domingo, 1 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 2)

Phil


Quando as duas mulheres entraram no pub, após um longo dia no consultório, pretendiam simplesmente relaxar um pouco, tomar uma bebida qualquer e fugir do frio lá fora. O bar estava bastante movimentado àquela hora, apesar de já ser tarde para o happy hour.

Na parede oposta à entrada havia um  pequeno palco. O clima era agradável e a música, acústica e de muito boa qualidade. O volume do som era audível, mas discreto o suficiente para manter o público confortável, sem perturbar a conversa. Os músicos poderiam passar quase despercebidos, se tocassem com aquela intenção.

Iluminado apenas por dois pequenos holofotes, direcionados para sua cabeça e mãos, o músico que lá se apresentava no momento era realmente bom, tanto a cantar, quanto a acompanhar-se no violoncelo. Sua voz era harmoniosa e sua performance, estava sendo bastante apreciada pelo público frequentador do local, que mantinha um silêncio quase absoluto, a ouvi-lo atentamente e com extremo deleite. Aquele homem não devia ser apenas um músico de bar.

Os olhos das duas pousaram, curiosos e atónitos, sobre o jovem homem, vestido com uma impecável camisa branca, com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos cotovelos e modernas calças jeans de marca, quando ele levantou a cabeça e teve o rosto completamente iluminado.

- Aquele não é o Gabriel?

- Eu ia perguntar o mesmo. Parece ser ele, sim. Não sabia que ele podia cantar e tocar violoncelo.

- Nem eu. Cada dia, uma surpresa, sim senhora... Vamos lá falar com ele?

- Vamos esperar fazer um intervalo e, então, falamos com ele. O homem é mesmo bom!

A outra olhou-a, com um ar entre o surpreso e o maroto e deu uma risadinha. Ambas aproximaram-se do balcão para pedir um bebida e esperar, enquanto apreciavam o show e mantinham interesse no clima dentro do recinto.

Algumas canções eximiamente bem tocadas após, o músico anunciou que iria parar por uns instantes, levantou-se e dirigiu-se ao bar, perto do palco, na ponta oposta onde as mulheres estavam a observá-lo. Elas abriram caminho entre as pessoas e aproximaram-se. Ele estava de costas. A terapeuta tocou-lhe no ombro e falou:

- Nossa, Gabriel. Que performance linda! Não sabíamos que tocavas assim tão bem. Nem sabíamos que eras um músico, menos ainda que fosses tão bom. Meus parabéns!

O rapaz virou-se. Seus olhos pousaram sobre as duas mulheres e ele sorriu, de uma maneira bastante cordial, mas um tanto estranha.

- Obrigado pelo elogio. Aprecio mesmo a vossa opinião e não sei se mereço tudo isso, mas devem estar a confundir-me com outra pessoa. O meu nome é Filipe, mas artisticamente assino como Phil, que é mais fácil e conveniente.

As duas mulheres entreolharam-se, estupefatas e incrédulas. Tinham certeza que estavam diante do mesmo homem que conheceram há dias e que já havia-lhes causado uma impressão bastante incomum, por ser um raro caso de estudo psicológico.

Ou será que estavam, assim, tão enganadas? Como aquilo podia ser possível? Quem diabos era aquele homem, afinal?

***

A terapeuta ficou às voltas com uma pesquisa por longas horas, noite adentro. Sua cabeça andava aos turbilhões. Vários filmes haviam passado em sua mente, enquanto estudava caso após caso, tentando compreender se estava diante de uma personalidade fragmentada, ou se estava mesmo errada em relação ao homem que tocava, tão perfeitamente, no bar, horas antes. A coisa ficava mais complicada à medida que avançava no que pensava ser o conhecimento de seu paciente, na terapia.

Se Phil e Gabriel fossem o mesmo homem, ela estava diante de um processo muito mais assustador e emaranhado que ela poderia imaginar. Julgava que casos de dupla personalidade eram bastante difíceis de tratar, mas aquele estava começando a ficar assustadoramente denso. E, ainda, havia Lucius a considerar na equação, uma personalidade muito mais intimidante e difícil de conter, que podia, facilmente, dominar as outras, se quisesse... ou pudesse.

Como psicóloga, ela conhecia histórias e relatos científicos, mas, pessoalmente, nunca havia topado com pacientes sofrendo de múltiplas personalidades. Aquele caso era bem mais profundo que isso. Se Gabriel era, por assim dizer, o dono do corpo, como podia ter deixado os outros aparecerem assim?

Ela lembrou que Lucius falara em exteriorização... Ele mostrara saber bem do que falava...

Não vendo nenhuma saída, decidiu que deveria que entrar em contacto com um velho amigo, um professor da faculdade, para trocar informações e tentar perceber melhor como agir, em um caso daqueles. Talvez ele pudesse, com sua experiência, indicar, ou mesmo discutir uma forma de ajudar, antes que...

- Oh, meu Deus! A batalha... Que raios de batalha poderia ser?

***

- Doutora, é a terceira sessão que Gabriel falta. Não consegui contactá-lo pelo telefone. Está desligado.

- Vamos ao pub, hoje, ver se encontramos Phil. Quem sabe ele esteja lá... Começo a ficar muito mais preocupada, agora.

- OK. Vamos ao pub.

O dia arrastou-se, na sua rotina e quando, finalmente, acabou-se, a secretária entrou no consultório, já toda pronta para sair. A psicóloga ainda tomava alguns apontamentos da última sessão, mas levantou-se de pronto e, com uma expressão que não escondia a ansiedade, tomou a bolsa. Deu um longo suspiro.

- Temos que descobrir o que está havendo. Tenho medo do que possa vir por aí...

Quando chegaram ao pub, olharam imediatamente para o pequeno palco, mas o músico que lá estava não era quem esperavam. Ao perguntar por Phil, o barman informou-lhes que só devia aparecer dali há dois dias. Ele havia deixado um número de telefone, mas parecia estar desligado, portanto não tinham como contactá-lo.

As duas mulheres resolveram que deveriam esperar até dali há dois dias e saíram do bar, logo em seguida. Talvez tivessem mais sorte em um par de dias...

