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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Anjo Caído (Parte 2 de 2)


O anjo ficou muito sério, pois não esperava que uma proposta daquelas fosse possível de ser concebida, menos ainda de ser proferida em voz alta. O preço era mesmo muito alto, pensou. Ele sabia, todavia, que tinha que tomar uma decisão rápida.

- Minhas asas? Eu não posso…

- Podes, se quiseres. Afinal, para que elas servem aqui, neste limbo, neste lugar abandonado, onde estarás em castigo por muitos milênios?

O demónio era mestre na arte da persuasão e sabia usar, e muito bem, as suas artimanhas para convencer o outro.

- Olha…

E virou-se, mostrando suas costas, onde duas cicatrizes, do tamanho de uma mão, cada uma em um lado, na altura dos ombros, marcavam os lugares onde antes haviam estado suas próprias asas.

O anjo sentiu-se perdido, completamente sem palavras, ao ver o que havia acontecido ao outro.

- Eu também fui um anjo e também tinha minhas próprias asas. Mas fui destituído delas pela ira do todo-poderoso. No entanto, eu sobrevivi…

- Eu pago o preço. Mas deixa-me ver a minha amada, pelo menos uma vez mais.

O demónio sorriu e estendeu a mão ao anjo...

- Chega disto!

Bem naquele momento, em que uma grande negociação fechava-se, entre os dois seres imortais, a voz do todo-poderoso, forte e dramática como um trovão, causava duas fortes emoções no limbo. Ao demónio, causou terror e medo. Ao anjo, sentimentos que pouco conhecia: ódio e rancor!

- Eu te preveni. Cuidado com o que desejas… e a ti, avisei-te para ficar longe daqui, mas nenhum dos dois importou-se. Agora vão ambos conhecer o peso da minha mão.

E o todo-poderoso baniu o demónio para todo o sempre, jogando-o nas profundezas de um inferno, do qual jamais sairia. Em seguida, dirigiu-se ao anjo.

- Tu escolheste teu destino. Agora vais poder ver a tua tão amada, como querias. O preço que ias pagar ao demónio pagas a mim, só que com altos juros. Agora sairás da minha presença, para todo o sempre... ou pelo tempo que conseguires existir…

E, ao arrancar-lhe as asas, lançou-o fora do limbo, destituindo-o de todos os seus poderes angelicais. Deu-lhe um corpo físico e uma vida tão imprevista quanto a dos homens... assim como uma maldição...

- Quanto mais conviveres entre os homens, mais vais esquecer a tua vida de anjo, até que, se tiveres sorte para viver o bastante, esquecerás completamente quem eras.

***

Na noite chuvosa, em meio ao fulgor momentâneo dos relâmpagos e ao repetido ribombar dos trovões, uma silhueta caminha por uma rua deserta do subúrbio, a procurar, em cada porta, o sinal certo. Cada clarão converte-o em mais detalhes. Suas costas estão a sangrar e o corpo está desnudo. Ele para em frente à uma porta e vê que é o lugar que procura. Sobe o pequeno lance de três degraus e bate na fria e dura madeira.

Uma mulher de idade avançada abre-lhe a porta e escandaliza-se ao ver o estado do homem, que parece um mendigo, encharcado de chuva e com um ar desesperado ou, talvez, enlouquecido. Ela não sabia distinguir qual daqueles dois estados podiam aplicar-se ao homem.

- Eu tenho que vê-la, por favor.

- Vá embora ou eu chamo a polícia.

- Por favor, minha senhora… eu preciso vê-la, nem que seja por um minuto. Custou-me tanto encontrar este lugar…

A mulher tentou fechar a porta, mas o homem apoiou-se na maçaneta e, perdendo o equilíbrio, caiu para dentro, aos pés dela. A mulher não podia deixar aquele homem nu, caído no tapete da entrada, a sangrar. Arrancou a toalha da mesa e estendeu sobre seu corpo. O homem resmungou o nome da filha, pedindo para vê-la.

