domingo, 29 de novembro de 2009

Pandemônio na casa de descanso - Parte 4

A directora vinha saindo do gabinete, quando viu a enfermeira-chefe passar de braços dados com o velho inquilino. Os outros olhos na sala pousaram sobre os dois, ao passarem tranquilos, com o gato acomodado confortavelmente no colo do velho. As mulheres inspiraram o ar e iam estufando o peito, num sinal de recomeço de falação, quando a directora, sábia e perceptiva, chamou a enfermeira. Esta deu uma batidinha leve no braço do homem e deixou-o ir sozinho para seus aposentos. Virou-se, simulou uma expressão tranquila, mesmo sabendo que iria ter que ouvir outro sermão. Na sua mente, ela pediu, aos Céus, paciência para aguentar as batalhas daquela vida…

- Venha comigo!

A voz da directora era autoritária, mas não demonstrava irritação. Era mais um apelo, desta vez. A enfermeira-chefe conhecia as nuances de humor da mulher. Sabia quando devia estar armada e quando devia ouvir. Aparentemente, desta vez, ela precisaria ouvir, apenas.

- O que se passou lá fora? Nós havíamos conversado sobre isso, antes. Esta preferência e esta intimidade entre vocês não pode continuar assim tão aberta. Pense nos outros que vivem aqui. Já me basta ter que ouvir as “gralhas” a reclamar, todas, ao mesmo tempo, por qualquer coisa. Se elas tiverem razão, será pior ainda…

- Eu sei. Não voltará a acontecer. Eu tentava conseguir uma explicação para a atitude dele, mas não consegui nada – defendeu-se a enfermeira, mantendo os olhos concentrados em suas próprias mãos. Ela não conseguia olhar a outra de frente, quando se sentia culpada.

- Estou cansada. Por favor, não torne os meus dias piores que estes últimos. Pode sair agora. Está na hora de servir a janta e eu espero que este homem esteja por lá. Cuide para que isso aconteça, sem muito transtorno.


O velho estava à janela, quando ela bateu, levemente, à porta do quarto. Ela entrou e ele ainda levou uns segundos para olhar a mulher que estava parada no meio do quarto a lhe observar. Ele notou uma ruga entre os olhos dela. Sabia que aquela expressão de preocupação era por sua causa.

- Tenho uma coisa para te dar. A voz do velho era baixa, meio rouca. Ela não sentiu aquela ironia de minutos atrás, nem qualquer emoção, além da seriedade de agora.

- Está na hora do jantar. Gostaria muito… Ela parou no meio da frase. Ele falou “para te dar”? Seria um presente?, pensou ela. A menina dentro de si aflorou como um raio. Ela olhou para o homem, com uma expressão desconcertada.

O homem percebeu um certo desconforto na situação. Pigarreou e disse, apontando para a caixa, em cima da escrivaninha:

- Quero que fique com isso.

Foi então que a enfermeira-chefe percebeu o objecto para o qual o velho apontara. Em sua memória, os dias passaram em alta velocidade. Ela lembrou do dia que viu, pela primeira vez, a pequena caixa de madeira, decorada com estrelas e luas, em um fundo azul-escuro.


Ela havia entrado no quarto, para chamar o amigo a sentar-se na sala de refeições e encontrou-o sentado, de costas para a porta. Ela chegou a ouvir uma gaveta fechar-se às pressas. Ele suspirou, levantou-se devagar e fitou-a com um olhar penetrante. Parecia sério e preocupado.

- Vamos jantar? - perguntou ela, tentando parecer naturalmente alheia ao momento embaraçoso que se sucedia.

Ele não respondeu. Continuou a olhá-la, com aqueles olhos que nunca pareciam sorrir. Por fim, estendeu-lhe a mão. Ela deu-lhe a sua, quase por instinto. Ele a puxou, levemente, trazendo-a para mais perto de si. Ela sentiu uma espécie de tontura. Ele moveu-se um pouco para o lado e colocou-se à sua esquerda. Virou-se para a escrivaninha, meio hesitante, suspirou e tomou uma decisão. Ela estava, ainda, meio incerta do que estava se passando.

Ele, então, girou uma chave na gaveta do meio e abriu-a, devagar. Parecia que curtia o momento, a excitação e o absurdo do que acontecia, sem que ela esperasse. Puxou-a para perto do móvel, de modo que ela pudesse ver melhor o que havia lá, mas sem colocar a mão dentro da gaveta.