Ao cruzar a rua, no fim do quarteirão, esbarraram num jovem que vinha de cabeça baixa a caminhar, meio sem destino. Seus cabelos estavam desalinhados, sua barba por fazer há algum tempo e suas roupas bastante sujas. Era, com certeza, um morador de rua. Pelo jeito que vinha a caminhar, parecia estar drogado. A terapeuta pediu desculpas e atravessou a rua, apressada, acompanhada da secretária. Nenhuma das duas olhou para trás, logo esquecendo o incidente.

O homem, logo que alcançou a calçada, voltou-se e ficou a acompanhar, com o olhar, as duas mulheres a caminhar do outro lado da rua, apressadas, na direção oposta. Esperou um pouco, até que elas virassem na esquina e voltou a cruzar a faixa de pedestres, apressando o passo, para alcançá-las.

Ao chegar à esquina, onde as mulheres viraram, o homem viu que uma delas já estava ao volante de um carro, enquanto a outra entrava pelo outro lado e, antes mesmo que ele chegasse mais perto, arrancaram dali.

Ele seguiu-as com o olhar, pois sabia que não ia conseguir chegar mais perto que já havia... não daquela vez, pelo menos. Mas oportunidades não iriam faltar...

***

Dois dias depois, durante o intervalo do happy hour, no pub do outro lado da rua, a psicóloga conversava com o músico da noite e convenceu-o, depois de muita conversa, a ir vê-la no consultório, mesmo que por uma única vez, conforme ela prometeu. Sabia que precisava de ajuda e, talvez, Phil pudesse apontar-lhe uma saída.

Quando o jovem entrou, vestido impecavelmente, como ela o conheceu, na outra noite, ele abriu-lhe um sorriso imenso e estendeu-lhe a mão. A mulher tomou-lhe a mão, educadamente, mas sentiu mais que uma simples simpatia pelo personagem que estava de pé à sua frente.

- Bem vindo, Phil. Fale-me um pouco de si, por favor. Acredito que haja muito a dizer.

Ele sorriu. A conversa começou muito amena, mas depois de alguns pontos, quase sem importância, ele falou:

- Bom, como sabes, meu nome é Phil. Em dias normais, sou um músico reconhecido, mas este é apenas um disfarce.

A mulher levantou a sobrancelha, em estado de alerta. Sabia que havia algo mais, que ele não havia contado. 

- Sei que esconder minhas habilidades aumenta um certo mistério, mas também serve para apanhar o inimigo desprevenido. Apesar da minha aparência calma e da minha muito pouca experiência em lutar, acredito que serei um poderoso 'asset', quando vier a fase de guerra fria. Pode não parecer, mas sou um exímio atleta. Minha maior virtude é a resistência física e à dor. Eu tenho asas às minhas costas, mas estas ainda estão em crescimento. No futuro terei asas enormes – ao menos assim o espero... e poderei voar alto e longe. Até lá tenho que me preparar bem, pois minhas habilidades serão de grande valia. Quando for necessário, porém, saberei usar meus recursos com grande maestria.

Ele chegou-se para frente, como quem está para revelar um grande segredo. A mulher já estava bem mais que assustada.

- Tenha cuidado, porém, com o Rael. Ele é muito perigoso.

- Quem é Rael?

- Tu talvez não saibas quem ele seja, mas podes ter certeza que ele sabe muito bem quem tu és...

***

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 1)

Gabriel

 - Gabriel? Gabriel? Sabes onde estás?

O jovem olhou em volta, mas não pareceu reconhecer o lugar. A sala era comum, com uma grande janela voltada para a cidade. Apesar de estarem apenas no 4º andar, não era possível ouvir os sons que passavam lá fora. As vedações eram quase perfeitas, o que era excelente para um consultório como aquele.

O homem balançou a cabeça. Seus olhos pareciam vazios, como se estivesse num estado de confusão mental bastante grande. Não dava nenhuma demonstração de saber onde estava.

- Foste encontrado na rua, aparentemente sem saber quem eras ou onde estavas e foste trazido para cá. Vimos teu nome na documentação na tua carteira. Consegues entender o que eu digo?

Ele fitou a pequena mulher com um ar entre o confuso e o hostil. A psicóloga já estava acostumada, em seus muitos anos de experiência, a lidar com pacientes hostis, em confusão mental ou, mesmo, com amnésia. Não mostrou-se intimidada. Voltou a perguntar ao rapaz de pálidos olhos azuis:

- Gabriel? Consegues compreender o que falo?

O rapaz olhou a mulher, agora com uma certa irritação, franziu no cenho e grunhiu, entre dentes.

- Meu nome não é Gabriel.

A mulherzinha observou-o com outros olhos. Ele parecia estar realmente indignado ao ser chamado pelo nome que ela usara. Seus olhos revelaram um pouco mais que irritação. Havia algo mais selvagem e agressivo neles.

Ela percebeu que estava diante de um caso mais complicado que contava. Não parecia ser apenas um problema de confusão mental ou amnésia. Ela viu que podia ser muito mais que aquilo. Se não tivesse passado por um grande trauma, poderia ser...

... Não ... não podia ser...

Há muito que não via um paciente com aquelas características, mas ela própria duvidava que suas suspeitas tivessem fundamento. Tentou escrutinar as reações do homem, ao aproximar-se dele, para ver como reagia, mas foi interrompida.

- Ele tinha sangue nas mãos e na camisa… o rosto estava machucado e estava completamente desorientado. Quase nem ofereceu resistência a ser trazido para cá. Talvez tenha sido assaltado, levado uma surra, batido com a cabeça, ou algo assim.

O policial parecia perturbado. Havia recolhido o jovem na rua e pelo estado em que se encontrava, parecia haver sido vítima de agressão ou, talvez, pelo contrário, ter agredido alguém. Como a carteira ainda estava no bolso, a hipótese de assalto era menor. A não ser que tivesse reagido e dado luta...

- Tenha calma. Vamos ter que desvendar este mistério. Primeiro tenho que fazê-lo falar. Talvez seja melhor investigar a área onde foi encontrado, para ver se há alguém ferido. Melhor chamar a emergência para verificar seu estado de saúde física. Enquanto isso, eu tento descobrir algo, embora pense que não seja tão fácil.

O policial puxou-a para o lado e disse-lhe que não seria aconselhável deixá-la sozinha com o homem. Ela concordou, mas pediu-lhe para esperar na saleta contígua ao consultório, ao que ele acedeu, meio a contragosto. A especialista era ela, afinal.

