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sábado, 15 de julho de 2017

Contradições (Parte 1 de 2)


- Estás acordada?

- Mmm... não... na verdade, não...

Ele riu.

- Esse sorrisinho me diz que tu estás...

Eu estava acordada, é claro, mas havia ficado com os olhos fechados, enquanto me deliciava com a maneira como ele brincava com os dedos, muito de leve, a descer pelas minhas costas, acariciando-me como se não me quisesse acordar daquele misto de sono e delírio. Eu havia despertado quando ele me beijou os ombros e pescoço, tão suavemente, que parecia o roçar de uma pluma na minha pele. Talvez ele não me quisesse, realmente, acordar... Talvez ele estivesse apenas se divertindo... Talvez estivesse se aproveitando a situação... Talvez eu também estivesse...

Eu me virei um pouco e encarei-o, sorrindo e dando boas-vindas às suas delicadas carícias. Segurei-lhe a mão na minha e beijei seus preciosos dedos.

- Bom dia, madrugador.

- Bom dia, bela adormecida.

Ele descansou a cabeça na palma da mão, olhando-me com um sorriso doce e olhos genuinamente amorosos. Pensei comigo mesma: "que maneira adorável de acordar".

Ele cingiu meu corpo com os braços e puxou-me para mais perto do peito, com as pernas entrelaçadas nas minhas. Descansei minha cabeça naqueles suaves pelos dourados e fechei os olhos, ouvindo o ritmo das batidas de seu coração, como uma suave percussão em meus ouvidos. Ele beijou o topo da minha cabeça e sussurrou.

- Gosto tanto de ti…

Gemi baixinho e aninhei-me um pouco mais em seu abraço, quase ronronando, como uma gata feliz, numa cama aconchegante e fofa. Não senti vontade de abrir os olhos novamente... e tornei a adormecer.

Quando acordei, ele não estava por perto. Ouvi o som de louça e talheres na cozinha e pensei que ele deveria ter esperado muito tempo que eu acordasse e decidiu fazer algo para comer sozinho. O cheiro de café fresco e de alguma outra coisa era extremamente convidativo.

Eu não quis que a bondade daquele homem passasse por não apreciada, então levantei-me e fui para a cozinha, a fim de fazer-lhe companhia, como se aquilo fosse a minha maior intenção.

Ele estava em pé, descalço, tão sublime e bonito, a sorrir, do alto de seus quase dois metros, com uma xícara de café puro e forte na mão. Embora não estivéssemos acostumados a gostar de fazer o café da manhã, ele estava ocupado com uma omelete que cheirava tão bem, que meu estômago reagiu imediatamente. Aquilo certamente serviria bem para uma manhã preguiçosa de sábado.

- Ei…

- Bom dia de novo, doce campo de trigo. O que estás cozinhando?

Ele sorriu para mim. Eu costumava chamá-lo de "campo de trigo" por causa da cor de seus cabelos e pelos. Ele ria disso, satisfeito com a alcunha que eu lhe havia dado. O homem loiro e bem apessoado olhou-me nos olhos e mentiu, sem corar.

- Não estou cozinhando nada de especial. Vamos sentar e comer. Estou com uma fome...

Ainda olhando para ele, eu obedeci, enquanto ele despejou o café quente na minha xícara e serviu-me uma porção daquela omelete perfeita de tomates, queijo e cogumelos. O sabor era simplesmente divino e me fazia lembrar de uma certa ocasião, em algum lugar do meu passado.

***

Já era tarde em uma manhã de um indolente domingo e eu havia decidido comer um brunch, sozinha, em um Café no centro da cidade. Sempre amei o cheiro de café preto forte e aquele estava realmente bom. Como estava morrendo de fome, eu havia decidido pelo prato do dia, para poder ter a minha refeição servida mais rápido. O gosto daquela omelete especial do Menu estava-me saciando com um prazer peculiar.

De onde eu estava, podia ver a clientela atravessando a porta da frente e sendo direcionada para as mesas, pela equipe de serviço. Sentada ao lado da janela, observando as pessoas a entrar, eu tentava não olhar para ninguém muito diretamente.