- De onde tu conheces a minha filha? Oh, cubra-se, pelo amor de Deus!

- Eu sei que ela está adoentada por minha causa. Por favor, senhora. Preciso vê-la.

- Chegaste tarde demais. Ela está nas últimas. Já não há o que se possa fazer.

- Oh! Não pode ser possível. Não pode ser possível!

O homem irrompeu em um pranto inconsolável e a mulher comoveu-se, percebendo que o que ele dizia e o que sentia eram verdadeiros. Convidou-o para ir ao quarto, onde a filha jazia. Ao ver sua amada, quase sem vida, deitada na cama, o homem chorou mais ainda. Aproximou-se do corpo e tocou-lhe a face. Ela abriu os olhos, com muita dificuldade e olhou para o jovem. Ele tinha um aspeto lastimável, mas pareceu sorrir. Ela tentou levantar a mão e tocar-lhe. Ele segurou-lhe a frágil e pálida mão, levou-a aos lábios e beijou, suavemente. Dentro de si, um fogo pareceu arder com o calor de mil fornalhas acesas.

- Minha querida. Que medo eu tive de não chegar a tempo. Perdão, meu grande amor…

A moça tentou sorrir, mas era um esforço muito grande. Tentou falar, mas apenas conseguiu balbuciar uma única palavra, num sussurro quase inaudível.

- Anjo…

Ela fechou os olhos muito devagar. Sua expressão deixou de transparecer tristeza e transmutou-se em algo mais sereno, como se uma inesperada paz tomasse conta de si, naquele momento. Ele aproximou-se e tocou seus lábios, muito suavemente, num beijo frágil como o toque das asas de uma borboleta. Ela respondeu, debilmente, ao contacto da boca daquele jovem, martirizado por uma dor quase insuportável. Suas últimas forças esvaíram-se, finalmente, naquele único beijo, trocado entre os amantes impossíveis. Seu derradeiro suspiro foi na boca de seu amado.

Ele deitou a cabeça no colo dela e chorou copiosamente, como uma criança que experimenta a angústia da perda, pela primeira vez... o que não estava longe da verdade.

 A mãe olhou o jovem enrolado na toalha de mesa, com as costas ainda a sangrar, abraçado ao corpo já sem vida da filha e perguntou-lhe o que aquilo significava.

- É uma longa história...

- Preciso tratar do funeral, mas antes, deixa-me cuidar destes ferimentos... Enquanto isso, tu contas o que te aconteceu.

E ele contou-lhe sua inacreditável saga. A mulher ouviu, com atenção, cada detalhe, como se estivesse ouvindo o relato de um sonho. Não sabia se acreditava naquela loucura ou se considerava a si mesma e à filha, duas afortunadas.

- Admito que seja uma bela história. Um tanto delusória e triste, mas bela, mesmo assim.

O homem sorriu. Era um sorriso consternado, quase um pedido de socorro. Sabia que acreditar no que havia falado pareceria loucura, mas resolveu que não tinha que insistir em dar mais detalhes. Por ora, bastava aquela verdade, apesar de parecer inconcebível, à primeira vista. Terminou, então, o relato com algumas perguntas perturbadoras.

- É isso que chamam de amor, os homens? É sempre assim tão angustiante este sentimento entre as pessoas? Nunca conheci uma aflição tão grande como esta. É por isso que alguns evitam-no de todas as maneiras? Nunca pensei que fosse possível sentir uma dor tão lancinante quanto a que sinto agora. É preferível morrer que viver com isto a maltratar tanto a alma. É mesmo uma sensação horrível…

A mulher olhou o jovem, sentindo uma tristeza pungente a dilacerar-lhe o espírito, sem saber, com certeza, o que responder-lhe. Disse-lhe, entretanto, a única coisa que conseguiu, naquele momento e que, para si, era a mais pura verdade.