A mulher voltou, então, sua atenção ao jovem homem, sentado numa confortável poltrona revestida com couro castanho-escuro. Ele tinha o olhar perdido para além da janela, num ponto muito distante dali.

- O que é que o preocupa? Já não pareces perdido ou confuso. Podes contar-me o que aconteceu?

A mulher usava de cautela, ao falar. Sabia que o documento que o policial havia-lhe entregue era original e que era daquele homem. Na carteira de identidade, o nome era Gabriel.

- Fale comigo, Gabriel, por favor.

- Já disse que meu nome não é Gabriel. Gabriel é um tolo. Eu sou Lucius.

- Lucius?

Ele assentiu e sorriu... e seu sorriso tinha um ar beirando o perverso. A mulher sentiu que suas suspeitas pareciam estar certas, mas precisava de mais convicção. Precisava fazê-lo falar, mas tinha que ter cautela. Uma profissional como ela não podia confiar em suspeitas.

- OK, Lucius. Fala-me de ti, por favor. Preciso tentar compreender o que aconteceu.

O homem chegou-se um pouco para a frente e começou a falar. A mulher ouvia atentamente, tentando gravar cada palavra que ele dizia, na sua mente treinada para tratar de casos exceptionais como aquele.

Lucius


- O nome, pelo qual eu respondo, é Lucius. Este poderia muito bem ser Lúcifer, que talvez fosse mais apropriado, tendo em vista minha forma, um tanto violenta, de exteriorização.

- Exteriorização?

Ele ignorou-a e continuou.

- Desde muito tenra idade eu tenho sido uma personalidade difícil de lidar e, por isso, muitas vezes perco o controle sobre meus atos e parto para cima de meus contendores, com extrema violência. Tenho muitas passagens pela polícia, mas não é uma coisa que realmente me deixe preocupado. Quando sou preso, meus companheiros de cela não tardam a conhecer o poder da minha força e, mais especificamente, da minha ira. Não foram poucas as vezes em que tive que ser colocado em cela separada, ou levar banhos gelados, para acalmar-me. O que gosto mesmo é de uma boa briga. Eu tomo estas experiências como treino para a grande batalha. Mal sabem eles o que os espera. Pelo menos eu estarei preparado… Quem não estiver, que sofra as consequências…

A mulher olhou o jovem homem, agora tão seguro de si, completamente oposto ao estado em que havia chegado e confirmou, em sua mente, que estava certa. Aquele homem era mais que um caso complexo a estudar. Era uma bomba relógio, pronta a explodir.

- Que grande batalha é esta?

Ele sorriu.

- Pergunte ao Gabriel...

***

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Anjo Caído (Parte 2 de 2)


O anjo ficou muito sério, pois não esperava que uma proposta daquelas fosse possível de ser concebida, menos ainda de ser proferida em voz alta. O preço era mesmo muito alto, pensou. Ele sabia, todavia, que tinha que tomar uma decisão rápida.

- Minhas asas? Eu não posso…

- Podes, se quiseres. Afinal, para que elas servem aqui, neste limbo, neste lugar abandonado, onde estarás em castigo por muitos milênios?

O demónio era mestre na arte da persuasão e sabia usar, e muito bem, as suas artimanhas para convencer o outro.

- Olha…

E virou-se, mostrando suas costas, onde duas cicatrizes, do tamanho de uma mão, cada uma em um lado, na altura dos ombros, marcavam os lugares onde antes haviam estado suas próprias asas.

O anjo sentiu-se perdido, completamente sem palavras, ao ver o que havia acontecido ao outro.

- Eu também fui um anjo e também tinha minhas próprias asas. Mas fui destituído delas pela ira do todo-poderoso. No entanto, eu sobrevivi…

- Eu pago o preço. Mas deixa-me ver a minha amada, pelo menos uma vez mais.

O demónio sorriu e estendeu a mão ao anjo...

- Chega disto!

Bem naquele momento, em que uma grande negociação fechava-se, entre os dois seres imortais, a voz do todo-poderoso, forte e dramática como um trovão, causava duas fortes emoções no limbo. Ao demónio, causou terror e medo. Ao anjo, sentimentos que pouco conhecia: ódio e rancor!

- Eu te preveni. Cuidado com o que desejas… e a ti, avisei-te para ficar longe daqui, mas nenhum dos dois importou-se. Agora vão ambos conhecer o peso da minha mão.

E o todo-poderoso baniu o demónio para todo o sempre, jogando-o nas profundezas de um inferno, do qual jamais sairia. Em seguida, dirigiu-se ao anjo.

- Tu escolheste teu destino. Agora vais poder ver a tua tão amada, como querias. O preço que ias pagar ao demónio pagas a mim, só que com altos juros. Agora sairás da minha presença, para todo o sempre... ou pelo tempo que conseguires existir…

E, ao arrancar-lhe as asas, lançou-o fora do limbo, destituindo-o de todos os seus poderes angelicais. Deu-lhe um corpo físico e uma vida tão imprevista quanto a dos homens... assim como uma maldição...

- Quanto mais conviveres entre os homens, mais vais esquecer a tua vida de anjo, até que, se tiveres sorte para viver o bastante, esquecerás completamente quem eras.

***

Na noite chuvosa, em meio ao fulgor momentâneo dos relâmpagos e ao repetido ribombar dos trovões, uma silhueta caminha por uma rua deserta do subúrbio, a procurar, em cada porta, o sinal certo. Cada clarão converte-o em mais detalhes. Suas costas estão a sangrar e o corpo está desnudo. Ele para em frente à uma porta e vê que é o lugar que procura. Sobe o pequeno lance de três degraus e bate na fria e dura madeira.

Uma mulher de idade avançada abre-lhe a porta e escandaliza-se ao ver o estado do homem, que parece um mendigo, encharcado de chuva e com um ar desesperado ou, talvez, enlouquecido. Ela não sabia distinguir qual daqueles dois estados podiam aplicar-se ao homem.

- Eu tenho que vê-la, por favor.

- Vá embora ou eu chamo a polícia.

- Por favor, minha senhora… eu preciso vê-la, nem que seja por um minuto. Custou-me tanto encontrar este lugar…

A mulher tentou fechar a porta, mas o homem apoiou-se na maçaneta e, perdendo o equilíbrio, caiu para dentro, aos pés dela. A mulher não podia deixar aquele homem nu, caído no tapete da entrada, a sangrar. Arrancou a toalha da mesa e estendeu sobre seu corpo. O homem resmungou o nome da filha, pedindo para vê-la.

