Phil
Quando
as duas mulheres entraram no pub, após um longo dia no consultório, pretendiam
simplesmente relaxar um pouco, tomar uma bebida qualquer e fugir do frio lá
fora. O bar estava bastante movimentado àquela hora, apesar de já ser tarde
para o happy hour.
Na
parede oposta à entrada havia um pequeno palco. O clima era agradável e a
música, acústica e de muito boa qualidade. O volume do som era audível, mas
discreto o suficiente para manter o público confortável, sem perturbar a
conversa. Os músicos poderiam passar quase despercebidos, se tocassem com
aquela intenção.
Iluminado
apenas por dois pequenos holofotes, direcionados para sua cabeça e mãos, o
músico que lá se apresentava no momento era realmente bom, tanto a cantar,
quanto a acompanhar-se no violoncelo. Sua voz era harmoniosa e sua performance,
estava sendo bastante apreciada pelo público frequentador do local, que
mantinha um silêncio quase absoluto, a ouvi-lo atentamente e com extremo
deleite. Aquele homem não devia ser apenas um músico de bar.
Os olhos
das duas pousaram, curiosos e atónitos, sobre o jovem homem, vestido com uma
impecável camisa branca, com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos
cotovelos e modernas calças jeans de marca, quando ele levantou a cabeça
e teve o rosto completamente iluminado.
- Aquele
não é o Gabriel?
- Eu ia
perguntar o mesmo. Parece ser ele, sim. Não sabia que ele podia cantar e tocar
violoncelo.
- Nem
eu. Cada dia, uma surpresa, sim senhora... Vamos lá falar com ele?
- Vamos
esperar fazer um intervalo e, então, falamos com ele. O homem é mesmo bom!
A outra
olhou-a, com um ar entre o surpreso e o maroto e deu uma risadinha. Ambas
aproximaram-se do balcão para pedir um bebida e esperar, enquanto apreciavam o
show e mantinham interesse no clima dentro do recinto.
Algumas
canções eximiamente bem tocadas após, o músico anunciou que iria parar por uns
instantes, levantou-se e dirigiu-se ao bar, perto do palco, na ponta oposta
onde as mulheres estavam a observá-lo. Elas abriram caminho entre as pessoas e
aproximaram-se. Ele estava de costas. A terapeuta tocou-lhe no ombro e falou:
- Nossa,
Gabriel. Que performance linda! Não sabíamos que tocavas assim tão bem. Nem
sabíamos que eras um músico, menos ainda que fosses tão bom. Meus parabéns!
O rapaz
virou-se. Seus olhos pousaram sobre as duas mulheres e ele sorriu, de uma
maneira bastante cordial, mas um tanto estranha.
-
Obrigado pelo elogio. Aprecio mesmo a vossa opinião e não sei se mereço tudo
isso, mas devem estar a confundir-me com outra pessoa. O meu nome é Filipe, mas
artisticamente assino como Phil, que é mais fácil e conveniente.
As duas
mulheres entreolharam-se, estupefatas e incrédulas. Tinham certeza que estavam
diante do mesmo homem que conheceram há dias e que já havia-lhes causado uma
impressão bastante incomum, por ser um raro caso de estudo psicológico.
Ou será
que estavam, assim, tão enganadas? Como aquilo podia ser possível? Quem diabos
era aquele homem, afinal?
***
A
terapeuta ficou às voltas com uma pesquisa por longas horas, noite adentro. Sua
cabeça andava aos turbilhões. Vários filmes haviam passado em sua mente, enquanto
estudava caso após caso, tentando compreender se estava diante de uma
personalidade fragmentada, ou se estava mesmo errada em relação ao homem que
tocava, tão perfeitamente, no bar, horas antes. A coisa ficava mais complicada
à medida que avançava no que pensava ser o conhecimento de seu paciente, na
terapia.
Se Phil
e Gabriel fossem o mesmo homem, ela estava diante de um processo muito mais
assustador e emaranhado que ela poderia imaginar. Julgava que casos de dupla
personalidade eram bastante difíceis de tratar, mas aquele estava começando a
ficar assustadoramente denso. E, ainda, havia Lucius a considerar na equação,
uma personalidade muito mais intimidante e difícil de conter, que podia,
facilmente, dominar as outras, se quisesse... ou pudesse.
Como
psicóloga, ela conhecia histórias e relatos científicos, mas, pessoalmente, nunca
havia topado com pacientes sofrendo de múltiplas personalidades. Aquele caso era
bem mais profundo que isso. Se Gabriel era, por assim dizer, o dono do corpo,
como podia ter deixado os outros aparecerem assim?
Ela lembrou
que Lucius falara em exteriorização... Ele mostrara saber bem do que falava...
Não vendo
nenhuma saída, decidiu que deveria que entrar em contacto com um velho amigo,
um professor da faculdade, para trocar informações e tentar perceber melhor
como agir, em um caso daqueles. Talvez ele pudesse, com sua experiência,
indicar, ou mesmo discutir uma forma de ajudar, antes que...
- Oh,
meu Deus! A batalha... Que raios de batalha poderia ser?
***
-
Doutora, é a terceira sessão que Gabriel falta. Não consegui contactá-lo pelo
telefone. Está desligado.