- Nem sempre é assim, meu rapaz... Nem sempre... Às vezes, um único contacto, um breve momento já valem a pena. O que importa é a intensidade do sentimento. O amor consegue curar até mesmo as mais profundas dores e transformar as mais horríveis cicatrizes em memórias, somente. Lembre-se disso, no futuro, pois é um poder grandioso demais, para ser menosprezado ou banalizado.

***

Alguns longos anos se passaram. O rapaz, que inicialmente evitava o contato humano, expondo-se muito pouco e usando subterfúgios para não mostrar suas estranhas estigmas, amadureceu e aprendeu a lidar com a dor e com as limitações da sua condição e aparência física. Não queria ser considerado um masoquista, adepto de estranhos jogos de autoflagelo e mutilação, ou mesmo um louco.

Esperava que na hora certa, com a pessoa certa, ele, talvez pudesse mostrar evidências do que havia passado. Sua trágica história estava escrita nas marcas que o corpo iria carregar, enquanto vivesse. Mais profundas que as do corpo, porém, eram suas cicatrizes na alma: as marcas indeléveis do seu passado, em outra condição de "vida". Eram também suas provas de alguma vez, quase já esquecida, haver feito parte da legião do amor infinito do todo-poderoso.

Sabia que se o tempo passasse muito depressa, até mesmo aquelas memórias acabariam por dissipar-se por completo... como uma maldição... ou uma dádiva...

Infelizmente o tempo era, também, servo do todo-poderoso e apressou-se a passar mais rápido que o homem conseguiu reter as memórias... conforme fora previsto pelo mestre de todos os mestres...

***

Um homem de pele muito clara e cabeça calva viu a pessoa que saía da estação, com um ar sombrio, como se carregasse um fardo maior que merecesse e viu que era a perfeita circunstância para entrar em contato. Fingiu distração e deixou-se esbarrar, fazendo com que os pacotes que carregava nas sacolas às suas mãos, caíssem todos sobre o passeio...

***

- Eu juro que vi, no corpo dele, cicatrizes parecidas com aquelas nas minhas costas.

- Deves ter sonhado, ou era efeito do álcool. Sabes que não pode ser, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela tinha razão. Eu devo ter-me enganado. Não podia ser...

Sacudi a cabeça, como quem tenta desvencilhar-se de um mau pensamento e saí. Eu sabia que às vezes sonhava que podia voar como um anjo e que aquilo era uma evidência a comprovar que meus sonhos poderiam mais que isso, apenas. Ou talvez não...

***

Agora, olhando, assim, seu corpo tão pálido e tão plácido, deitado na cama, ao meu lado, tento não fazer movimentos bruscos, para não acordá-lo. Esta sua tranquilidade faz-me crer no poder de um amor, que é capaz de vencer todas as dores e que parece emanar dele, mesmo quando dorme como um humano. 

Observo as cicatrizes, pouco disfarçadas pelas tatuagens muito bem feitas e sinto que a fortuna fê-lo aproximar-se de mim, tornando-me um ser tão especial quanto ele. Tenho ímpeto de tocar-lhe as costas, de leve, tentando apaziguar-lhe toda a dor que alguma vez sentiu e todas as provações pelas quais passou.

Nunca tive coragem de perguntar-lhe como conseguira fugir do inferno em que foi jogado e, para falar a verdade, não sei se, realmente, me interessa. Meu anjo caído dorme em paz. Eu vivo em paz, na paz dele... e é o que me basta...

Beijo suas cicatrizes, como quem deseja a cura de todos os males do mundo e sinto que sua musculatura reage ao calor morno dos meus lábios. Ele geme, baixinho e vira-se um pouco. Seus olhos verdes fixam-se nos meus e eu penso que o amor é uma conexão entre o divino e o humano e que quanto mais ele cresce e intensifica, mais próximos do divino nos tornamos. 

Ele parece ler meus pensamentos e puxa-me para si, abraçando-me com seu corpo cálido. Neste momento, sinto que eu poderia voar, mesmo sem as asas que o todo-poderoso retirou-me, quando lançou-me ao limbo, por tentar desafiar suas ordens e fazer pacto com seu anjo desobediente... 

