Nós havíamos combinado que voltaríamos àquela mesma
região, no começo do Verão seguinte. Ela começava a falar na viagem, semanas
antes da data da partida, sempre cheia de planos… detalhados… e que não eram
poucos.
Eu achava incrível como ela havia
amadurecido naquele ano. Desabrochara como uma rara flor. Era uma miúda
inteligente e tinha uma beleza reconhecida por todos, para meu orgulho. Era
minha vida.
Ainda não era meio-dia, quando
chegamos à praia. Como era de esperar, ela saiu correndo, descalça e a chutar a
água salgada e fresca. Voltava a ser a minha menina, que tinha uma enorme fascinação
pelo mar. Eu a acompanhei, a passos lentos, pois não tinha vontade de correr. À
beira da água, eu gostava mesmo era de caminhar, bem devagar. Perdi-a de vista
quando ela venceu a curva da baía, mas sabia para onde se dirigia. Em pouco
tempo avistei a silhueta conhecida, a mover-se lentamente à minha frente.
Perguntei-me o porquê de estar a caminhar tão devagar, mas logo percebi a
razão.
Havia um homem jovem sentado sobre
um tronco, na praia, a olhar, muito sério, um ponto além do horizonte, com
olhos tão azuis quanto o céu que se estendia por sobre nós. Tinha cabelos
negros e fartos, lisos, mas estavam desalinhados pelo vento. Vestia uma camisa
branca, com as mangas arregaçadas até os cotovel
os e as
velhas calças
jeans com as bainhas
enroladas para cima, estavam um pouco molhadas. O rapaz, que já havia, com
certeza, passado dos vinte, mas estava longe dos trinta anos de idade, percebeu
nossa chegada, mas não saiu do lugar. Minha filha apertou minha mão, quando
viu que ele tinha uma garrafinha azul na mão.
***
- No fim do verão passado,
encontrei-a, no outro lado da baía. Tinha esperanças de encontrar a dona, mas
não sabia como. Decidi que devia mandá-la de volta ao mar. Tive pena, mas não
tinha direito de mantê-la comigo. Quem sabe outro tivesse mais sorte que eu. Mas
o poema era tão bonito, que hesitei…
- Poema?
- Sim.
Olhei o rubor tingir a face da minha
menina, agora comportando-se como uma jovem mulher. Ela desviou o olhar. Eu a
conhecia bastante bem. Aquele tipo de reação só poderia significar uma coisa.
Ele também não conseguia disfarçar, satisfatoriamente, o interesse que sentia.
A conversa fluía, como se fôssemos conhecidos de longa data. Estávamos sentados
na esplanada de um pequeno restaurante, não muito longe da nossa kitchenette, a relaxar e bebericar,
enquanto a comida não era servida. Sobre a mesa, jazia uma garrafinha azul, com
um velho pedaço de papel, enrolado, dentro. Eu o havia convidado para almoçar
connosco, uma atitude que jamais tomaria, se estivesse numa cidade grande. Ali,
naquela vila, porém, onde todos pareciam conhecer-se, acreditei que deveria ser
a atitude mais educada e inofensiva a tomar.
- Voltei para cá, depois de formar-me. Meu pai, viúvo e de idade avançada,
precisou de ajuda e eu resolvi estabelecer-me por cá, por enquanto. Trabalho em
um consultório na ilha. Um dia terei o meu, mas preciso de experiência e
dinheiro, para investir… Este fim-de-semana teremos uma festa grega. A comunidade
mantém certas tradições. Vai ser divertido. Vocês deviam vir.
Minha filha olhou-me, sorrindo. Era
evidente que já havia tomado a decisão dela. Eu sorri de volta. Pisquei o olho
e ela sorriu, largamente. Festa grega… pensei em danças na rua, pratos
quebrados, vinho tinto e muitos frutos do mar…
- Nós viremos.
Ele sorriu, em aprovação. Ela estava
radiante.