Um homem, provavelmente lá pelos seus quarenta e poucos anos, atravessou a porta e olhou em volta, tentando encontrar uma mesa vazia. O que chamou minha atenção foi a cor de seus incríveis cabelos loiros brilhantes e sua postura de caminhar. Bem mais alto do que eu, forte e bonito, aquele homem era como um guerreiro vencedor de uma batalha nas terras altas. Eu senti como se o lugar tivesse esvaziado imediatamente e todas as luzes desaparecido na minha frente, exceto pela que estava em cima da sua cabeça.

Quando o garçom o acompanhou, senti-me estranhamente interessada. Em minha mente, eu podia ouvir uma voz, dizendo sem parar e com vontade:

"Por favor, sente-se perto de mim... por favor"...

E foi o que aconteceu. Por algum motivo, ele escolheu uma mesa muito próxima da minha e sentou-se bem na minha frente. Apanhou o menu e fez seu pedido muito rapidamente.

Aquilo pareceu-me um bom sinal. Ele demonstrava ser um homem que sabia muito bem o que queria e era rápido a tomar decisões. Perguntei-me se ele faria isso com todas as outras coisas em sua vida.

Enquanto esperava, ele naturalmente olhou em volta, mostrando apenas um interesse geral nos outros clientes, que estavam acomodados na mesma sala, conversando discretamente e tomando suas refeições. Então, de repente, ele pousou aqueles lindos e radiantes olhos azuis em mim.

Surpreendentemente, o efeito foi absolutamente inesperado. Eu corei imediatamente e tentei voltar a minha atenção para o meu prato e xícara, tentando parecer natural e à vontade. Minhas mãos tremiam e a faca caiu no chão com um barulho alto demais, para os meus ouvidos. Eu sou realmente desajeitada, quando nervosa, então abaixei-me para juntar a faca e já ia chamar o garçom para me trazer uma outra, limpa, quando percebi que o rapaz já vinha a caminho, provavelmente acostumado a lidar com esse tipo de coisas, muitas vezes por dia. Eu lutava para não olhar à mesa bem na minha frente, mas meus olhos me traíram. Ele estava olhando para mim, novamente. Nossos olhos se cruzaram. Meu rosto e orelhas estavam queimando, como se fossem pedaços de carvão em brasa. Tentei evitar seu olhar, mas não consegui.

Então ele sorriu e sussurrou um "olá" claro e distinto, embora nenhum som pudesse ser ouvido de onde eu estava.

‘Meu Deus, o que foi isso? Isso é incrivelmente assustador. Eu não esperava sentir borboletas a se debaterem no meu estômago! ‘

Eu sorri de volta para ele, mas devo ter parecido tão estranhamente fora do lugar, que ele riu. Corei de novo e senti vontade de sumir dali, de tão sem jeito que fiquei.

Fui convenientemente salva pelo garçom, trazendo a refeição e colocando-a na frente dele. Sua atenção de repente se desviou para uma xícara de café preto e para o prato do dia: a omelete especial de tomates, queijo e cogumelos.

Não pude deixar de rir ...

***

- Tu ainda lembras?

- Como eu poderia esquecer? Fiquei em completo transe...

Ele riu. Simplesmente amava o jeito que ele parecia relaxar completamente e parecer tão juvenil, quando ria. Ele costumava me provocar com seus encantadores olhos azuis claros e aquele sorriso aberto, antes de tudo. Perguntei-me como um homem podia ser tão sexy, sem ser abertamente sexual ou indecentemente malicioso. Ele sempre foi tão elegante... tão controlado... tão encantador... tão bom e tão gentil... e ainda assim, tão desejável... tudo isso, no pacote mais adorável que eu pudesse, algum dia, desejar.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som irritante da campainha.

- Quem poderia ser?

***

- O que tu estás fazendo aqui?

- Vais-me convidar para entrar ou não?

- Sim. Claro. Desculpa.

- E quem é esse?

- Um amigo muito caro.

Ele sorriu e estendeu a mão para o meu amigo.

- Sei. Muito prazer em conhecê-lo.

- Igualmente..., mas quem é você?

- Um velho conhecido...

Estava claro, para meu actual companheiro, que apenas um "velho conhecido" não agiria daquela maneira, então olhou para mim, tentando ler as minhas reacções, antes de fazer qualquer movimento.