Ele passa as pontas dos dedos nas minhas cicatrizes e diz-me que tudo vai ficar bem... e eu acredito nele, afinal. Ele fez-me recuperar a memória perdida dos tempos em que ambos vivíamos no paraíso e que éramos parte do amor do amor...

Vivi tanto tempo entre os homens, que cheguei a esquecer-me completamente quem eu era, até que ele esbarrou em mim, talvez de propósito, talvez por acaso... e mudou, totalmente, minha vida...

Teria o divino reconsiderado e decidido nos dar uma segunda chance? Teria ele feito um pacto de recuperação de ambos, se aquele doce demónio conseguisse fazer-me ver, novamente, o lado positivo do amor?

Acho que nunca saberei a verdade...


sábado, 31 de janeiro de 2015

Anjo Caído (Parte 1 de 2)


- O quê?

- Sério! Juro que vi…

- Deve ter sido o efeito do álcool. Não é possível, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela deu uma risada alta, virou-se e saiu. Eu fiquei ali a olhar o vazio, sentindo-me completamente anormal. Coloquei-me no lugar dela. Se eu ouvisse uma conversa daquelas, também não acreditaria. Ela tinha razão. Quão caricata era aquela situação? Ou talvez, nem tanto… se não fosse, de uma certa maneira, bastante assustadora. 

Fiquei pensando se não seria mesmo loucura e se não havia sido impressão minha. Mas eu tinha certeza do que havia visto….

Tinha mesmo… ou será que não?

***

- Não, não e não!

- Santa intransigência!

- Respeitinho, senão eu acabo com a tua raça! Tu só me trazes vergonha! Já não sei mais o que faço contigo…

- Mas…

- Sem mas, nem meio mas! Eu já disse que não! Não quero mais falar nisso!

O todo-poderoso saiu, deixando o outro vermelho de vergonha e a sentir um pouco de irritação, pela demonstração de fúria e intransigência, ante a quebra de regra iminente…

Bem, já não era apenas iminente… mas enfim… 

Que mal poderia haver em abrir uma pequena brecha numa regra tão antiquada? Os tempos haviam mudado, o mundo havia evoluído e eles ainda viviam segundo preceitos criados há muitos milênios atrás, antes mesmo dos tempos dos tempos. Eles eram de uma casta superior. Por que não poderiam estar acima daquelas regras?

Arrependido de haver pedido permissão e sabendo que não poderia ir contra o todo-poderoso, ele resolveu que se queria ver sua grande paixão, teria que ser às escondidas, ou sofreria as consequências. 

Ele ponderou, mas achou que o risco valia a pena. Aquela pele tão pálida, aqueles olhos tão tristes, aquela boca tão perfeita, mexiam muito com ele, de uma forma que não conseguia explicar. Era um sentimento diferente daquele que tinha pelo todo-poderoso e pelos seus outros semelhantes.

Ele já tinha ouvido histórias horríveis sobre a ira e os castigos do mestre dos mestres. Também sobre as consequências da desobediência e do que poderia acontecer-lhe se fosse descoberto. O onipresente era irascível, às vezes, e ele estava por um fio.

Mas aquela boca… aqueles olhos… aquela voz...

Ele experimentava uma mistura de dor e uma sensação cálida e confortável, que ardia-lhe por dentro. Aquilo causava-lhe alguma confusão, mas ele achava que não podia ser mau, se trazia-lhe aquele aconchego inexplicável na alma.

***

Ela estava deitada, com os olhos fechados. Ele aproximou-se e observou-a, com cuidado. Sabia que ela não o veria, não sentiria sua presença, nem o seu toque. Suas mãos não a podiam tocar. Seus lábios não saberiam o sabor dos dela. Ele era diáfano como um sonho. 

Ela moveu-se. Seus cabelos ruivos, caídos por sobre a almofada, pareciam um por de sol a incendiar o céu de verão... e a sua alma de anjo. Ele queria poder tocá-los, senti-los, acariciá-los. Mas não podia. Ele não tinha pele, não tinha forma, não tinha corpo. Era mais suave que a brisa e, mesmo assim, não conseguia mover um fio dos cabelos dela. Aproximou-se de sua face. 