***
Nikos Vertis e Nikos Oikonomopoulos,
Antonis Remos, Vasilis Karras, Paola, Giorgos Mazonakis, Pantelis Pantelidis, Melisses
e muitos outros cantores gregos modernos, tocavam noite adentro, nos
autofalantes da praça. Os restaurantes estavam abertos e as mesas colocadas do
lado de fora. As pessoas vestiam-se de branco e dançavam nas ruas, que estavam
fechadas ao trânsito. Quando colocaram a canção mais pungente de Natasa
Theodoridou a tocar, o rapaz tomou a mão da minha menina e convidou-a a dançar
ali mesmo, no meio da rua. Outros casais faziam o mesmo. Eu lembrei que a mãe
dela adorava aquela canção.
“Να 'Σουν Θάλασσα, να μην σ’άλλαζα” (Na soun thalássa, na mi̱n s’ állaza)… ‘Se
tu fosses o mar, eu nunca te mudaria’… dizia a cantora, em dueto com Sarbel, com sua voz grave e em perfeito
contraste com a dela.
Eu senti uma nostalgia enorme e meus
olhos inundaram-se com lágrimas, ao lembrar a última vez que dançamos,
exatamente aquela mesma canção. Engoli em seco, tentando desfazer aquele nó que
me apertava a garganta, mas não consegui. Sentei-me à uma mesa vazia, com os
pensamentos muito longe dali.
- Eles formam um casal tão bonito…
Eu virei-me, para ver quem havia
falado. Uma mulher um pouco além da meia-idade, dona de uma das tabernas que
participavam do festival, olhava, com ar sonhador, os casais a dançar no meio
da rua. Sua atenção estava mais voltada ao jovem de cabelos muito negros e pele
morena e à mocinha de cabelos castanhos, emoldurando a face de pele muito
clara, decorada com expressivos olhos verdes, que dançavam bem à nossa frente.
- É verdade…
Eu poderia sentir alguma espécie de
ciúme ou um instinto protetor qualquer, mas não era o que se passava na minha
cabeça naquele momento. Eu os olhava e via outras pessoas, de um passado quase
recente. Não era delírio. Era uma névoa que misturava nostalgia, lembranças,
sonho e vida real. Na minha visão, ela parecia flutuar e transformar-se na mãe,
a dançar com um homem que eu conhecia muito bem... e que já não era o mesmo que
a observava, naquele momento. Eu havia mudado... e bastante… No fundo, eu tinha
medo que a história, de alguma forma, se repetisse...
No sirtáki dançam-se juntas a forma lenta (argó) e a rápida (grígoro) do
hassápiko, que é uma das mais
conhecidas manifestações populares, nos festivais de rua. Nas extremidades, como
não formam um círculo fechado, os dançarinos giram lenços nas mãos livres. Na
tradição, é importante não deixar a mão livre, para não ser segura por algum demónio.
Normalmente, um grande agrupamento
se forma, no ponto mais divertido da noite, quando ouvem-se os primeiros
acordes do sirtáki de Zorba, como
naquele momento.
Um jovem de cabelos muito claros adiantou-se
e puxou minha filha pela mão, sendo seguido por uma corrente de outras mãos,
que começaram a formar um cordão enorme, no meio da avenida. Um outro cordão de
pessoas, com os braços dados, formou-se à frente do primeiro. Nosso amigo esteve
na extremidade daquele, mas como distraiu-se e deixou o lenço que segurava ser
carregado por um outro, um homem mais velho apressou-se a tomar seu lugar e a
festa continuou, como se nada houvesse acontecido. O rapaz franziu o cenho, inicialmente,
mas logo voltou ao normal, pois assim ficava mais próximo da posição onde a mocinha
dançava e, aparentemente, esqueceu o ocorrido. A multidão ensaiava os passos
popularizados por Anthony Quinn, no
famoso filme de 1964. Em pouco tempo, todos já seguiam, perfeitamente, a
sequência tradicional, como um grande grupo de artistas do bailado. Embora para
alguns fosse a primeira vez, para outros, era mais uma… e era divertido para
ambos...
- Deem, aos gregos, comida, bebida e música e eles dançarão, felizes, a
noite inteira.