- De onde tu conheces a minha filha? Oh, cubra-se, pelo amor de Deus!

- Eu sei que ela está adoentada por minha causa. Por favor, senhora. Preciso vê-la.

- Chegaste tarde demais. Ela está nas últimas. Já não há o que se possa fazer.

- Oh! Não pode ser possível. Não pode ser possível!

O homem irrompeu em um pranto inconsolável e a mulher comoveu-se, percebendo que o que ele dizia e o que sentia eram verdadeiros. Convidou-o para ir ao quarto, onde a filha jazia. Ao ver sua amada, quase sem vida, deitada na cama, o homem chorou mais ainda. Aproximou-se do corpo e tocou-lhe a face. Ela abriu os olhos, com muita dificuldade e olhou para o jovem. Ele tinha um aspeto lastimável, mas pareceu sorrir. Ela tentou levantar a mão e tocar-lhe. Ele segurou-lhe a frágil e pálida mão, levou-a aos lábios e beijou, suavemente. Dentro de si, um fogo pareceu arder com o calor de mil fornalhas acesas.

- Minha querida. Que medo eu tive de não chegar a tempo. Perdão, meu grande amor…

A moça tentou sorrir, mas era um esforço muito grande. Tentou falar, mas apenas conseguiu balbuciar uma única palavra, num sussurro quase inaudível.

- Anjo…

Ela fechou os olhos muito devagar. Sua expressão deixou de transparecer tristeza e transmutou-se em algo mais sereno, como se uma inesperada paz tomasse conta de si, naquele momento. Ele aproximou-se e tocou seus lábios, muito suavemente, num beijo frágil como o toque das asas de uma borboleta. Ela respondeu, debilmente, ao contacto da boca daquele jovem, martirizado por uma dor quase insuportável. Suas últimas forças esvaíram-se, finalmente, naquele único beijo, trocado entre os amantes impossíveis. Seu derradeiro suspiro foi na boca de seu amado.

Ele deitou a cabeça no colo dela e chorou copiosamente, como uma criança que experimenta a angústia da perda, pela primeira vez... o que não estava longe da verdade.

 A mãe olhou o jovem enrolado na toalha de mesa, com as costas ainda a sangrar, abraçado ao corpo já sem vida da filha e perguntou-lhe o que aquilo significava.

- É uma longa história...

- Preciso tratar do funeral, mas antes, deixa-me cuidar destes ferimentos... Enquanto isso, tu contas o que te aconteceu.

E ele contou-lhe sua inacreditável saga. A mulher ouviu, com atenção, cada detalhe, como se estivesse ouvindo o relato de um sonho. Não sabia se acreditava naquela loucura ou se considerava a si mesma e à filha, duas afortunadas.

- Admito que seja uma bela história. Um tanto delusória e triste, mas bela, mesmo assim.

O homem sorriu. Era um sorriso consternado, quase um pedido de socorro. Sabia que acreditar no que havia falado pareceria loucura, mas resolveu que não tinha que insistir em dar mais detalhes. Por ora, bastava aquela verdade, apesar de parecer inconcebível, à primeira vista. Terminou, então, o relato com algumas perguntas perturbadoras.

- É isso que chamam de amor, os homens? É sempre assim tão angustiante este sentimento entre as pessoas? Nunca conheci uma aflição tão grande como esta. É por isso que alguns evitam-no de todas as maneiras? Nunca pensei que fosse possível sentir uma dor tão lancinante quanto a que sinto agora. É preferível morrer que viver com isto a maltratar tanto a alma. É mesmo uma sensação horrível…

A mulher olhou o jovem, sentindo uma tristeza pungente a dilacerar-lhe o espírito, sem saber, com certeza, o que responder-lhe. Disse-lhe, entretanto, a única coisa que conseguiu, naquele momento e que, para si, era a mais pura verdade.

- Nem sempre é assim, meu rapaz... Nem sempre... Às vezes, um único contacto, um breve momento já valem a pena. O que importa é a intensidade do sentimento. O amor consegue curar até mesmo as mais profundas dores e transformar as mais horríveis cicatrizes em memórias, somente. Lembre-se disso, no futuro, pois é um poder grandioso demais, para ser menosprezado ou banalizado.

***

Alguns longos anos se passaram. O rapaz, que inicialmente evitava o contato humano, expondo-se muito pouco e usando subterfúgios para não mostrar suas estranhas estigmas, amadureceu e aprendeu a lidar com a dor e com as limitações da sua condição e aparência física. Não queria ser considerado um masoquista, adepto de estranhos jogos de autoflagelo e mutilação, ou mesmo um louco.

Esperava que na hora certa, com a pessoa certa, ele, talvez pudesse mostrar evidências do que havia passado. Sua trágica história estava escrita nas marcas que o corpo iria carregar, enquanto vivesse. Mais profundas que as do corpo, porém, eram suas cicatrizes na alma: as marcas indeléveis do seu passado, em outra condição de "vida". Eram também suas provas de alguma vez, quase já esquecida, haver feito parte da legião do amor infinito do todo-poderoso.

Sabia que se o tempo passasse muito depressa, até mesmo aquelas memórias acabariam por dissipar-se por completo... como uma maldição... ou uma dádiva...

Infelizmente o tempo era, também, servo do todo-poderoso e apressou-se a passar mais rápido que o homem conseguiu reter as memórias... conforme fora previsto pelo mestre de todos os mestres...

***

Um homem de pele muito clara e cabeça calva viu a pessoa que saía da estação, com um ar sombrio, como se carregasse um fardo maior que merecesse e viu que era a perfeita circunstância para entrar em contato. Fingiu distração e deixou-se esbarrar, fazendo com que os pacotes que carregava nas sacolas às suas mãos, caíssem todos sobre o passeio...

***

- Eu juro que vi, no corpo dele, cicatrizes parecidas com aquelas nas minhas costas.

- Deves ter sonhado, ou era efeito do álcool. Sabes que não pode ser, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela tinha razão. Eu devo ter-me enganado. Não podia ser...

Sacudi a cabeça, como quem tenta desvencilhar-se de um mau pensamento e saí. Eu sabia que às vezes sonhava que podia voar como um anjo e que aquilo era uma evidência a comprovar que meus sonhos poderiam mais que isso, apenas. Ou talvez não...