Uma caixa azul, decorada com estrelas e luas amarelas, jazia por cima de um papel dobrado. Ela quase percebeu um timbre no avesso do papel, que estava sob a caixa.

O velho pegou a caixa e colocou-a em cima da escrivaninha, fechando a gaveta logo em seguida. Ela se aproximou, com cuidado, como se fosse invadir uma caverna escondida, em algum lugar secreto do mundo do velho, que continha uma arca de tesouro. Ele levantou, devagar, a tampa. Seus olhos azuis brilharam ao olhar dentro da caixa.


- Prometi à directora que lhe convencia a jantar agora, sem criar muito transtorno. Disse ela, voltando ao presente. Não sei se devo aceitar a sua oferta. Ela misturava os pensamentos e assuntos, em frases que iam aparecendo, sem controle, quando ficava nervosa.

Ele levantou a mão. Ela sabia que devia parar de falar.

- Vamos jantar, agora. Depois conversamos sobre isso. Se eu for agora, prometes que aceitas o presente?

O olhar dele era quase uma súplica… ou um apelo. Podia haver qualquer coisa escondida por trás das intenções do velho, pensou ela, desconfiada.

Mesmo assim, ela fez que sim, balançando a cabeça. Em seguida, tomou a mão do velho e se dirigiu para a porta, puxando-o atrás de si, com delicadeza.

domingo, 22 de novembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 3

- A senhora sabe a condição que ele impôs, quando entrou nesta casa a primeira vez. Nós concordamos… - tentou a enfermeira-chefe interpelar.

- Quem ficou responsável por ele, em primeiro lugar? - interrompeu a directora, seca e decididamente.

A enfermeira-chefe suspirou. Ela sabia que a directora não a ouvia, quando estava cega e ensurdecida pela ira. Chegava a ser intransigente, por vezes, e de nada adiantava tentar demovê-la, a não ser pelo bom senso, que nem sempre aparecia.

Seus olhos azuis baixaram e ela olhou para as mãos – brancas e delicadamente longilíneas - como se procurasse um argumento convincente, sem ofender a autoridade da enérgica mulher, sentada à sua frente. Ela sabia que a responsabilidade era sua, pelo bem-estar do velho. Ela havia assumido a sua parte do contrato, quando o homem chegara àquela casa, com uma única condição, que fora aceita pela direcção, depois de alguma argumentação.

A directora e o velho inquilino tinham muito em comum: eram ambos muito arraigados às suas próprias convicções e os termos eram intransponíveis e irredutíveis, de ambos os lados. Enquanto o velho queria sua privacidade intocada, a mulher queria o controle da situação, a qualquer tempo. Por fim a mulher cedeu. O homem vencera a batalha, com um argumento sem precedentes. Dispôs-se a pagar a anuidade de uma vez só e acrescentou um extra, pela sua privacidade e com a condição de não ser perturbado, quando precisasse estar só, por períodos mais longos. Esta condição preocupou a directora, mas não teve o mesmo efeito na enfermeira-chefe, que se divertiu ao ver o homem dobrar a administradora, com uma barganha daquelas. Ela não esperava, porém, que os tais períodos mais longos fossem durar tanto quanto três dias, como desta vez.

- Eu devia ter percebido que o dinheiro, que nós tanto precisávamos, iria me trazer dores de cabeça. Nada vem assim tão fácil, dizia a directora, à beira do histerismo.

A enfermeira-chefe escondeu um risinho, ao olhar para a austera mulher, que começava a cair na realidade. Claro que nenhuma caridade viria daquela situação. Ela sabia que a condição imposta pelo homem tinha suas dualidades, mas o dinheiro era tão necessário para fazer os pequenos reparos na casa… a pintura havia ficado uma maravilha, pensou a mulher, com os olhos distantes e sem prestar verdadeira atenção ao que a outra falava…

- … se apegaram demais! É contra a ética desta casa! E os outros?

A enfermeira-chefe levantou nos olhos e tentou captar a essência daquela conversa. O que a mulher estava dizendo?

- Ela está me acusando? pensou a enfermeira. Não consegui pegar o começo da frase e não tenho coragem de fazê-la repetir. Ela me mataria por estar falando este tempo todo, sem ter a minha atenção… Melhor me concentrar.

- Dois anos! Dois anos foram suficientes para me envelhecer os dez que eu sinto pesar sobre minhas costas. Os tempos são difíceis, mas isto parece um pacto de morte!

