terça-feira, 20 de abril de 2010

Safiras


Trazes,

No olhar,

O brilho

Intenso

Das safiras,

Que tem o efeito

De perfurar minha alma

Com um punhal

De luz

- Afiado e frio -,

Estilhaçando minha pobre emoção

Em mil fragmentos

- Irrecuperáveis -

E levantando borboletas,

Que alçam voo

Nas minhas entranhas,

Agitando meu coração,

Como um furacão

Que passa,

A estremecer,

Sem derrubar,

Os alicerces

Da minha razão.

domingo, 28 de março de 2010

Tua culpa

A culpa é tua
Se és tão fascinante
E se invades meus sonhos,
No meio da noite,
Como, se de assalto,
Quisesses tirar
Minha alma
De mim.
A culpa é tua
Se teu olhar
Faz de mim
Um escravo
Obediente
E humilde,
Que não quer se libertar
Da candura
Do teu jugo.
A culpa é tua
Se o teu sorriso
Me comove,
A ponto de me fazer
Esquecer de mim,
Perder o controle
Sobre minhas acções
E chorar
De emoção.
A culpa é tua
Se o meu coração
Dá saltos
Quando tu me despes
Com teus olhos
De mar,
Naquele instante
Pequeno
Em que finges
Que não te importas
E eu finjo
Que não percebo.
A culpa é tua
Se ao me perder
Em teus braços,
Achei pedaços
Dispersos
De ti
E ao te encontrar
Perdi-me,
Completamente,
Em ti…

domingo, 14 de março de 2010

Um lago

...E era eu
Um lago
De águas paradas,
- Imperturbável
No passar dos dias,
Escondendo segredos
Na profundidade
Do meu leito -,
Até que tu,
Brisa da manhã,
Vieste agitar
A superfície
Espelhada
Das minhas águas,
Com tua presença
Indelével,
Desvendando meus mistérios,
Com a avidez
De quem lê
As frágeis páginas
De um diário,
Escritas com a força
E com o fogo
Das emoções...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Esquizo-frenesi


- E o que tu pensas que é isso nas tuas mãos?

A pergunta não era somente retórica. Minhas mãos estavam pegajosas, sujas de sangue ainda fresco. Eu me sentia drenado, usado, dolorido. Há dias eu não conseguia me concentrar. Estava sem dormir direito, há algumas noites. A falta de sono já me causava delírios e eu não tinha ideia do que era real e o que era imaginário… ou alucinação.

Ele falava com a naturalidade e com a arrogância de sempre. Eu conhecia aquela ironia e não gostava nada. Estudei o ambiente em que me encontrava e não vi nada anormal, a não ser o rastro, quase invisível, que deixara ao entrar. Algumas gotas vermelhas haviam marcado uma trilha até onde eu me encontrava. Olhei-me no espelho à minha frente e quase não me reconheci. Meus olhos mostravam a loucura que nunca tive e havia profundas olheiras ao redor deles. Eu parecia velho e cansado. Logo eu, que tantas vezes havia proferido o quanto me orgulhava do facto de minha aparência esconder a minha verdadeira idade. Pensei em tomar um banho quente e me barbear. Precisava daquilo…

- Não se faça de santo. Achas que tentar me ignorar vai mudar o que fizeste? Não mesmo!

Será que ele não podia se calar, por uns instantes, somente? Minha cabeça doía. Precisava tomar algum analgésico e um estimulante. Qualquer coisa para me manter acordado por tempo suficiente. Odeio ficar na dependência destes químicos, mas não tenho saída e nem tempo…

- Tente…tente…quero ver se consegues deixar de me ouvir… Achas que podes te livrar de mim, assim tão fácil? Não lembras da outra noite?

Ele ria. E era o riso de um louco. Na outra noite, que mencionava, agora, com sarcasmo, ele havia se deitado na minha cama, perto de mim e me dito para não perturbá-lo, porque eu não ia conseguir vencê-lo. Meu corpo todo tremia, de medo e de frio, mas não tive coragem de enfrentá-lo, nem de puxar a coberta para cima de mim…

Eu só queria voltar a ser aquela criança que ainda tinha um pingo de fé e que acreditava em orações, que rezava quando tinha medo e adormecia tranquilo, livre para sonhar. Tornei-me um adulto amargo, sem fé, sem esperança e sem coragem de enfrentar meus próprios demónios. Mas não sinto saudades do meu tempo de criança. Não quero voltar a ser torturado pelos fantasmas que rondavam a casa, nem pelas vozes dentro do quarto, quando as luzes apagavam. Não gosto de acordar no meio da noite, sem saber onde estou…

Cheguei há pouco, da rua. Ele me perseguiu, por horas, pela cidade. Eu o via em cada esquina, em cada porta de bar de subúrbio que eu entrava. Quanto mais eu o evitava ou me escondia, mais inútil era o esforço. Parece que tinha um localizador posto em algum lugar do meu corpo… em algum lugar em baixo da minha pele. Quando se aproximava de mim, ele ria, saboreando os momentos em que me fazia sentir medo. E aquele riso… maléfico, escarnecedor, enlouquecido… aumentava na minha cabeça, como se ele tivesse o dial de um amplificador.