***

Agora, olhando, assim, seu corpo tão pálido e tão plácido, deitado na cama, ao meu lado, tento não fazer movimentos bruscos, para não acordá-lo. Esta sua tranquilidade faz-me crer no poder de um amor, que é capaz de vencer todas as dores e que parece emanar dele, mesmo quando dorme como um humano. 

Observo as cicatrizes, pouco disfarçadas pelas tatuagens muito bem feitas e sinto que a fortuna fê-lo aproximar-se de mim, tornando-me um ser tão especial quanto ele. Tenho ímpeto de tocar-lhe as costas, de leve, tentando apaziguar-lhe toda a dor que alguma vez sentiu e todas as provações pelas quais passou.

Nunca tive coragem de perguntar-lhe como conseguira fugir do inferno em que foi jogado e, para falar a verdade, não sei se, realmente, me interessa. Meu anjo caído dorme em paz. Eu vivo em paz, na paz dele... e é o que me basta...

Beijo suas cicatrizes, como quem deseja a cura de todos os males do mundo e sinto que sua musculatura reage ao calor morno dos meus lábios. Ele geme, baixinho e vira-se um pouco. Seus olhos verdes fixam-se nos meus e eu penso que o amor é uma conexão entre o divino e o humano e que quanto mais ele cresce e intensifica, mais próximos do divino nos tornamos. 

Ele parece ler meus pensamentos e puxa-me para si, abraçando-me com seu corpo cálido. Neste momento, sinto que eu poderia voar, mesmo sem as asas que o todo-poderoso retirou-me, quando lançou-me ao limbo, por tentar desafiar suas ordens e fazer pacto com seu anjo desobediente... 

Ele passa as pontas dos dedos nas minhas cicatrizes e diz-me que tudo vai ficar bem... e eu acredito nele, afinal. Ele fez-me recuperar a memória perdida dos tempos em que ambos vivíamos no paraíso e que éramos parte do amor do amor...

Vivi tanto tempo entre os homens, que cheguei a esquecer-me completamente quem eu era, até que ele esbarrou em mim, talvez de propósito, talvez por acaso... e mudou, totalmente, minha vida...

Teria o divino reconsiderado e decidido nos dar uma segunda chance? Teria ele feito um pacto de recuperação de ambos, se aquele doce demónio conseguisse fazer-me ver, novamente, o lado positivo do amor?

Acho que nunca saberei a verdade...


sábado, 31 de janeiro de 2015

Anjo Caído (Parte 1 de 2)


- O quê?

- Sério! Juro que vi…

- Deve ter sido o efeito do álcool. Não é possível, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela deu uma risada alta, virou-se e saiu. Eu fiquei ali a olhar o vazio, sentindo-me completamente anormal. Coloquei-me no lugar dela. Se eu ouvisse uma conversa daquelas, também não acreditaria. Ela tinha razão. Quão caricata era aquela situação? Ou talvez, nem tanto… se não fosse, de uma certa maneira, bastante assustadora. 

Fiquei pensando se não seria mesmo loucura e se não havia sido impressão minha. Mas eu tinha certeza do que havia visto….

Tinha mesmo… ou será que não?

***

- Não, não e não!

- Santa intransigência!

- Respeitinho, senão eu acabo com a tua raça! Tu só me trazes vergonha! Já não sei mais o que faço contigo…

- Mas…

- Sem mas, nem meio mas! Eu já disse que não! Não quero mais falar nisso!

O todo-poderoso saiu, deixando o outro vermelho de vergonha e a sentir um pouco de irritação, pela demonstração de fúria e intransigência, ante a quebra de regra iminente…

Bem, já não era apenas iminente… mas enfim… 

Que mal poderia haver em abrir uma pequena brecha numa regra tão antiquada? Os tempos haviam mudado, o mundo havia evoluído e eles ainda viviam segundo preceitos criados há muitos milênios atrás, antes mesmo dos tempos dos tempos. Eles eram de uma casta superior. Por que não poderiam estar acima daquelas regras?

Arrependido de haver pedido permissão e sabendo que não poderia ir contra o todo-poderoso, ele resolveu que se queria ver sua grande paixão, teria que ser às escondidas, ou sofreria as consequências. 

Ele ponderou, mas achou que o risco valia a pena. Aquela pele tão pálida, aqueles olhos tão tristes, aquela boca tão perfeita, mexiam muito com ele, de uma forma que não conseguia explicar. Era um sentimento diferente daquele que tinha pelo todo-poderoso e pelos seus outros semelhantes.

Ele já tinha ouvido histórias horríveis sobre a ira e os castigos do mestre dos mestres. Também sobre as consequências da desobediência e do que poderia acontecer-lhe se fosse descoberto. O onipresente era irascível, às vezes, e ele estava por um fio.

Mas aquela boca… aqueles olhos… aquela voz...

Ele experimentava uma mistura de dor e uma sensação cálida e confortável, que ardia-lhe por dentro. Aquilo causava-lhe alguma confusão, mas ele achava que não podia ser mau, se trazia-lhe aquele aconchego inexplicável na alma.

***

Ela estava deitada, com os olhos fechados. Ele aproximou-se e observou-a, com cuidado. Sabia que ela não o veria, não sentiria sua presença, nem o seu toque. Suas mãos não a podiam tocar. Seus lábios não saberiam o sabor dos dela. Ele era diáfano como um sonho. 

Ela moveu-se. Seus cabelos ruivos, caídos por sobre a almofada, pareciam um por de sol a incendiar o céu de verão... e a sua alma de anjo. Ele queria poder tocá-los, senti-los, acariciá-los. Mas não podia. Ele não tinha pele, não tinha forma, não tinha corpo. Era mais suave que a brisa e, mesmo assim, não conseguia mover um fio dos cabelos dela. Aproximou-se de sua face. 

Tentou tocá-la, mas passou por ela como um pensamento. Soprou sobre ela. Nada.

Queria tanto ser diferente. Queria ter corpo, mãos, dedos, lábios…

Ela parecia um anjo, de tão linda. 

Bobagem. Os anjos não tem formas assim tão… tão… tão… Não havia palavra que pudesse descrever aquela beleza. 

Ele desejou, com todas as suas forças, poder fazê-la sentir sua presença.