- Ela está exagerando… pensou a enfermeira. Dramática, como sempre. Jesus! Me tire daqui… Ela já não ouvia a conversa-sermão da outra…

Quando saiu do gabinete da directora, a enfermeira-chefe estava cansada e drenada de forças. Mesmo assim, tinha prometido ir ao jardim conversar com o velho. Ela tinha uma simpatia pelo homem, que tanto deixava as outras completamente loucas, quanto fazia a vida da administradora uma carga que ela custava carregar. Mas entre ela e o homem havia uma certa cumplicidade. Desde o início, eles haviam sido amigos. Talvez porque ela respeitava o espaço que o inquilino criou à sua volta, talvez por lembrar-lhe alguém de quem gostava muito. O velho era um mestre para ela. Ela, talvez, fosse o único elo com a realidade, que ele ainda mantinha.

Ao caminhar para a porta que dava para o jardim, ela pensou que talvez estivesse errada a este respeito. Certa vez, havia ficado até tarde arquivando os papéis na sala da directora e viu luz na saleta onde havia o computador. Apesar da maioria dos inquilinos serem idosos, alguns mantinham correspondência, através de e-mail com seus parentes ou amigos. Alguns aprenderam a usar o computador após chegarem àquela casa. Apesar de cansada, foi verificar quem estava no computador aquela hora. Não reconheceu os toques subtis nas teclas, até chegar à porta da saleta.

Ela viu o velho digitando algo, com uma boa destreza manual e até uma certa intimidade com a máquina, apesar da idade. Não castigava as teclas com força, como alguns faziam. Os toques não eram rápidos demais, nem tampouco lentos a ponto de parecer um “catar de milho”. O velho conhecia bem o teclado.

Ela pigarreou baixinho e percebeu que o velho parou de digitar. Ele estava bem à frente do monitor e tratou de fechar o arquivo ou o que quer que estivesse fazendo. Ela sentiu que invadiu um território não permitido. O velho fechou o programa e se virou. Ela sorriu, meio sem jeito. Ele levantou-se e caminhou na direcção dela, olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

- Existem horas em que é melhor não dizermos nada.

Colocou uma mão leve no ombro da mulher, ao passar por ela e saiu, sem olhar para trás. Ele nunca olhava para trás… pensou ela.


Da porta, ela viu a bizarra figura, sentada com óculos escuros, a acariciar atrás das orelhas do gato. Arrastou levemente os sapatos, para se anunciar, sem interromper a intimidade dos dois. O gato logo levantou a cabeça e olhou para a entrada. O velho não se mexeu. Sabia que a mulher viria conversar com ele, mais cedo ou mais tarde.

- Acabo de ouvir um longo sermão. Ela não dizia aquilo com indignação. Era como se contasse uma história, sobre um acontecimento banal.

- Sinto muito. O homem não exprimiu emoção, nem se virou para olhar para ela, ao dizer aquilo.

- Não, não sente… Ela sorriu, ao fazer a constatação e viu que ele riu também.

- Não, não sinto… mas é educado dizer que sinto muito. Ele se voltou para olhar a mulher.

Ela era jovem, talvez beirando os 35 anos. Não tinha uma beleza que o faria virar a cabeça, quando passasse por ele na rua, mas tinha os olhos de um azul profundo, que pareciam pedir socorro. Ele adorava olhar para aqueles olhos. O velho corou um pouco e ela percebeu que por trás dos estranhos óculos, ele a observava com simpatia.

- Vamos entrar? Está esfriando. Ginger já está meio encolhido, mentiu ela e se levantou.

Estendeu a mão ao velho e este cedeu, levantando-se do banco, na tarde que já esfriava lentamente.

O gato pulou à frente dos dois e correu para a porta de entrada, com a trela arrastando atrás de si. Na varanda, parou e esperou pelos dois, que vinham de braços dados. Entrelaçou-se nas pernas do velho e a mulher se abaixou, retirou a trela do corpo do animal e deixou-o livre. O velho se abaixou e tomou o gato no colo. O bichano esfregou a cabeça afectuosamente no peito do homem. A enfermeira-chefe coçou a cabeça do bichinho e este retribuiu, ronronando de satisfação.


- O senhor me deve uma satisfação, não deve? Ela sabia que a pergunta era meio retórica, somente.

