Mostrar mensagens com a etiqueta revelações. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta revelações. Mostrar todas as mensagens

sábado, 17 de junho de 2017

Olhares (Epílogo)



Já não sabia se devia acreditar em tudo, em algo, ou em nada, pois não conseguia distinguir claramente o que eram sonhos e o que acontecia de verdade. Por via das dúvidas, decidi aceitar que há um bocado de verdade em tudo.

Embora um tanto desajeitado, ainda, pelo efeito da medicação, que corria em grande quantidade nas minhas veias, turvando a realidade e confundindo minha percepção, reli a mensagem ainda aberta na minha mão. 

“Não tenha medo do que venha advir no futuro. A mente é extremamente poderosa. Um homem que não acredita em nada, não tem muitas razões para viver.

Tu não estás sozinho! Nós sempre estivemos por perto.

Venha ao local de antes, assim que puder.”

Apesar de considerar o conteúdo bastante intrigante e vago, por algum motivo, aquela mensagem parecia trazer um significado oculto, que eu não percebia de imediato.

***

Por alguns dias a fio, segui a dieta, tomei os medicamentos com seriedade e empenhei-me na fisioterapia, para acelerar minha saída daquele lugar. Eu sabia que era imprescindível ficar bom logo. Naqueles dias, estive praticamente sozinho o tempo todo. Não recebi nenhuma visita, a não ser das enfermeiras e dos médicos, o que, de certa forma, era um bom sinal.

Antes só…

Eu precisava, urgentemente, voltar à minha pacata vidinha e quanto menos intromissão eu tivesse, durante o processo de recuperação, melhor seria. Tomei aquela falta de interferência como uma dádiva e tratei de fazer meu melhor para recobrar a saúde da maneira mais pronta possível.

Mas as palavras, colocadas daquela maneira na mensagem, não me saíam do pensamento…

***

- Nós precisávamos deixar-te em paz, para a recuperação ser mais rápida.

- Eu devia saber que havia algo por trás daquela aparente tranquilidade…

- O diagnóstico final foi dado. O médico vem a caminho. Vamos deixar-te a sós, agora.

O médico entrou, menos de um minuto depois que eles saíram. Eu estava sentado na cama, quando ele estendeu a mão e entregou-me um relatório e deixou que eu lesse, antes de dizer-me qualquer coisa.

***

Eu segurava a pequena caixa de madeira escura em minhas mãos, ainda fechada, com um carinho fora do comum. Estava melancólico e aquela nostalgia fazia todo sentido, diante do que acabara de saber. Sentei-me no chão do quarto e deslizei a fina tampa, decorada com pequenos e delicados arabescos, para a frente, destacando-a do corpo principal da caixa e depositando-a perto da minha perna.

Meus pequenos souvenirs de viagem, lembranças de outras épocas, quase de outras eras, jaziam quietos no fundo coberto de um fino veludo bordô: um ouriço de castanha, a frágil palha externa, em forma de pétalas de flor, de uma Physalis, umas conchinhas do mar, duas pedrinhas lapidadas pela água do rio, um gatinho de bronze, menor que meu polegar, um papelinho enrolado com a minha frase favorita, que me havia sido dado na rua, por um desconhecido…
“Cuidado com o que desejas, pois pode-se tornar realidade” …
Engraçado que eu nunca havia notado que havia um símbolo desenhado do lado de fora do rolinho de papel, que me era, agora, familiar: um olho estilizado. Após uma breve pesquisa, descobri que era o símbolo do conhecimento.

Na estante, acima da minha cabeça, as prateleiras de mogno serviam de moldura à minha colecção de livros de artes, onde a vida e obra de Salvador Dalí destacava-se, não somente por estar bem ao centro, mas por ser o volume mais vistoso e significativo de todos.

Pensei em como minha vida cabia toda nos poucos registos deixados dentro daquele quarto pequeno, com a janela aberta para o mar.
Tão pouco em quantidade e tanto em carga emocional… minha caminhada neste mundo estranho…

Eu, então, decidira deixar aquilo tudo para trás. Ir-me embora, daquela forma, era uma decisão difícil, mas tinha que ser feita. Não anunciara a ninguém e, para todos os efeitos, era somente mais uma viagem, como tantas outras…, mas, na verdade, não era tão simples assim…

***

Minha alma estava pesada, como se uma sombra pairasse sobre ela, apesar do dia morno de sol e do céu quase tão límpido, quanto minhas perspectivas de futuro.

O pedaço de papel, com a informação mais importante da minha vida, ainda estava entre meus dedos. Meu olhar perdia-se na direcção do horizonte. O mar rugia contra as grandes rochas no canto da praia. Parecia querer desafiar-me a enfrentar o grande segredo.