Era como se o rei esperasse que o peão fizesse sua jogada, para que ele, então, pudesse pensar em uma estratégia para continuar. Mas a rainha não estava ansiosa para deixar o flanco aberto e aquele homem tinha intenções de provar algum ponto, todo seu, por isso eu resolvi tomar a dianteira e dei o primeiro passo.

***

O ar não estava pesado, mas também não era totalmente confortável. Sentada à beira-mar, deixei minha mente vagar até alguns anos antes daquela data, quando o peso da idade era-me tão mais leve e até mais suportável. Aquele rosto costumava ser tão querido e aquele homem tão gentil.

O que nos aconteceu? Onde perdemos a sensação de respeito e bondade entre nós? O que o passado fazia de volta no meu presente? Meu receio era que as intenções não fossem nada boas…

Deixá-lo afastado e longe da minha vida havia sido difícil, na primeira vez, mas agora parecia que alguns fantasmas haviam decidido voltar para me assombrar. E eu que só queria recuperar o meu equilíbrio…

Por enquanto, tratei de tirá-lo de perto do meu parceiro e da minha casa, para que eu pudesse resolver aquela situação, sem envolvimento desnecessário de ambos os lados.

O homem voltou da casa de banho e sentou-se bem na minha frente. Ele ainda adorava sua cerveja gelada, enquanto eu estava acostumada com o vinho verde fresco, no calor do verão. Ele ainda parecia bem, embora seu cabelo ruivo tivesse rareado, evidentemente. Seu rosto estava um pouco mais redondo, mas ainda era bonito e adorável. Seu sorriso era quase o mesmo. Lembrei-me do dia em que me senti atraída por aquelas pequenas curvas nos cantos de seus lábios, quando ele me abriu o sorriso, pela primeira vez. Seus olhos tinham linhas de expressão, marcadas profundamente ao redor deles. Eu observei seu rosto cuidadosamente, estudando seus movimentos e tentando descobrir o que ele queria de mim... desta vez...

- Eu senti tua falta, sabias disso?

- Não. Não sabia. O que queres de mim, agora?

- Não sejas assim. Nós costumávamos ser tão bons juntos. Nós éramos verdadeiros amigos.

- Exatamente. Nós éramos amigos..., mas então tu deixaste a nossa amizade de lado por uma situação, que nem mesmo deixou-me nenhuma margem para lutar.

- E como tu sabes que eu também não lutei?

- Ainda poderíamos ter mantido nossa amizade... Algumas vez pensaste em como foi difícil escrever aquelas coisas, para que tu pudesses ter a tua vida perfeita?

- Tu disseste que nunca tínhamos sido amigos de verdade...

- Pelo bem do teu relacionamento. O que mais eu poderia dizer? Que costumávamos ser grandes amigos, mas, então, já não queríamos mais brincar de sermos amigos de verdade? Por favor! Me poupe!

Ele segurou minha mão. Eu estava tão chateada, que estava tremendo, visivelmente. Ele esperou até eu parar de discutir e disse com uma voz muito baixa:

- Eu realmente senti a tua falta. Foi tão difícil...

Ele parou quando percebeu que eu estava pálida e meus olhos estavam húmidos.

- Eu sinto muito.

- O que tu ainda queres de mim? Tiraste tudo o que eu tinha e agora achas que tudo volta a ser como antes? Voltas, como se nada tivesse acontecido e queres que eu te receba de braços abertos?

- Ela estava grávida. Era nosso bebê que ela iria ter. Eu nunca poderia deixá-la. Tu me conheces.

- Não, eu não te conheço. Eu realmente não tenho a mínima ideia de quem tu, realmente, és.

- É justo.

Ele parou por um tempo e depois falou, como se fosse a coisa mais natural de se dizer.

- Nós já não estamos juntos. Nós nos separamos como pessoas civilizadas, mas não podemos mais viver como um casal. O menino está com ela.

- E ele se parece tanto contigo...

- Como é que tu sabes?

Eu parei. Aquilo não deveria ter acontecido. Corei, imediatamente, e ele percebeu.

- Tu és tão surpreendente. Nunca quis  fazer-te sofrer, mas tenta entender...