- Ficarei feliz em satisfazê-la, disse o velho… mas não sei se serei capaz…

Ela riu. Sabia que aquela conversa estava encerrada. Mas, para sua surpresa, o homem disse:

- Venha. Vou-lhe mostrar uma coisa…

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Pandemônio (na Casa de Descanso) - Parte 2

Lá fora, o velho usa um jornal seco, que apanhara de cima de uma mesa na varandinha, para secar o banco de madeira do pátio, onde iria se sentar logo em seguida.

O gato, percebendo que o chão está molhado, salta sobre o banco e senta-se sobre as patas traseiras, ao lado do homem, atento aos movimentos dos pequenos pássaros, que voam de um galho ao outro do grande flamboyant e, por vezes, brincam entre as flores cor de magenta da buganvília mais adiante. Os olhos atentos do felino estão no movimento das aves, mas suas orelhas giram na direcção do homem sentado, absortamente, a olhar na mesma direcção que ele, com os olhos aparentemente vazios de emoções.

O velho sacode a cabeça levemente e sorri para si mesmo, discretamente. Ele lembra que a enfermeira-chefe costumava dizer que os seus olhos nunca sorriam.

Se ela soubesse… O homem apalpa alguma coisa no bolso esquerdo da calça e meneia, um pouquinho, a cabeça. A mesma canção, que já havia mexido com suas memórias, recomeça a tocar em sua cabeça…

I heard telephones, opera house, favourite melodies
I saw boys, toys, electric irons and TV’s
My brain hurt like a warehouseit had no room to spare
I had to cram so many things to store everything in there*

O velho tira um pedacinho de papel do bolso. Ele acaricia o papelzinho dobrado e amarelado pelo tempo. Com mãos um tanto trémulas, desdobra-o e observa a caligrafia miúda, quase rebuscada. Teria sido, a pequena mensagem, escrita para impressionar?

…And all the fat-skinny people… and all the tall-short people…*

Um nome, escrito em um pedacinho de papel, guardado com tanto cuidado, por tanto tempo… Uma memória de um único encontro e uma mensagem simples. Simples como a sua vida havia sido. O velho volta a dobrar, em dois, o papelzinho amarelado e a guardá-lo no bolso.

… And all the nobody people and all the somebody people…*

A canção continua a repetir, sem parar, na sua cabeça. Ele lembra do dia em que entendeu claramente o sentido daquelas palavras, colocadas tão simples e sabiamente na letra da canção. Lembra como repetiu aquela frase, inúmeras vezes, como se tentasse interiorizar a força e a veracidade de tão manifesta declaração.

…I never thought I’d need so many people…*

Ele percebera como aquela canção o fazia abominar esta dependência, que ele agora sentia, mais do que nunca antes. E, no entanto, a melodia tão bela e, ao mesmo tempo, tão desesperada, o fazia voltar no tempo e lembrar de coisas que o deixavam com vontade de chorar. Seus olhos perdiam-se no vazio. Ele já não estava interessado nos sons e os acontecimentos à sua volta. Sua mente viajava no tempo, para trás e para frente…

As luzes da sala de espera, em frente ao portão 22, de repente, pareceram apagar, excepto por uma: aquela que estava acima dos olhos azuis, que fingiam não ver o homem sentado, a ler um jornal e a demonstrar uma certa inquietação. Os olhos da alma do homem perceberam a luz do outro lado da sala, antes que ele levantasse a cabeça. Ao olhar naquela direcção, pensou, consigo mesmo, em como a vida, às vezes, podia ser injusta. Uma pessoa tão linda e não ia ter a oportunidade de conhecer. Ele, que não tinha o hábito de conversar facilmente com estranhos, daquela vez, não podia estar mais enganado…


Os olhos, por trás dos estranhos óculos escuros, momentaneamente entristeceram. O velho lembrou-se, com uma certa melancolia, de outras pessoas e sentimentos… Não sabia dizer se sentia saudades do que passara. Pode-se sentir saudades dos erros do passado? Nostalgia ou simples auto comiseração – que importava agora, se sua alma se sentia abraçada por um sentimento tão antagónico e sedutor? Era quase confortável experimentar, pelo menos, aquela sensação de tristeza, misturada com saudades de uma certa pessoa, que lhe deixara, de concreto, somente o pedacinho de papel, agora já amarelado pelo tempo e guardado com extremo cuidado em seu bolso.