Minha mente voltou um pouco no tempo, a reavivar a memória do momento decisivo…

***

Eu li o relatório, com o diagnóstico, em silêncio. Não havia muita dúvida para interpretação. Levantei os olhos e vi que o médico me olhava, muito sério, sem conseguir esconder a preocupação em seu semblante.

- Alguma dúvida?

- Só uma. Quanto tempo, ainda tenho?

- É difícil assegurar. Em danos cerebrais causados por coágulos deste tamanho, não há como dar uma resposta precisa. Podem ser apenas dias… Como não podemos operar, tudo depende do paciente… Já tivemos casos…

Ele interrompeu a frase ao meio. Minha expressão dizia-lhe, claramente, que eu não estava interessado em outros casos…

- Entendi. Era essa a razão dos delírios?

Ele riu, levemente. Aquele sorriso triste fez-me sentir completamente perdido e sem suporte. Quantas vezes ele teve que fazer aquele mesmo procedimento, sabendo que o controle sobre as vidas de seus pacientes não estava em suas mãos…

Eu levantei-me, apertei-lhe a mão e saí, devagar, ao longo daquele corredor tão iluminado pelos raios do sol da manhã, que atravessavam as longas janelas rectangulares e que desenhavam obtusas figuras geométricas nas paredes dos quartos.

Por dentro, eu sentia um enorme vazio, como nunca havia sentido antes.

***
O lamento merencório e estridente de uma gaivota solitária trouxe-me imediatamente de volta ao presente e eu quebrei meu silêncio.

- Passamos uma existência inteira a procurar o objectivo e a razão pela qual estamos aqui e agora, sem perceber que o verdadeiro sentido da vida é, simplesmente, viver! Não há recompensa, nem vida eterna, nem céu e nem inferno…

- Mas para muitos é mais fácil “acreditar” numa verdade todo-poderosa, manipulada ao extremo, e viver com base numa grande mentira, mas que os faz felizes e esperançosos, tornando o peso do dia-a-dia mais leve.

- Se por um lado é simples, por outro é extremamente complicado, porque só nos damos conta que não usufruímos do melhor que vida pode oferecer, quando já perdemos praticamente tudo.

- A eternidade é só um conceito. A intensidade do que vivemos é bem mais importante que todo o resto…

O homem de cabelos ruivos e olhos azuis, sentado ao meu lado, encarou-me e olhou-me fixamente nos olhos, mais uma vez. Depois, levantando, tocou meu ombro levemente, virou-se e deixou-me ali sentado a acompanhar seu caminhar para longe de mim. Antes de desaparecer por trás da pequena duna, ainda voltou-se e fez um pequeno aceno com a mão. De longe, seus olhos, embora fosse, talvez e apenas, minha impressão, reluziam com aquela força da primeira vez. Ele moveu os lábios e eu, naquele momento, percebi completamente o que ele queria dizer.

Rasguei o papel em pedaços pequenos, várias vezes, e abri as mãos, deixando o vento levar aqueles minúsculos confetes brancos, maculados pelos fragmentos negros da tinta da impressora, que agora já não tinham a mesma força de alguns segundos atrás, quando as letras formavam palavras e, estas produziam uma das informações mais difíceis para a minha razão digerir.

Levantei-me e fui até o carro, estacionado ao lado do pequeno restaurante. Quando entrei, a mulher sentada à sombra de um grande para-sol vermelho e branco levantou-se e veio na minha direcção, caminhando firmemente e contradizendo a noção de equilíbrio, do alto de seus saltos ‘stiletto’. O tailleur elegante e a forma como ela mantinha os cabelos alinhados naquele coque no alto da cabeça atraente, davam-me uma sensação de que a beleza, apesar de ser um conceito muito pessoal, era uma realidade que me deixava sempre tão tranquilo. Abriu a porta dos passageiros e disse, sorrindo:

- Estás preparado? Vamos embora?

Eu sorri, levemente, sem dizer nada. Apenas girei a chave na ignição e conduzi o carro para fora dali.

Na minha cabeça, ainda estava evidente a mensagem balbuciada tantas vezes pelo homem ruivo, que ficava a repetir, sem parar, na minha memória.

“Tu não estás sozinho!”

Eu sempre acreditei, porém, que na realidade, desde o começo até o fim de nossas vidas, nós sempre estivemos sozinhos…


Ajustei o espelho retrovisor, de modo a verificar se a caixa de transporte, no banco de trás, estava bem afivelada ao cinto de segurança. O gato, um ‘tabby’ europeu comum, deitado dentro dela, dormitava tranquilamente.

Talvez eles tenham razão, afinal…