Fiquei tão cansada de repente. Lembrei-me de como eu tentei, com todas as minhas forças, entender, aceitar e esquecer, mas nunca consegui fazê-lo. Tentei sufocar todas as coisas que sentia, mas não tinha ideia de que seria tão difícil. Não disse mais nada. Já não havia nada a dizer…

Ele segurou a minha mão nas dele e beijou meus dedos. Tentei libertar-me, mas ele era forte e firme. Virou a minha mão e beijou-me a palma, suavemente e com aparente ternura.

Minha cabeça estava dando voltas...


sábado, 17 de junho de 2017

Olhares (Epílogo)



Já não sabia se devia acreditar em tudo, em algo, ou em nada, pois não conseguia distinguir claramente o que eram sonhos e o que acontecia de verdade. Por via das dúvidas, decidi aceitar que há um bocado de verdade em tudo.

Embora um tanto desajeitado, ainda, pelo efeito da medicação, que corria em grande quantidade nas minhas veias, turvando a realidade e confundindo minha percepção, reli a mensagem ainda aberta na minha mão. 

“Não tenha medo do que venha advir no futuro. A mente é extremamente poderosa. Um homem que não acredita em nada, não tem muitas razões para viver.

Tu não estás sozinho! Nós sempre estivemos por perto.

Venha ao local de antes, assim que puder.”

Apesar de considerar o conteúdo bastante intrigante e vago, por algum motivo, aquela mensagem parecia trazer um significado oculto, que eu não percebia de imediato.

***

Por alguns dias a fio, segui a dieta, tomei os medicamentos com seriedade e empenhei-me na fisioterapia, para acelerar minha saída daquele lugar. Eu sabia que era imprescindível ficar bom logo. Naqueles dias, estive praticamente sozinho o tempo todo. Não recebi nenhuma visita, a não ser das enfermeiras e dos médicos, o que, de certa forma, era um bom sinal.

Antes só…

Eu precisava, urgentemente, voltar à minha pacata vidinha e quanto menos intromissão eu tivesse, durante o processo de recuperação, melhor seria. Tomei aquela falta de interferência como uma dádiva e tratei de fazer meu melhor para recobrar a saúde da maneira mais pronta possível.

Mas as palavras, colocadas daquela maneira na mensagem, não me saíam do pensamento…

***

- Nós precisávamos deixar-te em paz, para a recuperação ser mais rápida.

- Eu devia saber que havia algo por trás daquela aparente tranquilidade…

- O diagnóstico final foi dado. O médico vem a caminho. Vamos deixar-te a sós, agora.

O médico entrou, menos de um minuto depois que eles saíram. Eu estava sentado na cama, quando ele estendeu a mão e entregou-me um relatório e deixou que eu lesse, antes de dizer-me qualquer coisa.

***

Eu segurava a pequena caixa de madeira escura em minhas mãos, ainda fechada, com um carinho fora do comum. Estava melancólico e aquela nostalgia fazia todo sentido, diante do que acabara de saber. Sentei-me no chão do quarto e deslizei a fina tampa, decorada com pequenos e delicados arabescos, para a frente, destacando-a do corpo principal da caixa e depositando-a perto da minha perna.

Meus pequenos souvenirs de viagem, lembranças de outras épocas, quase de outras eras, jaziam quietos no fundo coberto de um fino veludo bordô: um ouriço de castanha, a frágil palha externa, em forma de pétalas de flor, de uma Physalis, umas conchinhas do mar, duas pedrinhas lapidadas pela água do rio, um gatinho de bronze, menor que meu polegar, um papelinho enrolado com a minha frase favorita, que me havia sido dado na rua, por um desconhecido…
“Cuidado com o que desejas, pois pode-se tornar realidade” …
Engraçado que eu nunca havia notado que havia um símbolo desenhado do lado de fora do rolinho de papel, que me era, agora, familiar: um olho estilizado. Após uma breve pesquisa, descobri que era o símbolo do conhecimento.

Na estante, acima da minha cabeça, as prateleiras de mogno serviam de moldura à minha colecção de livros de artes, onde a vida e obra de Salvador Dalí destacava-se, não somente por estar bem ao centro, mas por ser o volume mais vistoso e significativo de todos.

