nas coisas.
- Meu amado, ela está nos olhos de quem a vê. A razão é,
por defeito, míope e não vê a beleza com os mesmos olhos que a emoção a vê.
Ele olhou a mulher com
um carinho que não lembrava haver sentido antes. Ela era sábia e segura de si; uma
ilha no meio do oceano imenso de incertezas e inseguranças em que o mundo dele vivia.
Os olhos, verde-esmeralda, eram tão expressivos, que ele às vezes não precisava
de palavras para saber o que ela sentia. Os lábios eram bem desenhados e
impressionavam quando ela abria o sorriso de menina e praticamente incendiava a
alma do homem, cuja responsabilidade sobre a vida daquela gente, era imensa. Ao
estar com ela, ele quase podia esquecer o peso da carga que trazia sobre os
ombros.
- Ensina-me mais, por favor. Eu gosto quando tu falas.
A tua sabedoria é-me valiosa e deixa-me perplexo, enchendo meu coração de calor
e...
Ele hesitou, por uma fração
de segundo, apenas. Ela fingiu não perceber. Olhou para ele, como tentasse ler
o que havia por trás daquela estranha parada no discurso, mas ele já continuava
a falar.
- … de vontade de viver…
Ela continuou, sem deixar
transparecer haver percebido a pausa, mas, lá no fundo, seu coração apertou.
- O que importa não é a velocidade, nem a quantidade
de coisas que se faz. Tampouco é o exagero. A intensidade é que conta. O sabor
das amoras, do chocolate e o aroma do café, o cheiro da terra molhada pela
primeira chuva… tudo aquilo que te deu prazer em fazer, em usufruir, em sentir.
Isso é o que conta…
Ele desconhecia
aquelas sensações. Em seu mundo não havia aroma de café, nem sabor a chocolate
ou amoras… Olhou-a como se não percebesse muito bem o que ela queria dizer. Os
olhos de Leona brilharam, como se ela tivesse tido uma ideia repentina. Ela
sorriu e disse:
- Como o toque das asas das borboletas na pele, então…
Faz mais sentido?
Ele assentiu, sorrindo.
Aquela era uma sensação que conhecia e que havia despertado nele um interesse
inesperado por viver. Ele quase esquecia o peso da carga que teria que assumir,
em dois dias, em nome da decisão do Conselho.
***
- O que nós fazemos aqui? Não somos um povo
conquistador. Não somos um povo preservador, pois já não há nada a preservar.
Não deixamos descendentes; então não há legado. Somos cientistas que mantêm a
vida, sem saber direito o porquê. Nossa raça está em decadência… e em
depressão. O passado pode nos ensinar a viver o futuro com mais consciência da
beleza, pelo menos...
Ele olhou na direção da
mulher com a cabeça coberta por um capuz, que escondia boa parte de sua face,
mas cujos lábios eram evidentes. Numa multitude de cabeças, quase todas tão
iguais, ela destacava-se. Ela ergueu a cabeça e seus olhos pareceram brilhar,
ao fixarem nele. Um aperto na garganta quase impediu-o de continuar.
- Vamos ao veredito...
Leona era o único
motivo pelo qual ele havia mudado completamente o modo de pensar, nos últimos
tempos. Ela havia trazido vida a quem não tinha objetivos e beleza a quem já não
sentia prazer em viver. Ele tinha medo de decepcioná-la, se o Conselho tomasse uma decisão
desfavorável.
***
Leona abraçou o irmão
com ardor. A sentença havia sido dada. Ele passaria por um período probatório,
convivendo com os novos humanos da 'Acrópole'.
O Conselho iria reunir-se dentro de
alguns meses, para tomar a decisão final, baseada no comportamento dele.
O chefe do Conselho entrou no aposento e sorriu ao
ver os irmãos abraçados. Leona desvencilhou-se do abraço do irmão e correu em
sua direção, com um sorriso do tamanho da gratidão de sua alma.
- Obrigada, meu amado. Sem ti, isso nunca seria
possível.
Ela abraçou-o e beijou-lhe
os lábios. Fora tomada por uma alegria sem limites e uma sensação de alívio,
como há muito não sentia. O irmão aproximou-se e estendeu a mão ao amante da
irmã, com um sorriso um tanto sem jeito.
O homem abraça o
cunhado, com carinho. O outro retribui o abraço, primeiro levemente, depois com
mais ardor e, em seguida, com uma força descomunal, que o chefe do Conselho não sabia que existia. Seu corpo
era frágil demais, perto do outro, que apertou-o até ouvir uma série de estalos
nos ossos das costelas e o homenzinho começar a esmorecer.
Quando Leona percebeu
o que estava acontecendo, gritou-lhe, desesperada, que parasse. O rapaz
libertou o homem, que já sangrava pela boca e nariz e caía ao chão,
desfalecido.
O rapaz tentou puxar a
irmã pelo braço, mas naquele momento um grupo de homens da segurança entrou no
aposento e imobilizou-o com uma descarga elétrica de um poderoso 'taser'. A arma nunca havia sido usada
antes e o choque deixou-os um tanto apavorados, mas conseguiram conter-se e
levar o rapaz, desacordado, de volta ao Limbo.
Leona chorava abraçada
ao corpo do amante. A respiração era fraca... difícil...
- Tragam um médico, urgente!
O segurança saiu
correndo pela porta afora e deixou-a sozinha, ajoelhada no chão, ao lado do chefe
do Conselho, que abriu os olhos,
vagarosamente, com um esforço enorme. Sua face mostrava tanto a dor física quanto
a da decepção. Sua mente já não conseguia pensar claramente e ele sentia um rio
de sangue a inundar-lhe o peito, vindo do pulmão perfurado pelos ossos
quebrados das costelas. Ela viu que a vida dele estava por um fio e disse-lhe
chorando:
- Foi minha culpa. Eu nunca devia ter deixado...
- Liana… Eu
cometi um erro. Queria ter vivido mais e visto mais coisas; mais beleza, mais
prazer... Ah, minha amada Liana...
A moça tenta rir daquela
piada comum entre eles. Ela chega-lhe ao ouvido e diz:
- É Leona, meu amado. O nome é Leona…
Ele levanta a mão
pálida e frágil e toca-lhe a face, esboçando um sorriso totalmente desajeitado.
- Tu és tão linda!
Ela segura a mão dele contra
a face e sente que a vida já não estava mais presente naquele ser tão frágil e
pálido, que ela amou tanto. Os olhos encheram-se de lágrimas e um desespero assolou-lhe
a alma.
Aquela sociedade nunca
havia presenciado a morte daquela forma, como ela havia visto. Os tempos haviam
mudado... mas jamais tal violência seria permitida repetir-se...
A moça levantou-se
séria e dirigiu-se à sala de segregação do Limbo,
disposta a colocar um fim, de uma vez por todas, à qualquer tendência à violência contra aquela raça...
***