Peguei o carro e dirigi até a ponte, sobre a estrada. Parei no ponto mais alto e saí, fui até a amurada e não tive dúvida. Ele não ia me vencer. Mergulhei no vazio, mesmo sabendo que me jogava de encontro à morte. Eu via o chão se aproximar de mim e já respirava aliviado. Aquele pesadelo ia acabar ali mesmo…

…Só que não acabou. Ele mergulhou atrás de mim e me segurou pelo tornozelo direito.

- Ainda não. Tu ainda não tens o direito de morrer. A tua hora não chegou.

Ele dizia aquilo como se fosse o senhor da Morte… ou de meus dias.

Ao olhar para além das garras que me seguravam o tornozelo e me traziam de volta ao topo, foi que eu percebi que ele tinha asas. Asas de demónio. Negras. Enormes. Asas que me traziam de volta para a borda da ponte – longe da possibilidade de suicídio. Ele tinha controle completo sobre mim.

O que podia fazer um homem que tentava se suicidar e era trazido de volta à vida por um demónio? Voltei para casa, sem muitas esperanças. Eu só queria poder dormir. Quando entrei pela porta da frente, eu já não tinha mais forças. Ele estava de pé, à minha espera. E riu... Alto… Como um louco ri…

Olhei-o com desprezo. Eu já não sentia medo. Era impaciência que eu sentia. Me joguei no sofá da sala e me entreguei ao cansaço. Fechei os olhos. Já considerava que sonhar seria melhor que aquele pesadelo que eu vivia acordado. Foi então que uma ideia me veio à mente. Eu poderia ter uma saída… mas teria somente uma tentativa.

Levantei-me e fui até a cozinha. Ele não me seguiu. Peguei a maior e mais afiada faca que havia na gaveta e voltei à sala. Ele ainda estava lá, no mesmo lugar. Olhou-me como se uma faca enorme na minha mão fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não pensei duas vezes. Com um movimento rápido, perfurei logo abaixo da linha do esterno, perto da última costela esquerda. Ele apenas riu.

Puxei a faca, com as duas mãos, joguei-a no chão da sala e vim directo para o quarto onde estou agora. Eu ainda o ouço… Ele fala e escarnece de mim.

- O que tu pensas que é isto, nas tuas mãos, afinal?

Ele repetia a frase, no meio daquela confusão toda na minha cabeça.

- Olhe para si mesmo. Tu não passas de um farrapo humano, que nem consegue se livrar de seu demónio. Olhe bem para o que fizeste…

Eu não entendi o que ele queria dizer. Olhei em volta. O rastro vermelho era tão subtil, que parecia nem existir. Minhas pernas fraquejaram. Aquela mancha, sobre o tapete do quarto, aumentava à minha volta... Passei a mão na minha camisa e percebi que estava encharcada e pegajosa. Uma pontada de dor partia de um ponto, abaixo do esterno, um pouco para o lado esquerdo, de onde o sangue escorria sem trégua.

Minha visão começou a ficar turva e a risada dele, ao perceber que eu ia me perdendo, se tornava cada vez mais distante. O que eu sentia, finalmente, era uma paz e um silêncio confortante. Uma sensação que não se parecia nada como o frenesi das noites anteriores. O quarto escureceu, devagar e, então, não o ouvi mais…

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Em anjos...

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...
O conforto
Em meu peito
Me fez pensar
Em anjos,
A proteger-me
De perigos
Que minha emoção
Poderia sofrer
E me deixei envolver
Pelo aconchego
Do abraço,
Me abandonando,
Sem reservas,
Ao encanto
Daquele momento,
Desejando,
Secretamente,
Que o tempo parasse
De contar.
Eu só queria
Poder ficar, ali,
Eternamente,
Nos teus braços;
- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Destes pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 7

O velho vinha ficando cada vez mais anti-social. De vez em quando se isolava e se trancava no quarto, por períodos cada vez mais longos. Dizia que precisava deste isolamento, para colocar suas ideias em ordem. Ela desconfiava que havia algo além daquela boa intenção.