- Vamos
ao pub, hoje, ver se encontramos Phil. Quem sabe ele esteja lá... Começo a
ficar muito mais preocupada, agora.
- OK.
Vamos ao pub.
O dia
arrastou-se, na sua rotina e quando, finalmente, acabou-se, a secretária entrou
no consultório, já toda pronta para sair. A psicóloga ainda tomava alguns
apontamentos da última sessão, mas levantou-se de pronto e, com uma expressão
que não escondia a ansiedade, tomou a bolsa. Deu um longo suspiro.
- Temos
que descobrir o que está havendo. Tenho medo do que possa vir por aí...
Quando
chegaram ao pub, olharam imediatamente para o pequeno palco, mas o músico que
lá estava não era quem esperavam. Ao perguntar por Phil, o barman informou-lhes que só devia aparecer dali há dois dias. Ele
havia deixado um número de telefone, mas parecia estar desligado, portanto não
tinham como contactá-lo.
As duas
mulheres resolveram que deveriam esperar até dali há dois dias e saíram do bar,
logo em seguida. Talvez tivessem mais sorte em um par de dias...
Ao cruzar a
rua, no fim do quarteirão, esbarraram num jovem que vinha de cabeça baixa a
caminhar, meio sem destino. Seus cabelos estavam desalinhados, sua barba por
fazer há algum tempo e suas roupas bastante sujas. Era, com certeza, um morador
de rua. Pelo jeito que vinha a caminhar, parecia estar drogado. A terapeuta
pediu desculpas e atravessou a rua, apressada, acompanhada da secretária.
Nenhuma das duas olhou para trás, logo esquecendo o incidente.
O homem,
logo que alcançou a calçada, voltou-se e ficou a acompanhar, com o olhar, as
duas mulheres a caminhar do outro lado da rua, apressadas, na direção oposta.
Esperou um pouco, até que elas virassem na esquina e voltou a cruzar a faixa de
pedestres, apressando o passo, para alcançá-las.
Ao chegar à
esquina, onde as mulheres viraram, o homem viu que uma delas já estava ao
volante de um carro, enquanto a outra entrava pelo outro lado e, antes mesmo
que ele chegasse mais perto, arrancaram dali.
Ele
seguiu-as com o olhar, pois sabia que não ia conseguir chegar mais perto que já
havia... não daquela vez, pelo menos. Mas oportunidades não iriam faltar...
***
Dois dias
depois, durante o intervalo do happy
hour, no pub do outro lado da rua, a psicóloga conversava com o músico da
noite e convenceu-o, depois de muita conversa, a ir vê-la no consultório, mesmo
que por uma única vez, conforme ela prometeu. Sabia que precisava de ajuda e,
talvez, Phil pudesse apontar-lhe uma saída.
Quando o
jovem entrou, vestido impecavelmente, como ela o conheceu, na outra noite, ele
abriu-lhe um sorriso imenso e estendeu-lhe a mão. A mulher tomou-lhe a mão,
educadamente, mas sentiu mais que uma simples simpatia pelo personagem que
estava de pé à sua frente.
- Bem
vindo, Phil. Fale-me um pouco de si, por favor. Acredito que haja muito a
dizer.
Ele sorriu.
A conversa começou muito amena, mas depois de alguns pontos, quase sem
importância, ele falou:
- Bom,
como sabes, meu nome é Phil. Em dias normais, sou um músico reconhecido, mas
este é apenas um disfarce.
A mulher
levantou a sobrancelha, em estado de alerta. Sabia que havia algo mais, que ele
não havia contado.
- Sei
que esconder minhas habilidades aumenta um certo mistério, mas também serve
para apanhar o inimigo desprevenido. Apesar da minha aparência calma e da minha
muito pouca experiência em lutar, acredito que serei um poderoso 'asset',
quando vier a fase de guerra fria. Pode não parecer, mas sou um exímio atleta.
Minha maior virtude é a resistência física e à dor. Eu tenho asas às minhas
costas, mas estas ainda estão em crescimento. No futuro terei asas enormes – ao
menos assim o espero... e poderei voar alto e longe. Até lá tenho que me
preparar bem, pois minhas habilidades serão de grande valia. Quando for
necessário, porém, saberei usar meus recursos com grande maestria.
Ele
chegou-se para frente, como quem está para revelar um grande segredo. A mulher
já estava bem mais que assustada.
- Tenha
cuidado, porém, com o Rael. Ele é muito perigoso.
- Quem é
Rael?
- Tu
talvez não saibas quem ele seja, mas podes ter certeza que ele sabe muito bem
quem tu és...
***
Está cá a segunda parte, que traz mais mistérios ao caldeirão de ideias. Está sendo um grande exercício escrever esta história!
ResponderEliminarEspero que os leitores gostem tanto de ler, quanto eu tenho gostado de escrever.
aguarda-se a terceira parte. Vai valer a pena esperar!
ResponderEliminarAgradeço a visita, Mesquita e também o interesse na história.
EliminarComeça a ser um desejo e uma necessidade a tua escrita para este modesto leitor. Consegues manter-me o interesse ao longo de toda a historia e a sensação de "quero mais"
ResponderEliminarObrigado, mesmo. Fico lisonjeado com o efeito que meu trabalho consegue passar. Virou um verdadeiro vício, expressar-me pela escrita...
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