- Tu és tão linda!

Um sussurro. Não mais que um sussurro, no ouvido dela.

Ela sorriu. Coincidência. Infeliz coincidência, que mexe com a alma dele. Como pode-se ser tão feliz e tão triste, ao mesmo tempo. Que sentimento estranho é esse?

Ele desejou ter um corpo. Queria tanto deixar de ser, somente, uma ideia, uma alma…

Ela sorriu. Será que o ouviu?

Ele conhecia a única forma de estar com ela. Entraria no seu sonho, com extremo cuidado. Aquela era a única forma de fazer-se sentir. O sonho sempre fora tão etéreo e volátil quanto ele.

Ela estava sentada à beira de uma fonte de água a olhar sua própria imagem refletida. Parecia um tanto triste. Ele aproximou-se por trás e sua imagem apareceu ao lado da dela. Ela assustou-se.

- Quem és tu?

- Não tenhas medo. Não fujas. Eu não tenho nome.

- Assustaste-me.

- Desculpe. Não foi minha intenção. Só queria ver-te.

Ela riu. Mesmo assustada, tinha que reconhecer que ele era um homem muito atraente.

- Ver-me?

- Venho cá todas as noites só para ver-te. Passo os dias só a pensar em ti...

- És louco. Não me conheces, nem eu a ti. Como podes dizer isso?

- Só aqui posso falar contigo... Não tenho permissão para contatar-te, nem revelar-me. Mas não sei viver sem vir e ver-te. Tu me fazes tão bem...

- Permissão? De quem?

- Do todo-poderoso. Os anjos não podem entrar em contato com o mundo dos homens. Mas descobri que posso ver-te e falar contigo, nos sonhos.

- Estás a assustar-me...

- Não, por favor. Não tenhas medo. Eu jamais te faria algum mal. Melhor eu ir, então.

Ela mirou-o com aqueles olhos tristes, que tanto o comoveram. Ele sentiu que seria capaz de abdicar de tudo, só para poder tocá-la uma vez, que fosse, mas se o fizesse poderia perdê-la para sempre. Teve medo do todo poderoso. Não podia levantar mais suspeitas.

- Tenho que ir. Posso voltar outra noite?

- Podes. Deves. Prometo que não vou assustar-me na próxima vez.

Ele despediu-se com um aceno. Seus olhos fixaram-se nos dela e sentiu que seria capaz de chorar, se tivesse como, mas anjos não tem este privilégio. Estes tipos de reações, sensações e sentimentos são exclusivos dos corpos dos homens, não de seres como ele, sem corpo, sem pele, sem coração, sem cérebro...

Ele invejou os humanos. Mal sabia o que o esperava.


***

- Ignóbil! Desobediente! Não vês o risco e o mal a que a expões? Eu te avisei.

- Mas, senhor... não fiz por mal. Foi fraqueza minha, reconheço, mas não foi por mal.

- Eu te avisei. Serás castigado. Jamais voltarás a aproximar-te dela.

- Mas, senhor, foi somente em sonhos e não mais que umas poucas vezes…

- Além de desobediente, és mentiroso. Ou achas que eu não tenho domínio sobre os anjos que eu tenho? Umas poucas vezes, uma… er… ova…!!!

E o grande mestre dos mestres engoliu o imprecativo e lançou o anjo no limbo, onde não poderia chegar aos humanos, nem em sonhos, com a proibição de voltar a acontecer. 

Uma grande tristeza assolou o espírito de ambos, pois nem um nem o outro sentia-se confortável com a situação.

***

- Eu posso ajudar-te, se quiseres.

- E quem és tu? Como é que chegaste cá?

- Tu sabes quem e o que eu sou… eu tenho meus próprios meios… e sou o único que posso ajudar-te, se quiseres.

- Eu não posso associar-me a ti, de jeito nenhum. Tens que ir-te daqui.

- Eu, se fosse tu, pensava bem a respeito. Sei de uma pessoa que chora dia e noite, desde que desapareceste. Ela não sabe o que te aconteceu. Pensa que foi abandonada. Achas isso justo?

- Acho estranho que fales de justiça… logo tu…

- Não te enganes. O todo-poderoso é implacável na ira e no castigo. Achas que isso é justiça, afinal? Queres dizer que concordas com o castigo que ele impingiu a ti?

O anjo ficou sério. O outro tinha razão. Que tipo de mestre dos mestres agia assim, tão implacavelmente, tanto na ira, quanto no castigo? Sua mente confundia-se com os argumentos do outro. E agora, saber que sua amada sofria injustamente, aumentava-lhe a aflição que já sentia. Não era justo…

Não, não era.

- Queres ter uma rápida visão da tua amada? Ver como ela sofre?

- Podes fazer isso? Eu daria tudo para vê-la, para estar com ela, pelo menos uma vez mais… queria ter a hipótese de poder explicar-lhe o que aconteceu. É tão frustrante estar aqui, impedido de sair, de poder explicar, de contactar…

- Há um pequeno preço, é claro. Mas nada que não possas pagar. Será um preço, digamos, simbólico.

O proponente sorriu e, antes que o outro tivesse tempo, puxou-o para uma lâmina de água onde, ao invés de ver o reflexo dos dois, via-se a imagem de uma mulher, muito triste, deitada num quarto. Ela tinha os cabelos ruivos desalinhados e sua pálida pele parecia doentia. Seus lábios já não tinham cor e seus olhos mostravam olheiras profundas e inchaço, como se ela tivesse chorado muito.

O anjo sentiu uma coisa que nunca havia sentido antes. Uma dor tão grande, que cortou-lhe a alma. Pela primeira vez, em sua existência milenar, ele sentiu uma angústia tão grande, que sua alma inundou-se daquilo que poderiam ser lágrimas. Sua alma chorava. Ver sua amada assim tão transfigurada pela dor, era-lhe insuportável. Ele sentiu um desespero tão grande que até mesmo o ar à sua volta ficou húmido e pesado. 

Uma revolta, contra o todo-poderoso cresceu dentro dele com tanta força, que ele deu um berro de dor e jogou-se ao chão, de joelhos, a chorar e a bater em seu peito etéreo. Seu desespero era tão grande que até o demónio que estava ao seu lado, sentiu-se comovido. Teria deixado escapar uma lágrima, se tivesse olhos e alma, mas ele mesmo já não possuía nada naquele sentido.