O gato, sentado ao seu lado, percebeu uma ponta de angústia passar pelo semblante do homem e, chegando mais perto, deu uma cabeçada amiga no velho companheiro, nostalgicamente sentado, em silêncio, ao seu lado. O homem levou a mão à cabeça do felino e acariciou-lhe ternamente. O ronronar de aprovação fê-lo sorrir, apesar da estranha sensação que experimentava, naquele momento.

- Sempre um amigo… sempre atento às mudanças do meu humor…, disse baixinho o homem.

O gato moveu-se e apoiou as patas dianteiras sobre a perna do velho, pedindo mais um pouquinho de carinho e atenção, como se soubesse que esta atitude tinha o efeito exactamente contrário da intenção. O receptor se comprazia em dar ao outro o prazer da afeição que recebia… e ronronou de satisfação.


Lá dentro, as mulheres iam pouco a pouco se dispersando entre seus afazeres e outros interesses momentâneos, deixando de se preocupar com o homem sentado do lado de fora, que não lhes dava ouvidos, nem às suas lamúrias e protestos. Elas sabiam que seria inútil reclamar a ele, pois não lhes dava atenção, especialmente quando todas falavam ao mesmo tempo, facto que o velho ostensivamente abominava. Ele sabia que a directora servia de suporte às “aves palradoras”, pela sua simples presença. Elas usavam as parcas ocasiões em que a mesma se encontrava por perto, para instilar seus venenos e reclamações, completamente ignoradas pela paciência do velho.

Como a directora ia, agora, se ocupar com a enfermeira-chefe, a força das outras se dissolvera no ar, como nuvens ao vento. O som das vozes estridentes foi-se apagando e elas voltavam à sala de TV, ocupadas com seus crochés, revistas de fofocas e jogos de dominó.

Lá fora, o velho dá um suspiro de alívio, ao sentir que as mulheres se calavam. O gato se aninha ao seu lado e se prepara para uma tranquila soneca. O velho observa o felino a proceder com suas lambidas rápidas pela pelagem do dorso, barriga e patas, como se precisasse tomar um banho antes de dormir.


- Vamos ao meu gabinete, disse a directora à enfermeira-chefe. Precisamos conversar… e muito!

sábado, 31 de outubro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 1

Correria pelos corredores da Casa de Descanso… As enfermeiras, desesperadas, batem à porta, insistentemente, com receio que, desta vez, alguma coisa séria tenha acontecido de verdade.

A janela está trancada, com as pesadas cortinas completamente fechadas, de modo que não se pode ver o que acontece lá dentro. Parece que tudo está às escuras. Nem o gato mia, apesar das batidas insistentes.

As enfermeiras ganham uma trégua momentânea… A directora fora chamada. Do meio da sala principal, ela exige respostas.

Há três dias que não se sabe o que acontece no quarto. Há três dias que o homem não sai para fora dos aposentos. Seu velho e companheiro gato está preso lá dentro com ele e nenhum som se consegue ouvir, vindo do pequeno apartamento, provido somente de uma saleta, com uma poltrona e uma escrivaninha à janela, um quartinho com cama e mesinha de cabeceira e um pequeno banheiro com chuveiro. Nada ali é luxuoso, mas confortável o suficiente para uma pessoa que já vive sozinha a sua vida pacata e, quiçá, repleta de recordações.

A directora pergunta como as enfermeiras deixaram de informar o acontecido antes, mas aparentemente ninguém se deu conta que o velho não aparecera às refeições, por tanto tempo. Estas eram religiosamente servidas a cada três horas – duravam cerca de uma hora, cada - e ninguém ousava se atrasar, pois a rotina da cozinha e copa não era quebrada por nada, naquela casa. Quem não estivesse à mesa, tinha que esperar pela próxima ocasião. As enfermeiras não costumavam forçar a presença dos residentes a estas reuniões, pois muitos deles não eram habituados a mais que três refeições por dia. Pular uma ou outra, já era rotina aceita, pois, entre as principais, sempre era servido café e chá com pãezinhos, biscoitos ou bolinhos, sempre acompanhados de geléias, margarina e manteiga, queijo magro e, vez ou outra, algum presunto de frango também.

As moças tinham ordens para manter os alimentos com colesterol baixo sempre à disposição, mas deviam evitar os mais gordurosos – estes, veementemente proibidos pela directora.