Pensei em como minha vida cabia toda nos poucos registos deixados dentro daquele quarto pequeno, com a janela aberta para o mar.
Tão pouco em quantidade e tanto em carga emocional… minha caminhada neste mundo estranho…

Eu, então, decidira deixar aquilo tudo para trás. Ir-me embora, daquela forma, era uma decisão difícil, mas tinha que ser feita. Não anunciara a ninguém e, para todos os efeitos, era somente mais uma viagem, como tantas outras…, mas, na verdade, não era tão simples assim…

***

Minha alma estava pesada, como se uma sombra pairasse sobre ela, apesar do dia morno de sol e do céu quase tão límpido, quanto minhas perspectivas de futuro.

O pedaço de papel, com a informação mais importante da minha vida, ainda estava entre meus dedos. Meu olhar perdia-se na direcção do horizonte. O mar rugia contra as grandes rochas no canto da praia. Parecia querer desafiar-me a enfrentar o grande segredo.

Minha mente voltou um pouco no tempo, a reavivar a memória do momento decisivo…

***

Eu li o relatório, com o diagnóstico, em silêncio. Não havia muita dúvida para interpretação. Levantei os olhos e vi que o médico me olhava, muito sério, sem conseguir esconder a preocupação em seu semblante.

- Alguma dúvida?

- Só uma. Quanto tempo, ainda tenho?

- É difícil assegurar. Em danos cerebrais causados por coágulos deste tamanho, não há como dar uma resposta precisa. Podem ser apenas dias… Como não podemos operar, tudo depende do paciente… Já tivemos casos…

Ele interrompeu a frase ao meio. Minha expressão dizia-lhe, claramente, que eu não estava interessado em outros casos…

- Entendi. Era essa a razão dos delírios?

Ele riu, levemente. Aquele sorriso triste fez-me sentir completamente perdido e sem suporte. Quantas vezes ele teve que fazer aquele mesmo procedimento, sabendo que o controle sobre as vidas de seus pacientes não estava em suas mãos…

Eu levantei-me, apertei-lhe a mão e saí, devagar, ao longo daquele corredor tão iluminado pelos raios do sol da manhã, que atravessavam as longas janelas rectangulares e que desenhavam obtusas figuras geométricas nas paredes dos quartos.

Por dentro, eu sentia um enorme vazio, como nunca havia sentido antes.

***
O lamento merencório e estridente de uma gaivota solitária trouxe-me imediatamente de volta ao presente e eu quebrei meu silêncio.

- Passamos uma existência inteira a procurar o objectivo e a razão pela qual estamos aqui e agora, sem perceber que o verdadeiro sentido da vida é, simplesmente, viver! Não há recompensa, nem vida eterna, nem céu e nem inferno…

- Mas para muitos é mais fácil “acreditar” numa verdade todo-poderosa, manipulada ao extremo, e viver com base numa grande mentira, mas que os faz felizes e esperançosos, tornando o peso do dia-a-dia mais leve.

- Se por um lado é simples, por outro é extremamente complicado, porque só nos damos conta que não usufruímos do melhor que vida pode oferecer, quando já perdemos praticamente tudo.

- A eternidade é só um conceito. A intensidade do que vivemos é bem mais importante que todo o resto…

O homem de cabelos ruivos e olhos azuis, sentado ao meu lado, encarou-me e olhou-me fixamente nos olhos, mais uma vez. Depois, levantando, tocou meu ombro levemente, virou-se e deixou-me ali sentado a acompanhar seu caminhar para longe de mim. Antes de desaparecer por trás da pequena duna, ainda voltou-se e fez um pequeno aceno com a mão. De longe, seus olhos, embora fosse, talvez e apenas, minha impressão, reluziam com aquela força da primeira vez. Ele moveu os lábios e eu, naquele momento, percebi completamente o que ele queria dizer.

Rasguei o papel em pedaços pequenos, várias vezes, e abri as mãos, deixando o vento levar aqueles minúsculos confetes brancos, maculados pelos fragmentos negros da tinta da impressora, que agora já não tinham a mesma força de alguns segundos atrás, quando as letras formavam palavras e, estas produziam uma das informações mais difíceis para a minha razão digerir.