- Vejo que é uma grande verdade…
Eu concordava com a senhora, que
ainda observava a multidão a brincar, com os olhos um pouco distantes, como se
cheios de saudosismo. Quanta história haveria de estar escondida por detrás
daquele olhar cansado e nostálgico …
Quando a dança acabou, minha filha
correu ao meu encontro, ofegante e a rir, com as faces rosadas. Era evidente
que estava a divertir-se muito. Sentou-se ao meu lado e passou o braço no meu,
encostando a cabeça no meu ombro. Eu recostei a minha sobre a dela e ficamos a
olhar as pessoas a passar. Pouco tempo depois vimos o rapaz aproximar-se de nós,
com dois copos de bebida nas mãos. Sentou-se e ofereceu um deles à rapariga,
que aceitou, sorrindo. Ele também tinha as faces afogueadas.
- Vamos ao Zorbás? Há música ao vivo e é menos agitado que a rua.
Eu não estava muito animado para
ficar num lugar fechado, mas tendo em conta que ela estava tão excitada por
concordar, resolvi acompanhá-los. O Zorbás
ficava numa das ruas fora do rebuliço da festa e, por isso mesmo, menos
movimentadas, o que nos dava um pouco de paz. Quando entramos, entretanto, o
lugar estava apinhado de gente a rir e a beber. Alguns dançavam alegremente,
mas a maioria somente bebia e conversava. Havia um grupo no palco, a tocar
músicas modernas. Passei os olhos à nossa volta, captando os detalhes do lugar.
A decoração era simples, mas bastante interessante. Pequenos quadros
emoldurados de paisagens e temas típicos da Grécia estavam dependurados nas
paredes de pedra nua, à nossa volta. Apesar da pouca luz, alguns pontos estratégicos
por sobre as mesas e no bar, assim como no palco, podiam ser vistos com clareza
suficiente. Estávamos de pé no meio do recinto, a observar o que se passava. O
rapaz pediu licença e deixou-nos. Eu assumi que havia saído para buscar alguma
bebida.
Só dei-me conta que ele, ao invés
disso, sentara-se numa banqueta de pés altos, no centro do palco, quando
começou a cantarolar os primeiros acordes de Thelo na me niosis. A canção, gravada por Nikos Vertis, estava
muito bem interpretada na voz do nosso amigo mais recente. Eu não esperava que
ele fosse tão afinado e tivesse a voz tão clara. Os outros músicos pareciam
conhecê-lo, pela forma como o tratavam. Ele não tirava os olhos da minha filha,
enquanto cantava, como se o fizesse somente para ela.
- Να 'ξερες τα
βράδια πως μισώ
Που με τιμωρούν που σε 'χω χάσει
Θέλω να σε δω το ομολογώ
Άλλη τέτοια νύχτα ας μη περάσει
*(Na 'xeres ta vrádia po̱s misó̱
Pou me timo̱roún pou se 'cho̱ chásei
Thélo̱ na se do̱ to omologó̱
Álli̱ tétoia nýchta as mi̱ perásei)*
- Sabes o que significa?
- Não. Parece triste, por um lado e, mesmo assim, muito bonita e tocante…
- É uma canção de amor… Fala da agonia, que a separação de dois amantes
deixa, especialmente quando a noite chega. Tens razão. É romântica e triste, ao
mesmo tempo.
- Pois é…
***
*Se soubesses como eu odeio a noite
Porque sou punido por perder-te
Eu admito que quero ver-te
E não quero passar outra noite
assim...
***
Pelo jeito que ela tinha toda a sua
atenção voltada para o cantor e sorria, enrubescida, tive a impressão que
minhas férias daquele verão iam ser, de alguma forma, mais solitárias que
haviam sido nos últimos anos. Percebi que eu não estava realmente preocupado,
quando aquele pensamento formou-se na minha mente. Quando a performance acabou,
ele voltou a juntar-se a nós, sorrindo. Minha menina recebeu-o com um abraço e,
consequentemente, com um terno beijo. Vi que estava sendo demais na cena e
resolvi dar a noite por encerrada. Ela parecia radiante e, por mais estranho
que pudesse parecer, aquilo me deixava feliz. Pedi desculpas e retirei-me. Na
saída, esbarrei num rapaz de cabelos muito claros, que entrava apressado e
visivelmente alcoolizado.