Uma das enfermeiras explica que, como a chuva daqueles dias os impedia de ir ao pátio jogar ou tomar sol, as idas e vindas à sala de TV e jogos não eram cronometradas, nem controladas. Com tantos outros afazeres e tantos outros velhinhos para cuidar, elas não notaram a falta…

…Ou notaram, mas não acharam que fosse algo grave ou digno de nota. O velho não é uma pessoa fácil. Muitas vezes era mais um incómodo do que uma simpatia. As enfermeiras o evitam e, na maioria das vezes, os outros moradores da casa também, especialmente quando ele resolve que é tempo de se isolar. Pelo jeito, agora era uma destas ocasiões.

Sabia-se, porém, que o homem não havia saído, pois o portão era vigiado 24 horas por dia e não havia tido nenhuma saída registrada nestes últimos dias.

Mesmo assim, a directora está apreensiva. Uma das enfermeiras mais antigas da casa, a enfermeira-chefe, já acostumada com estas viradas de humor do velho, não se mostrava tão perturbada quanto as outras, mas sabia que ia ser responsabilizada pela negligência. O olhar da directora, entre preocupada e furiosa, cruza com o seu e ela percebe que vai ser atacada.

Sem se colocar na defensiva, a enfermeira se aproxima e se prepara para ouvir o sermão. O velho não aparecia às refeições já há algum tempo e ela sabia que esta, provavelmente, seria a primeira interpelação da directora.


- Água! Água! – grita uma voz feminina, vinda do corredor.


Os passos apressados da mulher ecoam pelo corredor e paredes. Todos olham para aquela direcção, enquanto a enfermeira-chefe solta um contido suspiro de alívio. A directora se vira e corre ao encontro da outra, esquecendo, momentaneamente da mulher que se encontrava à sua frente, segundos atrás. As outras seguem a austera administradora da casa, com a mesma pressa e um misto de curiosidade e apreensão.

Os homens se olham, dão de ombros e voltam para a sala de TV. Ia começar o jogo de futebol e eles queriam assistir…

- Água….ouvi o som de água. Parece ser o chuveiro! – disse, por fim, a esbaforida mulher, que aparece no fim do corredor e que logo percebe que já deveria estar indo na direcção contrária, pois as outras a atropelam na direcção do quarto do velho.

A mulher gira sobre si mesma, perde o equilíbrio, mas nem cai, pois uma outra engancha-se ao seu braço e a arrasta de volta pelo corredor adentro. A gritaria recomeça. Aquele mulherio todo falando ao mesmo tempo, transformam a casa de descanso num pandemónio. Ao chegarem em frente à porta trancada há três dias, a directora levanta a mão e pede silêncio. Como por mágica, todas obedecem e se calam.

- Ouçam! – disse a mulher, com autoridade.


O som meio abafado do miado do gato é ouvido pelas mulheres. Não se ouve, porém, o som de água a escorrer.

A directora suspira. Ela levanta a cabeça, estufa o peito e bate à porta. As outras percebem que ela tenta manter a calma, mas que isso é um esforço muito grande para aquela mulher, tão acostumada aos insólitos acontecimentos na casa de descanso.

Lá fora a chuva parece ter, finalmente estiado. Uma leve garoa ainda cai, insistente, hora sim, hora não, mas o tempo já apresentava melhora, depois de quase duas semanas ininterruptas de chuva e tédio, na pacata cidadezinha e na grande casa de longos corredores, cheios de diminutos apartamentos individuais, como num pequeno hotel.

A enfermeira-chefe olha, distraída, para a janela, através da qual vê uma fina nuvem de neblina cobrir os montes avistados não muito longe do lado leste da casa. Os sons das batidas da directora, à espessa porta de madeira maciça, vão se distanciando, como se ela já não fizesse parte daquele quadro bizarro. Ela se afasta do grupo e olha para fora, na direcção das montanhazinhas quase apagadas pelos tufos brancos de névoa, como se a formar uma delicada aquarela em branco e verde pálido, com uns leves toques de sépia, aqui e acolá.

De repente, com um leve click, mas sem pressa ou indelicadeza, a porta do quarto abre.

A directora ainda estava com a mão levantada, como se fosse bater novamente, parada em frente a um homem semi-calvo, com os ralos cabelos cuidadosamente penteados para trás, vestido com uma camisa branca de punhos abotoados, uma calça cinzenta e confortáveis sapatos, recentemente retocados de graxa preta, à moda antiga. Aparentava uns 70 anos, mas podia-se enganar facilmente pela cor dos cabelos, que ainda mantinham um pouco do castanho claro natural, com as têmporas rajadas de fios brancos. À mão do homem, a trela vermelha terminava em volta do peito e do pescoço do gato malhado de amarelo e ocre, com o peito e as patas em branco, como se calçasse meias três quartos brancas. O velho usava um par de óculos escuros, não condizentes com sua idade, mas parecia altivo e alheio ao tumulto do lado de fora do quarto.