- Quanta dor! Quanta dor! Minha amada, quanta dor! O que eu não daria para livrar-te desta imensa dor…

A visão de um anjo, uma criatura tão nobre, em uma situação tão desesperante, era tão amarga, que tudo à sua volta, naquele lugar, entristeceu.

Do outro lado, o todo-poderoso sentiu uma dor nascer na profundeza de sua alma divina. Ele sabia de onde vinha toda aquela dor, pois todas as emoções dos anjos eram também as suas. Sua atenção voltou-se, então, ao limbo.

O demónio olhou o anjo caído, de joelhos e viu que teria uma oportunidade única de obter o que queria. Mas esperou que o outro falasse, primeiro.

- Qual é o preço? Eu pago o que for preciso, para livrá-la daquele sofrimento.

- O preço, meu anjinho...

O demónio aproximou-se e sorriu. Depois, disse, baixinho:

- O preço, meu anjinho, são as tuas asas...



domingo, 25 de janeiro de 2015

Demon (Part 3 of 3)



I spent the day thinking about the possible meaning of that little message. My concentration got fuzzy from time to time and I could only have some flashes of memory about the previous night. Fortunately the daily tasks at work were enough to keep me busy without stopping me, however, of thinking from time to time on what could have happened.

I tried to organize, methodically, the little information that was hidden in my mind, as if trying to confuse me even more. I decided I had to make a careful trip in my memory and take some notes, so to organize the facts, but I ended up forgetting that I had taken that decision.

On my way home, I stopped at the take-away at the corner and bought myself some food. I did not want to cook. Moreover, I so much needed a good rest.

I looked at myself in the mirror and noticed the dark circles that surrounded my eyes. They seemed deeper than usual. Perhaps the exhaustion had caused me more than a simple change in my physical appearance. I thought it would be best to lie down and try to get some sleep, hoping maybe a good sleep would improve my memory and my appearance.

I closed my eyes and tried to relax. I had to try to remember how it all started. I fell asleep before even thinking of anything else.

***

I took the wrong direction, when turning around the corner in one of the corridors of the University campus. It was a mistake I used to make, so I decided to continue through the back corridors to get somewhere anyhow. My sense of direction had always been very poor. Apparently, my ability to choose lovers, too. I met many people: students, professors and general staff personnel, who did not pay much attention to me, because they were too busy with their own problems. I passed over the library and the bar, then took the direction of the restrooms, climbing a flight of few steps and going through a dark iron gate. I could only find the changing rooms with showers and went back to the hall, to try and find the loo. I went back down the same stairs and took a left and then a right exit. There was an entrance to a clearing, leading to the shady woods.

An old woman walked to me. She had dishevelled hair and walked half bent. She offered me something that I refused, but she laughed and told me that I should accept it. Then she gave me a small gift, placing it carefully in the palm of my hand.  I saw that there were some roots of very old trees, hanging down from the dark walls behind her. The sunlight came through a slot on the left, falling on her head, making her hair look whiter and her teeth darker. A worn and almost colourless woollen shawl, was wrapped around her shoulders. 

The woman smiled. She was not scary, in spite of that strange aspect she had. When she explained the reason of wanting to give me the little artefact, I felt a kind of relief.

- It is for protection. So you will never need to fear no evil. it will be useful... soon...

I thanked the woman, put the small gift in my coat pocket and left. She kept on watching me until I disappeared through one of the passageways that led me back to the classrooms. I completely forgot I needed to go to the bathroom. An insistent bell ringing in the distance caught my attention when I walked over a less sunny area in the complex of buildings of the university. 

I looked back to see if I was safe. Something in my subconscious was telling me to be careful. I put my hand in my pocket and realized I had not examined the small object with the attention I should.

The bell rang again, that time closer to me. When I turned around, I bumped into a person coming out of one of the rooms. If it was not for the arms that held me firmly, I would have crashed against his body with some violence, but the man had a quick reaction. Those green eyes then were fixed on mine and I felt a kind of unsettling dizziness. I was face to face with a man whose eyes disturbed me more than I expected. He grinned. The bell rang again. He released my arms and I felt I completely lost my balance and started to fall...

The sensation of falling, for a time longer than the expected caused me a strange discomfort in the stomach. I thought I was fainting. I tried to prevent myself from falling, using my hands, but could not. I felt my vision darken suddenly.

***

I screamed. I jumped out of the bed, in a state of complete distress, trying to protect me from the inevitable. I cursed the darkness when I realized what was happening.

- Damn! It was only a dream!

My body was sweaty and sore. The palm of my hand was sore too, probably because of the pressure of my own nails. My head was still uneasy. The alarm went on and on. I recognized that as the sound of the damn bell in my dream...

Then, as if a door had been opened, I remembered...

***

When we got to the hotel, my sobriety was still fully active. We stayed in silence almost all the time, roughly looking at each other in the elevator that looked too big for the two of us. I remember we called the reception and ordered a bottle of wine, as soon as we got in the room.

The phone rang then, and I found that sound rather unusual, but interesting at the same time. He told me it was his favourite song and sang some verses of it.


Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь

  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть”…


(Yesli khochesh' idti, idi; yesli khochesh' zabyt', zabud'

Tol'ko znay, chto v kontse puti nikogda uzhe ne vernut...')*

He switched it off without answering it and turned all his attention to me. One thing that caused me a good impression about him, from the beginning, was that when he paid his attention, he definitely did it fully and completely. His green eyes scrutinize me from head to toe, before he touched me, making me feel as if he was undressing both my body and my soul... and it was a very strange feeling, I must confess, though not exactly uncomfortable. No one had ever been as considerate to me as he was at that moment in time.

The wine, which was delivered by the room service, was delicately dry and aromatically palatable. It quickly rose to my head, because I had an empty stomach. I could not even remember the last time I had had some meal that day. I've always had been very aware of how to control the level of alcohol in my blood, so I felt I should go easy on the booze. He noticed it and slowed down too, politely. Being drunk would definitely spoil the purpose of that meeting and we knew it.

***

My phone rang, making my concentration dissipate instantly and immediately. I got carried away by those memories and forgot completely I had a meeting at work very early in the morning.  I was already late and people got worried because I had never been late for a meeting before. I had to run. At least, things were getting clearer, though not completely... yet... in my memory...