Tentou tocá-la, mas passou por ela como um pensamento. Soprou sobre ela. Nada.

Queria tanto ser diferente. Queria ter corpo, mãos, dedos, lábios…

Ela parecia um anjo, de tão linda. 

Bobagem. Os anjos não tem formas assim tão… tão… tão… Não havia palavra que pudesse descrever aquela beleza. 

Ele desejou, com todas as suas forças, poder fazê-la sentir sua presença.

- Tu és tão linda!

Um sussurro. Não mais que um sussurro, no ouvido dela.

Ela sorriu. Coincidência. Infeliz coincidência, que mexe com a alma dele. Como pode-se ser tão feliz e tão triste, ao mesmo tempo. Que sentimento estranho é esse?

Ele desejou ter um corpo. Queria tanto deixar de ser, somente, uma ideia, uma alma…

Ela sorriu. Será que o ouviu?

Ele conhecia a única forma de estar com ela. Entraria no seu sonho, com extremo cuidado. Aquela era a única forma de fazer-se sentir. O sonho sempre fora tão etéreo e volátil quanto ele.

Ela estava sentada à beira de uma fonte de água a olhar sua própria imagem refletida. Parecia um tanto triste. Ele aproximou-se por trás e sua imagem apareceu ao lado da dela. Ela assustou-se.

- Quem és tu?

- Não tenhas medo. Não fujas. Eu não tenho nome.

- Assustaste-me.

- Desculpe. Não foi minha intenção. Só queria ver-te.

Ela riu. Mesmo assustada, tinha que reconhecer que ele era um homem muito atraente.

- Ver-me?

- Venho cá todas as noites só para ver-te. Passo os dias só a pensar em ti...

- És louco. Não me conheces, nem eu a ti. Como podes dizer isso?

- Só aqui posso falar contigo... Não tenho permissão para contatar-te, nem revelar-me. Mas não sei viver sem vir e ver-te. Tu me fazes tão bem...

- Permissão? De quem?

- Do todo-poderoso. Os anjos não podem entrar em contato com o mundo dos homens. Mas descobri que posso ver-te e falar contigo, nos sonhos.

- Estás a assustar-me...

- Não, por favor. Não tenhas medo. Eu jamais te faria algum mal. Melhor eu ir, então.

Ela mirou-o com aqueles olhos tristes, que tanto o comoveram. Ele sentiu que seria capaz de abdicar de tudo, só para poder tocá-la uma vez, que fosse, mas se o fizesse poderia perdê-la para sempre. Teve medo do todo poderoso. Não podia levantar mais suspeitas.

- Tenho que ir. Posso voltar outra noite?

- Podes. Deves. Prometo que não vou assustar-me na próxima vez.

Ele despediu-se com um aceno. Seus olhos fixaram-se nos dela e sentiu que seria capaz de chorar, se tivesse como, mas anjos não tem este privilégio. Estes tipos de reações, sensações e sentimentos são exclusivos dos corpos dos homens, não de seres como ele, sem corpo, sem pele, sem coração, sem cérebro...

Ele invejou os humanos. Mal sabia o que o esperava.


***

- Ignóbil! Desobediente! Não vês o risco e o mal a que a expões? Eu te avisei.

- Mas, senhor... não fiz por mal. Foi fraqueza minha, reconheço, mas não foi por mal.

- Eu te avisei. Serás castigado. Jamais voltarás a aproximar-te dela.

- Mas, senhor, foi somente em sonhos e não mais que umas poucas vezes…

- Além de desobediente, és mentiroso. Ou achas que eu não tenho domínio sobre os anjos que eu tenho? Umas poucas vezes, uma… er… ova…!!!

E o grande mestre dos mestres engoliu o imprecativo e lançou o anjo no limbo, onde não poderia chegar aos humanos, nem em sonhos, com a proibição de voltar a acontecer. 