Levantei-me e fui até o carro, estacionado ao lado do pequeno restaurante. Quando entrei, a mulher sentada à sombra de um grande para-sol vermelho e branco levantou-se e veio na minha direcção, caminhando firmemente e contradizendo a noção de equilíbrio, do alto de seus saltos ‘stiletto’. O tailleur elegante e a forma como ela mantinha os cabelos alinhados naquele coque no alto da cabeça atraente, davam-me uma sensação de que a beleza, apesar de ser um conceito muito pessoal, era uma realidade que me deixava sempre tão tranquilo. Abriu a porta dos passageiros e disse, sorrindo:

- Estás preparado? Vamos embora?

Eu sorri, levemente, sem dizer nada. Apenas girei a chave na ignição e conduzi o carro para fora dali.

Na minha cabeça, ainda estava evidente a mensagem balbuciada tantas vezes pelo homem ruivo, que ficava a repetir, sem parar, na minha memória.

“Tu não estás sozinho!”

Eu sempre acreditei, porém, que na realidade, desde o começo até o fim de nossas vidas, nós sempre estivemos sozinhos…


Ajustei o espelho retrovisor, de modo a verificar se a caixa de transporte, no banco de trás, estava bem afivelada ao cinto de segurança. O gato, um ‘tabby’ europeu comum, deitado dentro dela, dormitava tranquilamente.

Talvez eles tenham razão, afinal…



quinta-feira, 26 de maio de 2016

Dragões


"O dragão vermelho veio do sul, onde o sol amorna as tardes e as folhas todas, ainda tão rubras e escarlates, lutam por manter-se presas aos ramos das árvores; onde a natureza ainda acorrenta o Outono, como se tentasse manter o cinzento Inverno à distância, como se fosse, de alguma forma, possível. "*

"O dragão castanho veio do oeste, onde o mar apaga os rastos dos homens serenos e das ruidosas gaivotas e carrega mensagens quase anônimas em garrafas de vidro, para quebrá-las, sem atingir seus destinos, contra as rochas e os recifes, como se quisesse manter os náufragos da vida, amigos e amantes, separados para sempre ". *

O saguão do aeroporto estava cheio de transeuntes, empurrando os mais diferentes tipos de malas rodadas e carrinhos de bagagens. Eu cruzei, lentamente, a grande porta de correr, mas com os meus olhos procurando cuidadosamente por um rosto conhecido. Ele estava de pé, ereto e elegante, mais alto que maioria das pessoas que ali se enfileiravam, a esperar por seus amigos, clientes, parentes ou colegas... Eu sorri e caminhei a passos firmes, em sua direção. Ele devolveu-me um sorriso cortês e espontâneo.

Eu pensei, cá, com meus botões: 'que homem bonito'...

Quando me aproximei, ele simplesmente apertou minha mão, olhando seriamente para o meu rosto e corando ligeiramente. Dei um passo adiante e abracei-o, como fazem os amigos que não se vêem há muito e sussurrei-lhe ao seu ouvido.

- ‘Have I told you lately that I love you?' **

- Não, não disse... não que eu lembre...
- Acabei de dizer.

Ele sorriu timidamente. Naquele momento, todos os meus problemas, as inseguranças e todos aqueles medos que eu vinha sentindo em minha cabeça, durante a viagem para encontrar-me com um homem praticamente desconhecido, desapareceram completamente. Eles simplesmente esvaneceram no ar, com a doçura espontânea daquele primeiro contato.

- Vamos sair daqui... rápido!

***
- Tu sabes que eu nunca...

- Shhh... Não digas nada. Basta fechar os olhos, por agora.

Ele obedeceu. Seus músculos estavam tensos sob sua pálida pele. Eu sabia que ele estava pronto, mas não muito confortável, então eu beijei, muito levemente, sua cabeça, sua testa e suas pálpebras.

Ele simulou um sorriso, ainda meio sem graça, mas não refutou, não lutou contra e nem disse nada, que pudesse comprometer a magia estranha daquele momento especial.