Ao retiro do quarto, era acompanhado somente pelo gato, que mantinha a cumplicidade, sem restrições, sem cobranças, sem se alterar, mas sempre atento aos movimentos do velho companheiro. Havia, entre eles, uma troca incondicional, com a qual o velho aprendera a lidar, tendo em vista a longa jornada que vinham fazendo juntos, entre momentos de alegria e outros de pura angústia. O ruivo felino era companheiro para todas as horas, para todos os momentos de lucidez ou de loucura do homem.


Outra noite avançava lentamente, num dia quente de verão e o silêncio ia tomando conta do lugar. Na saleta, perto da entrada, uma luz ainda estava acesa. O quase inaudível barulho das teclas sendo marteladas, suavemente, chamou a atenção da enfermeira-chefe. Ela sabia quem poderia estar àquela hora no computador. Pensou em se aproximar, mas a sua coerência e o respeito que tinha pelo velho amigo, a impediram de interferir. Ela sentou-se na sala de estar, próxima à entrada, aproveitando a leve brisa que entrava pela porta entreaberta da varanda e um dos poucos momentos de paz de que podia usufruir. A luz do poste iluminava sua silhueta, marcando os contornos do rosto e as linhas delicadas do pescoço e colo, a curva do braço e as ainda belas e torneadas pernas, cruzadas languidamente, sobre a poltrona desbotada. Sua tarefa do dia estava praticamente concluída e ela precisava descansar. Mas ficar ali, ouvindo o toque suave das teclas na sala ao lado, causavam uma certa sonolência e sua mente já divagava por outros lugares e outros tempos.

Ela lembrou do dia em que o velho entrou por aquela porta pela primeira vez. Trazia nas mãos uma pequena mala com roupas e a caixa de transporte do gato. O felino era uma figura à parte. Grande e gorducho, com idade avançada, ainda era bastante inteligente e ágil, dentro do possível, sendo a âncora do velho, para todos os momentos. Sabia o momento certo de se manifestar e o momento certo de, somente, observar. O velho tinha uma consideração e uma afeição sem limites pelo animal que o acompanhava. Eram dois solitários que se compreendiam e se respeitavam mutuamente.

A mulher lembrou das negociações do homem com a directora e como ela se divertiu ao ver a matrona se curvar diante da oferta generosa do velho, com uma condição que ela se arrependera depois de ter tomado. Apesar do período conturbado que se seguiu e que piorava a cada dia, ela ainda conseguia dar boas risadas. Tinha que se esquivar, politicamente, das investidas da directora, do veneno das mulheres mais velhas e até dos comentários das outras enfermeiras, que lhe diziam que era ainda jovem para se enclausurar na casa de repouso e esquecer sua vida social.

Como diria, sabiamente, Colleen McCullough, ela havia se deixado seduzir pela mais indecente das obsessões: o trabalho. Ela sabia que era bem mais profundo que isso, mas preferia não deixar transparecer suas frustrações em relação aos relacionamentos não profícuos que havia tido no passado. Ao invés de continuar tentando, preferia se dedicar exclusivamente à sua vida profissional. O resto, pensava, era secundário. Ela sabia que não estava totalmente certa, mas não estava completamente errada. Evitava sofrer, na melhor das hipóteses.

O som das teclas já havia parado e ela só percebeu que não estava mais sozinha na sala, quando o homem atrás de si fingiu limpar a garganta com um hum-hum audível. Ela se voltou, tentando não parecer embaraçada pela situação e olhou o homem de pé, a lhe observar na penumbra da sala. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, quieto, enquanto ela viajava nos pensamentos e lembranças, tentando se convencer que havia tomado todas as decisões correctas em sua vida.

Ele a olhava com um olhar especial, dedicado somente à ela. Ela parecia ser um dos poucos elos que ele ainda tinha com a sanidade. Aquele par de olhos azuis, com a profundidade do mar e aquele ar desprotegido, como se vida esperasse por ela para continuar, fazia os seus dias mais brilhantes, mais suportáveis... Ele fazia de tudo para estender o tempo em que ela ficava à sua disposição. Ela era uma companhia agradável, que ele apreciava ao extremo. Além do mais, representava a lembrança de um passado, que não era dela, mas que ele prezava - do tempo em que julgou ser feliz.

- É tarde. Melhor ir se deitar, antes que a directora venha fazer alguma ronda e comece a fazer perguntas.

Ela dizia o que lhe vinha à cabeça, pois queria evitar qualquer confronto. Sabia, porém, que o velho não iria dizer nada, pois também não queria conversar sobre o que estava fazendo no computador àquela hora.

- Um chá gelado ia bem, com este calor. Será que há algum na cozinha?