As mulheres olhavam boquiabertas para a tranquilidade ostentada pelo homem e para o comportamento altivo do felino atrelado ao seu lado. O homem as olha sem interesse e dá um passo na direcção da porta de saída, corredor afora, com o gato perceptivelmente atento a cada movimento seu.

- Bom dia, senhoras. Finalmente um lindo dia para um passeio, não? Vamos, Ginger. Vamos passear no pátio.

O gato grunhe e segue o velho com o mesmo passo, o rabo levantado e o caminhar tranquilo e altivo de um felino acostumado ao humano ao seu lado. Parecia que eles faziam parte de uma estudada peça de teatro, da qual os outros também participavam como elenco, mas que haviam sido tomados de surpresa, pelo improviso da situação acontecendo ali à frente deles.

A directora franze o cenho e toma um ar responsável e austero, preparando-se para dizer umas boas verdades ao homem que a deixara exasperada minutos atrás.

- O senhor deve pensar que tem um privilégio maior que as outras pessoas aqui dentro, disse a mulher. Não se faça de desentendido e me dê atenção! A mulher começava a perder a paciência.

O homem não se virou, nem parou, apenas assobiou uma velha canção que conhecia e que havia estado em sua memória, o tempo todo em que esteve ao chuveiro, nos minutos que antecederam aquela situação de anti-clímax, que agora pairava no corredor cheio de pessoas – a maioria ainda sem entender direito o que acontecera - da casa de descanso. Não demorou muito para que a balbúrdia recomeçasse, às costas do velho, para desespero da directora, cuja voz já não se ouvia no meio do burburinho das outras.

A enfermeira-chefe, quase alheia àquela agitação toda, olha, agora, de volta para dentro do edifício e esconde um sorrisinho de alívio, mesmo sabendo que a directora não vai lhe dar trégua, assim que a confusão acabar.

A dois passos da janela, a porta entreaberta do quarto revela o jeito metódico do velho viver. A cama está arrumada, com as cobertas esticadas, mas não a ponto de parecer intocada. Mais adiante, as roupas sujas repousam dentro de um cesto de vime, à entrada do banheiro, onde está também a caixa de areia do gato, limpa dos vestígios dos três dias de clausura dos dois. Alguns papéis empilhados em cima de uma pequena escrivaninha, com alguns lápis e pincéis dentro de um velho frasco de café solúvel, revelam que o velho tem seu próprio mundo e hobby. Não há um cesto de dormir do gato, mas a colcha da cama esconde dois travesseiros, lado a lado. A enfermeira-chefe conclui que não há necessidade de uma cesta de gato naquele aposento. A um canto, perto do pequeno guarda-roupa, um par de chinelos de dedo e um de ténis esperam a sua vez de serem usados novamente. Do lado oposto da cama, uma tigela de comida semi-consumida e outra com água limpa.

A mulher entra, abre as janelas, sem escancará-las, para arejar um pouco o ambiente e sai, fechando a porta atrás de si. Ela avista o velho a sair pela porta que dá para o pátio, com o gato ao seu lado e um batalhão de “aves palradoras” atrás do homem, que parece alheio a tudo, excepto ao gato que o acompanha. Atrás do grupo, vai a directora, com seus passos firmes, no alto do toc-toc de seus saltos de cinco centímetros. Ela diminui os passos, como se lembrando de algo, pára e gira sobre os calcanhares, a olhar a enfermeira-chefe que vem vindo pelo corredor, atrás de si.