Eu, então, beijei seu rosto e rocei, muito suavemente, meus lábios nos dele. Ele esperou. Olhei para suas belas feições e beijei-lhe novamente os lábios, muito de leve, quase sem tocar, mas deixando-o sentir que eu estava lá, muito mais presente que jamais estivera. Ele respirou fundo e fingiu beijar-me de volta. Tomei a dianteira e avancei, desta vez com mais entusiasmo e senti que ele abriu a boca um pouco, para que eu pudesse sentir seu sabor. Seu beijo, um tanto inseguro no começo, logo encheu-se de desejo e luxúria. Seus braços envolviam-me com firmeza, mas também com doce e afetuosa paixão.

Ele olhou-me nos olhos, como se estivesse-me vendo pela primeira vez. Talvez tenha sido, mesmo, a primeira vez que ele me via assim, tão perto de si e com tamanha abertura.

Estávamos em pé, no centro da sala. Nossos braços entrelaçavam-se à volta de nossos corpos inquietos, em exploração mútua. Ele tocou meu rosto e eu movi minha cabeça para o lado e beijei seus longos e pálidos dedos. Ele segurou minha mão nas suas e fez o mesmo. Aquele gesto despretensioso e tão simples era, ao mesmo tempo, tão íntimo e tão intenso, que acabou acendendo um súbito fogo dentro de nós. Ele resmungou o que pareceu-me algo como 'eu te amo', segurando-me em seus braços, firmemente. Então, beijou-me com tal impetuosidade, que eu senti todo o seu corpo estremecer. Ele estava ávido e eu também. Nossas bocas colaram-se. Eu simplesmente segurei seu corpo contra o meu, sentindo-o reagir de uma maneira que eu já não podia controlar... não que eu quisesse ou fosse tentar...

- Deixa-me olhar para ti.

Sua face estava corada. Seus olhos mais azuis. Eu desabotoei-lhe o colarinho da camisa, com dedos inquietos e nervosos e segui fazendo o mesmo com os outros botões, um após o outro, parando, cada vez que abria o próximo. Tentava, mas era quase impossível desviar meus olhos da densa camada de pelos ruivos, harmoniosamente distribuída em seu largo peito, sobre a pele sardenta e quase pálida demais.

Incrível como a primeira vez que se está com uma pessoa pode ser uma maravilhosa viagem de exploração e descoberta, mesmo para alguém que já tenha experimentado aquilo antes. Aquele homem tinha o corpo forte e incrivelmente atraente.

Comecei a abrir meus próprios botões, mas ele segurou minhas mãos e pôs-se a fazer o mesmo que eu havia acabado de fazer com ele, roçando os lábios em meu pescoço, muito levemente. Com os dedos tépidos, empurrou o tecido que ainda me cobria os ombros, fazendo-o deslizar e cair no chão. Senti calafrios pelo corpo todo e ele, aproveitando-se da situação, roçou a barba já um tanto crescida, por cada centímetro da minha pele arrepiada, numa carícia estranha e, ao mesmo tempo, bem-vinda. Segurei-lhe a cabeça entre as minhas mãos e beijei-lhe, mais uma vez, mas ele desvencilhou-se, com delicada firmeza e seguiu, a descer pelo meu peito e mamilos, barriga e umbigo, com seus lábios mornos e atrevidos, abrindo caminho pelo meu corpo, já totalmente desejoso dele. Ele parou ali mesmo abaixo do meu umbigo e beijou levemente o trilho de finos pelos que crescia para baixo e escondia-se, discretamente, para dentro do cós dos meus melhores ‘blue jeans’. Suas mãos quentes abriram caminho entre minhas roupas e minha pele, já totalmente incendiada pelas chamas daquela paixão.

Ele parava vez ou outra para beijar minha boca, enquanto cingia-me num abraço apertado. Depois, correu as pontas dos dedos pelas minhas costas e puxou-me para mais perto dele ainda.

Eu senti o fogo do dragão a queimar-me, com desejo docemente sensual e, em seguida, ouvi-o sussurrar.

- Eu sei que tu és a única pessoa que pode desvendar o segredo. Tua experiência, teu cuidado e teu amor são as coisas que eu sempre procurei e o fato de virem em forma do pacote mais sexy que eu poderia desejar, torna tudo ainda mais emocionante e gratificante.

- Teus olhos são muito gentis e vêem-me melhor do que eu realmente sou. Tu és tão especial, que eu sinto que eu sou um pouco especial também.