Ele era mestre em iniciar aquelas conversas sem objectivo, para deixá-la à vontade, exprimindo uma conivência descomprometida, demonstrando que respeitava o silêncio dela, desde que o seu também o fosse. Ela sabia que aquela era a deixa para saírem dali, ir à cozinha e falar de amenidades, permitindo que o embaraço do momento passasse completamente. Sabia que, logo, estariam dando risadas, comentando os acontecimentos da casa de descanso e as aprontadas dele e de Ginger, o gato malhado, que no momento descansava no sofá da sala.


Horas depois de amanhecer, no dia seguinte, uma das mulheres notou que a porta do quarto ao fim do corredor não havia sido aberta. Curiosa que era, foi até o lado de fora e verificou que a janela também estava fechada, apesar do calor e do dia já ir adiantado. Era quase hora do almoço e o homem não havia sentado à mesa para fazer as primeiras refeições do dia. Alertada para o fato, a enfermeira-chefe, ao comando da directora, bateu à porta do quarto. Preocupada por não obter nenhuma reacção, nem resposta, usou a chave mestra e entrou no quarto. Na penumbra, viu que o homem ainda estava na cama. Ela desconfiou que algo estivesse errado. Com cautela, acendeu a luz.

O homem que jazia na cama não era, definitivamente, o mesmo da noite anterior, que tomava chá gelado na cozinha e dava risadas com ela, lembrando da gritaria das mulheres, quando o gato trazia seus "presentes" e os depositava aos pés do pessoal, na sala de jantar. O animalzinho, por sua vez, estava sentado aos pés da cama, cuidando do amigo, atento a todos os movimentos da mulher que havia entrado e do homem que jazia na cama, como se olhasse algo muito distante dali. Ele parecia desfigurado, desconfiado, deslocado... Aparentava não ter muita noção de onde se encontrava.

A mulher olhou o velho com compaixão e preocupação. Era como se ela visse, através dos olhos dele, toda a tristeza e o vazio da vida. Ela não sabia quase nada dele, reconhecia. O homem era um mistério não desvendado; uma equação a resolver. E ela não tinha dados suficientes para o cálculo das incógnitas.

A enfermeira-chefe já havia suspeitado que o velho apresentava alguns sintomas estranhos, mas nunca havia realmente ficado naquele estado anteriormente. Aproximou-se com cuidado, segurou a mão dele na sua e perguntou se ele estava bem. Ele a olhou, com um misto de confusão e impaciência. Ela foi até a escrivaninha, abriu a gaveta, para procurar algum medicamento, que ele pudesse estar tomando. Ao abrir a gaveta, viu o papel dobrado, com o timbre conhecido. Parecia estar ali há muito tempo, pois já começava a amarelar. Sem hesitar, ela pegou a folha de papel dobrada ao meio, abriu e leu o documento. Era o resultado de uma consulta a um especialista. No final da folha, escrito em caligrafia quase ilegível de médico, o diagnóstico: princípio de Alzheimer. Medicação: Memantina.

Ela procurou algum frasco de remédio, mas não encontrou naquela gaveta. Procurou no armário do banheiro, mas não havia nada.

Sem pensar em muitas opções, foi até a farmácia, pegou um sedativo e trouxe ao quarto. Era o mínimo que podia fazer. Ainda intrigada, olhou à sua volta. Pensou em procurar na mesinha de cabeceira. Havia um livro escrito por um autor desconhecido e um Novo Testamento. Quando ia fechar a gaveta, notou que o livro não ia até o fundo da mesma. Passou a mão por trás do livro e puxou um frasco pequeno de comprimidos, com o mesmo símbolo do papel timbrado, estampado no rótulo. Leu rapidamente as indicações e deu um comprimido ao velho, com um pouco de água, na qual havia colocado o sedativo.

Apesar de não demonstrar conhecê-la, o homem tomou, obediente, o medicamento que ela ofereceu. Fechou os olhos lentamente e deu um longo suspiro. Parecia cansado demais para lutar. Fechou os olhos, lentamente, sem dizer nenhuma palavra e se entregou ao sono.

Ao olhar o homem adormecido, a enfermeira se perguntava como deixara passar, despercebida, uma evidência tão clara. Devia prestar mais atenção ao paciente, pois agora o comportamento do velho parecia fazer sentido.

- Por que razão ele havia escondido esta condição por tanto tempo? - perguntava-se ela.

Aquela loucura tinha nome - e era terrível. Ela percebeu que o carinho que sentia pelo homem se transformava em compaixão. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela não lutou para conter. Mergulhou o rosto nas duas mãos e chorou de tristeza, pelo amigo ali deitado, à sua frente, com o gato, sempre atento, sentado aos seus pés.

Minutos depois, já praticamente recomposta, a enfermeira-chefe saía silenciosamente do quarto, e se dirigia ao gabinete da directora, com a folha de papel dobrada no bolso do uniforme.