Uma grande tristeza assolou o espírito de ambos, pois nem um nem o outro sentia-se confortável com a situação.

***

- Eu posso ajudar-te, se quiseres.

- E quem és tu? Como é que chegaste cá?

- Tu sabes quem e o que eu sou… eu tenho meus próprios meios… e sou o único que posso ajudar-te, se quiseres.

- Eu não posso associar-me a ti, de jeito nenhum. Tens que ir-te daqui.

- Eu, se fosse tu, pensava bem a respeito. Sei de uma pessoa que chora dia e noite, desde que desapareceste. Ela não sabe o que te aconteceu. Pensa que foi abandonada. Achas isso justo?

- Acho estranho que fales de justiça… logo tu…

- Não te enganes. O todo-poderoso é implacável na ira e no castigo. Achas que isso é justiça, afinal? Queres dizer que concordas com o castigo que ele impingiu a ti?

O anjo ficou sério. O outro tinha razão. Que tipo de mestre dos mestres agia assim, tão implacavelmente, tanto na ira, quanto no castigo? Sua mente confundia-se com os argumentos do outro. E agora, saber que sua amada sofria injustamente, aumentava-lhe a aflição que já sentia. Não era justo…

Não, não era.

- Queres ter uma rápida visão da tua amada? Ver como ela sofre?

- Podes fazer isso? Eu daria tudo para vê-la, para estar com ela, pelo menos uma vez mais… queria ter a hipótese de poder explicar-lhe o que aconteceu. É tão frustrante estar aqui, impedido de sair, de poder explicar, de contactar…

- Há um pequeno preço, é claro. Mas nada que não possas pagar. Será um preço, digamos, simbólico.

O proponente sorriu e, antes que o outro tivesse tempo, puxou-o para uma lâmina de água onde, ao invés de ver o reflexo dos dois, via-se a imagem de uma mulher, muito triste, deitada num quarto. Ela tinha os cabelos ruivos desalinhados e sua pálida pele parecia doentia. Seus lábios já não tinham cor e seus olhos mostravam olheiras profundas e inchaço, como se ela tivesse chorado muito.

O anjo sentiu uma coisa que nunca havia sentido antes. Uma dor tão grande, que cortou-lhe a alma. Pela primeira vez, em sua existência milenar, ele sentiu uma angústia tão grande, que sua alma inundou-se daquilo que poderiam ser lágrimas. Sua alma chorava. Ver sua amada assim tão transfigurada pela dor, era-lhe insuportável. Ele sentiu um desespero tão grande que até mesmo o ar à sua volta ficou húmido e pesado. 

Uma revolta, contra o todo-poderoso cresceu dentro dele com tanta força, que ele deu um berro de dor e jogou-se ao chão, de joelhos, a chorar e a bater em seu peito etéreo. Seu desespero era tão grande que até o demónio que estava ao seu lado, sentiu-se comovido. Teria deixado escapar uma lágrima, se tivesse olhos e alma, mas ele mesmo já não possuía nada naquele sentido.

- Quanta dor! Quanta dor! Minha amada, quanta dor! O que eu não daria para livrar-te desta imensa dor…

A visão de um anjo, uma criatura tão nobre, em uma situação tão desesperante, era tão amarga, que tudo à sua volta, naquele lugar, entristeceu.

Do outro lado, o todo-poderoso sentiu uma dor nascer na profundeza de sua alma divina. Ele sabia de onde vinha toda aquela dor, pois todas as emoções dos anjos eram também as suas. Sua atenção voltou-se, então, ao limbo.

O demónio olhou o anjo caído, de joelhos e viu que teria uma oportunidade única de obter o que queria. Mas esperou que o outro falasse, primeiro.

- Qual é o preço? Eu pago o que for preciso, para livrá-la daquele sofrimento.

- O preço, meu anjinho...

O demónio aproximou-se e sorriu. Depois, disse, baixinho:

- O preço, meu anjinho, são as tuas asas...