- É agora! - pensa a outra.

domingo, 25 de outubro de 2009

Todos os sentidos

Eu ando pelas ruas,
Com os sentidos
- Todos –
Em alerta,
Percebendo os detalhes
Que vão passando
Pelos meus olhos,
Ouvindo os sons
De todas as fontes,
Aspirando os perfumes
De todas as eras,
Sentindo as águas
De todas as chuvas …
Eu ando pela vida,
Ouvindo as músicas
De todas as origens,
Provando os sabores
De todas as culturas,
Sentindo, na pele,
Os prazeres
De todos os amores,
E, no coração,
As emoções
De todas as paixões…
Eu ando
- Solto –
Pelo mundo,
Em terras
Que não são minhas,
Com gentes
De todas as raças,
Bebendo,
Em todas as fontes,
A sabedoria
Que me falta,
Para navegar
Os mares
De todos os oceanos.
Eu ando pelas noites,
Me cobrindo
Com o manto
De todas as estrelas,
Me guiando pela luz
De todos os luares,
Sonhando os devaneios
De todos os anseios,
Enquanto os dias
Não rasgam
A escuridão,
Com sua luz
Sorridente.
Eu ando pelos dias,
Sob o brilho
De todos os sóis,
Em campos de todas as flores,
Sentindo o perfume
De todas as essências,
Nos vapores
De todas as manhãs,
Enquanto os ventos
Espalham as sementes
De todas as plantas,
Nos jardins
De todos os Édens.
Eu ando entre os rostos,
A procurar a luz
De todos os olhares,
A vibrar
Na imensidão
Dos ruídos
De todas as vertentes,
Buscando respostas
Nas vozes
De todos os ventos,
Enquanto observo os detalhes
Despercebidos
A todas as preocupações
Quotidianas,
Que caminham
Ensimesmadas,
Entre o peso
De todas as responsabilidades,
Sem perceber
Que a beleza
Sente a falta
- Constante –
De observadores
Generosos…

Parceria (Para Natasha)

Uma janela
Que se abre
Para o mundo
E uma porta
Que se abre
Para a vida;
Leve como a semente
De dente de leão,
Solta no ar do verão
E forte como o aço,
Que sustenta as estruturas;
Suave como uma brisa
E vigoroso como um furacão;
É trovão no meio da noite
E sol depois da tempestade;
É rio que corre,
Para desaguar no mar
E semente que brota
Depois do inverno;
É dor que dói na alma
E paz que alivia
O coração;
É olhar que se perde
À distância
E os lábios que se aproximam
E se tocam
Na intimidade
Interminável
Da parceria;
É silêncio tranquilo na alma
E grito no coração;
É abrigo das tempestades
E chuva de verão
É choro de saudade
E abraço de reencontro;
É o fogo que aquece
E a brisa que refresca;
É centelha no olhar
E incêndio no peito;
É algema que prende
E chave que liberta;
É perdoar sempre
E magoar nunca;
É um segundo de angústia,
Que dura uma eternidade
E horas de alegria,
Que nunca duram o suficiente;
É o abraço que aquece na chegada
E aquele adeus que esfria a espinha;
É muita conversa
E muito silêncio;
São as canções compartilhadas
E as vozes em meio-tom;
É a dança em contratempo,
Atrapalhando os passos um do outro,
Numa brincadeira de dois;
É amadurecer juntos
E manter o coração de criança;
É tentar manter o sorriso,
Quando as lágrimas inundam a alma,
Com a dor do outro;
É aprender a voar,
Porque os pés
Já não tocam o chão;
É mergulhar num oceano
De incertezas,
Sabendo que vão navegar juntos,
Em qualquer tempo;
É segurar a mão do outro,
Quando o medo
Quer invadir os sentidos
E ser destemido
E avançar
Contra o desconhecido,
Porque a gente tudo pode
Quando está junto do outro…
É ser precioso,
Porque não pode ser diferente;
É ser gigante,
Porque não cabe ser pequeno;
Não é perfeito
E nunca vai ser,
Mas é paixão
E conforto,
Alegria,
Cumplicidade
E uma amizade terna
E eterna…

sábado, 10 de outubro de 2009

Platônico (Excerpt)

O meu amor
É um menino,
Construindo castelos
De areia
À beira do mar:
Mesmo que a maré
Destrua as fortalezas,
Sempre há disposição
Para voltar
A levantar paredes,
Antes que a noite chegue,
Antes que o sol
Se ponha,
- Em silêncio -
Dentro do oceano…
O meu amor é simples
Como as coisas simples
Devem ser:
Directo,
Leve,
Livre,
Despojado de posse,
Cheio de entusiasmo,
Repleto do poder
Da vida.
Assim como caminhar
Pelas madrugadas
Da cidade,
Com a cabeça
Cheia de músicas
E poemas
Nunca acabados,
Atento aos detalhes
De cada ruela,
Das flores
Nos jardins,
Das folhas secas
No Outono,
Meu amor observa
A vida,
Sem querer mudar
A intocável
Mutabilidade
Da natureza...