- E tu és. Agora, guia-me nesta doce aventura...


- Com certeza. Apenas deixa-te ser amado...

Minhas mãos mornas acariciaram seu belo e robusto corpo. Eu não cansava de beijar o pescoço, ombros e costas e todo o resto daquele homem, com total atenção e luxúria.

Ele fechou os olhos, saboreando o momento e as carícias, cheio de genuíno deleite. Eu só queria estar com ele, para satisfazer seus anseios mais profundos e para agradá-lo o melhor que pudesse. Eu sabia que aquele momento já estava sendo muito bom para nós dois, mas eu queria que ele se sentisse contente e satisfeito e só desejava que fosse, de alguma forma, memorável...
***

- Fazer amor contigo foi a experiência mais incrível que eu poderia sonhar, mas sabes o que eu acho que fantasiava mais, antes deste encontro?


- Diga…

- Eu acho que ansiava por este momento especial, depois que tudo está terminado, quando nossos corpos estão cansados e consumidos, quando podemos simplesmente deitar nus e abraçados, não precisando falar, mas sabendo que estamos juntos como amantes... Ser capaz de dormir contigo, poder olhar-te, abraçar-te e proteger-te. Ter meus braços em torno de ti, sentir o perfume suave do teu pescoço e cabelos e acariciar a tua pele nua...Desejar fazer mais amor, mas apenas, por agora, desfrutar da paz e tranquilidade de ter-te no meu abraço protetor...

Estávamos nos olhando e ele abriu o sorriso mais encantador que conseguiu e puxou-me para junto dele, aninhando o meu corpo entre seus braços e peito, beijando minha testa, meu rosto e meus lábios. Eu deitei nele minha cabeça e, então, fechei os olhos, sentindo as asas do meu dragão escarlate a envolver-me completamente.

Aquele era o lugar onde eu sentia-me mais confortavelmente em casa...


***


- Como assim?

- NYC, meu amor. Vens comigo?

- Eu não sei o que dizer…

- Diga que sim, então...

Seus profundos olhos azuis encontraram os meus, pela milionésima vez. Seu rosto estava um pouco pálido e bastante sério, provavelmente de expectativa. Minha mente trabalhava em alta velocidade, tentando encontrar as palavras certas para lhe responder. Em vez disso, eu simplesmente perguntei-lhe.

- Isso é uma proposta?

- Não é de casamento, mas é, ainda, uma proposta...

Ele riu de mim, quando eu corei inesperadamente.

- Bem, pelo menos não estás de joelhos.

- Não por esse motivo, não...

- Não te atrevas! Acho que é melhor verificar melhor o meu passaporte, então...


***

- Isso é loucura, não é?


- Se for, então não há nenhuma cura ou saída, criatura que eu amo tanto... Mas esta loucura só é boa porque eu estou contigo...

Estávamos caminhando de mãos dadas à beira-mar, desfrutando a brisa amena do fim de tarde de verão. Eu sentia meu corpo tão cheio de vida e aquilo era, ao mesmo tempo, tão bom e tão libertador, que eu poderia levantar os pés do chão e voar. O simples toque das peles de nossas mãos já era suficiente para inflamar uma série de sensações incontroladas, algumas delas muito perceptíveis.

Ele olhou-me e disse, em voz baixa, enquanto segurava-me em um de seus mais ternos abraços, daqueles que eu tanto amava:

- Tu nunca terás de sentir solidão ou tristeza, enquanto eu estiver vivo e por perto...

O dragão vermelho abriu suas largas asas, mergulhou no ar e voou para o céu.

O dragão castanho, ligeiramente menor que o outro, bateu suas asas quase douradas e seguiu o ruivo amante, de muito perto. Seus olhos estavam húmidos, com lágrimas de puro contentamento e admiração.

Embora pudesse tentar, não conseguiria, jamais, nem realmente, esconder o carinho que sentia pelo seu rubro companheiro, que voava tão livre e tão feliz, a apontar o caminho à sua frente…
***

* (Originalmente de "A Efigie do Dragão", ligeiramente modificado para esta história)

** (Originalmente de Van Morrison "Have I told you lately that I love you?"