***

The meeting went on smoothly, in spite of my delay, for which I had to apologize a million times, feeling guilty for my lack of responsibility to the commitments assumed. I must have shown a very sickly face, because it was soon pushed aside and the meeting continued to its end without further mishaps.

Early in the afternoon, when I left for lunch and needed my wallet, I came again across the little message, written with the strange and familiar handwriting, that had me intrigued so much. I had to unveil that madness, for once and for all, before I lost my already unsettled mind.

Blessed internet that offers us possibilities to research everything and to translate what we do not know, even being in a completely unknown idiom. I found a language tool and tried to reproduce the Cyrillic characters the best I could, with the ones that closer resembled those written in the little message laying on my desk. I changed it to another research tool and found out, after a few attempts, that it was part of a song, which had been very successful a few years before. Then I translated the short message, recognizing it, immediately. My curiosity sometimes goes to extremes.

The words danced in front of my eyes and then the pieces fell into their right places in my head.

"Если хочешь идти, иди; если забыть хочешь, забудь
  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть... "*

("If you want go, go; if you want to forget, forget
  But be aware that, at the end of the road, there is no turning back... ")

***

When he undressed me the other night, the lights in the hotel room were still on. I let him explore my body, with the same attention he had shown in the car, a few minutes before. He was an expert and I gave myself in, without fear, to his touch.

He was still wearing a white cotton tank top, quite tight to his athletic body, while we were in the preliminaries. I lifted the garment and started exploring his pale torso, which was not excessively toned, but it was beautiful nonetheless. He turned the main light off and left only one of the lamps lit by the bedside. In the dim light, I stripped him of the last piece of clothing and kissed him in the chest, neck and mouth. My hands caressed his back and I had the feeling of having touched something I did not expect.

I ran my fingers, very gently, on what seemed to me to be two scars. I felt his muscles tensed. I turned his body to the side so I could see better. He tried to stop me from exploring that, using some tricks, but I insisted, forcing him to turn around and he finally gave up.

There were two scars, maybe the size of a hand, one on each side of his back, just below the shoulder height. From each of them, very detailed wings were tattooed.

The seriousness with which I looked at them, in the poorly lit room, made him react immediately.

- I did not want you to panic when seeing them...

- Should I be afraid?

- No. Do not be. This is now part of my past only....  Do not ask anything else, please...

He turned out the light and held me, kissing me with a passion that seemed to border some despair. I let myself go for it, this time, completely.

Inside, I had the feeling that a fire ignited and burned all my body up, for all time, that very night... until I fell asleep in complete exhaustion.

I had the vague impression to have seen him leaving the room, still the middle of the night, but I was not really sure.

"Если хочешь идти, иди; если забыть хочешь, забудь...
  (If you want to go, go; if you want to forget, forget)... *

***

After remembering and understanding what had happened, I tried to contact him by telephone, for days, but without success. I always ended up in the message box, but I hung up without saying anything. I did not want to leave him messages. I wanted to talk to him; to hear his voice. Maybe he was trying to avoid me or needed some time and space. Maybe I had crossed the barrier of curiosity, when I insisted on seeing the scars on his back... I would never know...

In his absence, missing him and thinking a lot about him, many times a day, I heard that song over and over and over again, feeling extremely touched every time I heard those chords.

That young demon, with pale skin and light eyes, had led me to temptation and won not only my body but also my soul, which then began to burn with passion for him. I had not much that was mine, really... besides the soul that was corrupted by some deadly sins and uncontrolled weakness...

In essence, he was not really a demon: he was just a fallen angel, devoid of his wings, but not disallowed from flying. And I must confess that I missed him... I missed him a lot, to be honest...

***

He'd gone over a week since we had our last meeting. I had received no sign of him since then whatsoever. With a little sadness filling my heart, I decided to give up trying to re-contact him.

On Friday night I was reading in the bedroom, when the doorbell rang.

- Who can it be, this time of the night?

I got up almost automatically and without thinking and walked to the door. I looked through the peephole and saw that there was a man standing, with his bald head slightly lowered. I opened the door and came across my fallen angel standing in front of me.

- It was not easy to find this address...

I did not know whether to laugh or cry. I simply pulled him inside and closed the door. He hugged me, trying to hide the blush on his cheeks and a funny smile.

- Why this smile and this blush?

- I've missed you...

- Oh, have you?

He smiled again, awkwardly. I laughed at the way he looked and acted like a shy boy, perhaps by pretending, perhaps by charm, or even feeling really gauche. I pressed his body against mine, with extreme tenderness. I whispered my mind and heart:

- You have no idea how much I missed you too...

He held me tighter, then ran his hand on my neck and kissed me. His fingers played with the metallic texture hanging around my neck.

- What is this?

He was referring to the hanging pendant on a silver chain, which was not there the first time we were together. The strange little silver cross, which I had found on the bedside table, remarkably, was the same the old woman had given me in the dream and I had no idea how it ended up in my room.

I had a delicate and very fine silver chain, which had been given to me, as a child, by my mother and that I kept in a box, with great care, in a drawer. I decided to use it to match with the small talisman. I did not want to reveal the true meaning of wearing a Russian Orthodox cross, hanging around my neck, so I lied both by fear and to make sure I was in no danger, being with him. I felt I should protect myself, anyway, for good or for bad.

- I think it is beautiful. It is silver.

- Yes, it's beautiful...very beautiful...

He touched the little artefact and kissed me again. I breathed relieved, being sure, then, that my apprehension was totally unfounded.

- I missed  you so much. I think I fell in love with you.

- You think? But you should not fall in love so inadvertently with a complete stranger...

- Among what I should, what I want, what I feel and what I like, there is a distance of many thousand kilometres ...

- I thought a lot before coming after you. I tried to avoid it. I also fought my own demons and insecurities, but I realized that one cannot avoid the inevitable.

- Well... If it is inevitable...

In my mind, a song repeated, endlessly, the refrain that had confused my head for days and that seemed to make much sense at that moment.

No, I neither wanted to go nor did I ever want to forget... anything... again...

"Если хочешь идти, иди; если забыть хочешь, забудь
   Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть ...”

("If you want to go, go; if you want to forget, forget it;
 Just know that, at the end of the road, there is no turning back... ") *


***
* From:  Филипп Киркоров - Снег 
                (Phillip Kirkorov - Sneg)