- É um dragão.
- Já vi melhores, mas
não está mal.
- Eu sei… devo mandar retocar… quero mudar um pouco a figura original.
Beijou-me a tatuagem, suavemente,
como quem beija a cabeça de uma criança… ou de um animalzinho de estimação…
Olhou-me como se quisesse ler
minhas reações, diante daquela atitude quase infantil e riu-se. Aquele riso
veio tão espontaneamente que divertiu-me, fez-me rir, também, e deixou-me, no
peito, uma morna sensação de conforto e serenidade.
A imagem, do tamanho de um punho
fechado, representava um dragão e estava impressa no lado esquerdo da minha
cintura. Eu sabia que deveria reforçar as linhas e cores, pois depois de dez
anos, a imagem já não tinha o mesmo brilho inicial, mas tinha primeiro que
tomar algumas decisões em relação ao que queria.
Como se estivesse tentando ler meus
pensamentos, cantarolou o verso da antiga canção, sorrindo, a me provocar.
“Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem”…*
Eu ri.
- Criatura sem noção! E, ainda mais, com uma canção tão antiga…
- Mas que cabe bem neste momento…
Seus olhos pareciam duas estrelas,
que não conseguiam esconder o brilho evidente do desejo, que os lábios acabavam
de revelar. Talvez, na verdade, quisesse, apenas, brincar um pouco com minha libido
e minhas reações, provocar-me, ou sei-lá-o-quê…
Virei-me e abracei-lhe o corpo,
deitando minha cabeça em seu peito. Soltou um longo suspiro e brincou com meus
cabelos, passando o outro braço à minha volta.
Eu senti-me como uma criança em
seu morno regaço. Aquela manifestação de uma proteção quase onipotente era-me
convenientemente agradável. Fechei os olhos.
- Gosto da maciez dos teus cabelos.
- Gosto que me toques a cabeça.
- Dizem que é prova de grande confiança.
- Eu sei…
- Existe alguma coisa que não saibas?
- Muitas, mas não lembro de nenhuma, agora…
Dei uma gargalhada. Quem
provocava quem, agora?
***
- Tu acreditas em almas gémeas?
- Eu não acredito nem em almas. Acredito, sim, em afinidades, em
respeito aos limites e…
- Não sejas assim. Nós temos muitas afinidades, é verdade. Somos como
almas gémeas…
- Ah! Tá!
- Tu já não acreditas em nada que não seja real e solidamente palpável.
Perdeste o romantismo e a fantasia…
- Mas não perdi o tacto, pois não?
Sorriu. Olhou-me como se me
analisasse, antes de dizer o que pensava.
- Não. O tacto é uma das coisas que mais gosto em ti… e não só…
- Ai, não? Que mais tu gostas?
Não respondeu. Apenas riu, com
uma pontinha daquela malícia, que lhe caía tão bem, quando estávamos juntos,
daquele jeito, entre os lençóis desalinhados, na cama de casal.
Eu sempre gostei de camas
grandes. Quando era criança, nunca tive um quarto todo meu, tendo sempre que
dividir meu espaço e dormir em uma cama estreita, que sempre me pareceu diminuta,
apesar da minha pequena estatura e do corpo mirrado demais para a minha idade.
Talvez meu egoísmo e minha carência de espaço fossem maiores que o meu tamanho
físico, mas agora aquilo tudo havia ficado num passado muitíssimo distante.
Minhas lembranças de infância
nunca traziam saudades de tempos felizes. Era uma quase melancolia, quando meu
passado vinha à memória, mais para inquietar-me, que para fazer-me sorrir.
Não. Eu não fui infeliz, mas nunca
senti saudades daqueles tempos, em que eu era apenas uma criança, buscando ganhar
uma atenção, que eu nem sabia bem se merecia e sem sentir grandes demonstrações
de carinho, por parte de quem, supostamente, deveria mas dar, espontaneamente.
Cresci independente, tentando
esconder e controlar a arredia insegurança e a disfarçar a timidez, com uma boa
dose de arrogância e rebeldia, características da idade.
Meus pensamentos já iam muito
longe, quando sua mão tocou-me o rosto e senti-me como a voltar a assentar meus
pés à realidade.
- Onde estavas? Parecias tão distante.
Menti.
- Estava apenas a curtir este momento. É bom estar aqui, sem ter que
pensar em nada…
Não convencia nem a mim,
obviamente.
- Sei, sei… Sem pensar em nada…
Não consegui sorrir. Eu caía num incontrolável
poço de auto-comiseração e não gostava nada daquilo. Agarrei-me à corda lançada,
como quem agarra-se à única possibilidade de salvação.
- Ainda bem que cá estás.
- Por quê?
- Porque assim me dás segurança.
- Ah…
- Não brinques. É importante para mim.
- Ok. Então que seja.
Beijou-me os lábios, de leve. Eu
respondi, tentando controlar o desespero que tomava conta de mim naquele
momento, mas meu corpo inteiro delatou-me, com um tremor involuntário.
- Estás bem?
- Uh hum…
Aquela resposta bastava. Era,
entre nós, sinal que não era hora de falar mais nada.
Costumávamos respeitar nossos
silêncios, quando nossos corpos estavam presentes, mas nossas mentes não.
Conhecíamos nossos desejos e respeitávamos nossas necessidades de ficarmos
assim, sem dizer nada, a ouvir a música que vinha da sala, do computador ligado
num canal de rádio e que me atingia, em cheio, no meio do peito, como uma seta
envenenada por curare, que
paralisava-me os movimentos, mas deixava duas lágrimas salgadas e quentes a
brotar-me pelo canto do olho e descer-me pela face abaixo.
“Ando tão à flor da pele,
Que qualquer beijo de novela me faz chorar;”…
”Ando tão à flor
da pele,
Que meu desejo se confunde
Com a vontade de não ser;
Ando tão à flor da pele,
Que a minha pele tem o fogo do juízo final”…**
***
- Vou fazer uma
tatuagem.
- Vais? E o que
vai ser?
- Não vou dizer.
- Por que não?
- Quero que seja
uma surpresa.
- OK, então. Que
seja… sabes as consequências… e sabes que dói…
Riu.
- Quando?
- Logo… ainda
não sei direito…
Levantei o sobrolho, como quem desconfia ou condena
aquela meia explicação, mas percebi que não causei grande comoção.
Sorriu, apenas. Parecia uma criança que ganhava um
brinquedo novo. Aquela não devia ter sido uma decisão muito fácil. Uma tatuagem
é, quase sempre, para sempre. É mais duradoura que a maioria dos
relacionamentos. Embora muito em moda, sabe-se que pode ser uma decisão bem
dolorosa e, dependendo do caso, pode não compensar o “sacrifício”.
Talvez a minha aceitação, assim, tão naturalmente, tenha
sido um alívio, afinal. Eu não tinha porque criticar ou condenar. Eu tinha a
minha e sabia o quanto doía, mas, também, o quanto era importante para mim
tê-la gravada na pele, indelevelmente, para, no meu caso, marcar um evento. Cada
um tem seus próprios motivos, afinal.
***
- Vou sair. Não
sei a que horas volto.
- Como assim?
Não sabes?
- Não sei,
simplesmente… Posso demorar… bastante…
Não esperou que eu dissesse mais nada.
Saiu, como quem ia fazer algo especial ou como quem ia
encontrar com alguém especial, de tão feliz que estava.
Fiquei a olhar, enquanto se afastava. Um aperto no peito
plantou uma semente de dúvida. Uma sombra passou-se em meu discernimento. Já
não pensava claramente…
***
** Flor da Pele, de Zeca Baleiro