***
Algumas horas depois, acordei no
meio da madrugada, totalmente confuso, com um tumulto de sirenes e vozerio, do
lado de fora do condomínio onde ficava a kitchenette.
Só dei-me conta do que acontecia, quando minha filha entrou, aos prantos, com a
blusa manchada de sangue. Entrei em pânico imediatamente, mas ela não estava
ferida.
Um policial, que entrou com ela, contou-me o que acontecera, já que a menina
parecia estar em completo choque. Um rapaz, de cabelos muito claros e
visivelmente alcoolizado, entrara no Zorbás
e tentara puxar a rapariga para dançar, mas ela recusara-se, sendo defendida
pelo parceiro que estava com ela. O outro não aceitou bem a rejeição e partiu
para cima do nosso amigo, que esmurrou-o e saiu, antes de causar maior dano. Na
porta, chamaram os seguranças, para tomarem providências e controlar o rapaz, que
gritava por vingança.
Quando estavam a chegar à casa, algumas
horas depois, o rapaz loiro, que os seguira, sem ser visto, puxou uma faca e
enfiou-a nas costas do meu futuro genro, um par de vezes e fugiu, quando minha
filha gritou, desesperadamente, por socorro. Os ferimentos foram tão profundos,
que ele não resistiu até a chegada da ambulância, falecendo no local, esvaindo-se
em sangue, pelos pulmões perfurados pela longa e afiada lâmina. Foi tudo muito
rápido. Uma verdadeira tragédia, num dia que havia sido tão especial para o
jovem casal. Estávamos todos absolutamente horrorizados e revoltados.
***
- Por que, pai? Por que a vida é assim cruel?
- Não sei, filha...
Choramos abraçados, como duas crianças,
consolando-nos pelo passado recente e pelo passado distante. A história, que se
repetia, tinha a crueldade de demónios que tomam nossas mãos, quando os lenços,
inadvertidamente, caem delas.
***
Evitamos voltar ao lugar nos três
anos subsequentes, após o trágico acidente. Por insistência dela, porém, retornamos
no começo do verão do quarto ano.
Assim que parei o carro na beira da
praia, já tão conhecida nossa, o menino de cerca de três anos, com cabelos muito negros, pele clara e
olhos azuis, como o céu que se estendia por sobre nós, saltou, impaciente, correndo
descalço pela praia, como se fosse um filho de pescador. Ao chegar à beira da
água, parou. Ele deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo
atrás, virou-se, olhou-nos e correu na direção das ondas, que quebravam
próximas, com seu som característico. Ele ria e saltava as ondas, molhando a
roupa toda, sem preocupar-se. A mãe sorriu, divertida, apesar do olhar triste.
- É mesmo meu filho...
- Sem dúvida nenhuma. Meu neto tem uma afinidade muito grande com o grande
dragão...
Ela sorriu, mas eu percebi que uma
lágrima teimosa, caiu-lhe pelo canto do olho.
O menino correu pela beira da água,
até desaparecer na curva da baía. Minutos depois, voltava com uma garrafinha
azul numa das mãos e um velho pergaminho, atado com uma linha vermelha, na
outra. Disse que havia encontrado a garrafa na praia, meio enterrada na areia,
perto de um tronco caído. O papelzinho tinha um pequeno poema escrito.
"Quando me vires,
saberás quem sou,
pela forma como eu te olhar.
Se hesitares em chegar-te,
pensa que eu posso ter esperado
muito tempo
por este encontro
e que já não posso esperar mais.
Se me abraçares,
fá-lo por inteiro,
como se nossos corpos
fossem um só.
Quando me beijares,
então,
que seja como um último,
mesmo que seja o primeiro,
pois o primeiro,
bem pode ser,
também,
o derradeiro."