Por princípio, acredito que não
exista qualquer segurança cega, nada de totalmente sólido e palpável, tampouco
algum conforto completo, quando trata-se de relacionamentos. Embora nós ainda
evitássemos usar a palavra, era evidente que estávamos bem longe de
considerarmos nosso agradável convívio como resultado de apenas uma fortuita
aventura, sem grandes compromissos.
Vínhamos nos encontrando há um
bom tempo e sabíamos que as ocasiões que passávamos juntos não tinham nada de
casual. Apesar de uma distância física considerável nos separar e de não ser
possível nos vermos mais frequentemente, era, inegavelmente, um relacionamento,
mesmo que não o chamássemos pelo devido nome, por pudor, receio, insegurança
ou, simplesmente, por uma tola cautela. Éramos dois adultos, comportando-nos
como hesitantes adolescentes e tínhamos total conhecimento do tipo de trama
emocional em que estávamos envolvidos.
Aquela percepção, entretanto, não
era suficiente para tranquilizar a mente de ninguém. Dava, apenas, uma clara
noção dos factos, que já poderiam haver sido assumidos por ambas as partes, há
algum tempo. Como era mais confortável deixar a situação desenrolar-se por si
própria, nunca discutíamos o óbvio… pelo menos até aquele momento, em que ouvi
a tal frase, imprevista e inusitada, que dava início a uma discussão, a meu
ver, talvez, desnecessária.
A estranha expressão a referir
que estava com a vida ‘totalmente desconfigurada’
assustou-me, inicialmente, causou-me um certo pânico e colocou-me em estado
de alerta.
Conscientemente eu desejei fugir,
correr dali, negar que havia ouvido o angustiante início de colóquio, mas
aqueles pouquíssimos e breves segundos de reflexão não me deram hipótese alguma
de escapar. Uma estranha sensação, como a de borboletas a bater asas na boca do
estômago, porém, avisava-me a amplificar o estado de prontidão, quando a
torrente de palavras saiu ininterrupta de sua boca, antes mesmo que eu pudesse
fazer qualquer coisa para impedir.
***
- Tenho tantas dúvidas a afligir-me a cabeça… Sei que a nossa relação (e
ainda tenho receio de usar esta palavra!) é injusta para ti, que nunca reclamas
do pouco que eu te dou e sinto que sou egoísta em cada momento que percebo
isto; e porque me sinto confortável com a situação, me fui acomodando a tudo o
que me dás, gratuitamente, sem nem ao menos pedir nada em troca. Às vezes penso
que não te valorizo suficientemente, nem o que temos e até acho que devias ir
em busca de algo mais consistente… de alguém com uma vida menos complicada. Ao
mesmo tempo que quero que sejas livre nas tuas escolhas e que encontres uma situação
melhor que esta, tenho um medo terrível e insuportável de perder-te e não posso
negar que sinto uma insegurança enorme... daquelas de tirar-me, das noites, o
sono.
- Shhh… Cala-te, por favor. Não estás a levar em consideração que não
sou nenhuma criança e que sempre soube, desde o começo, onde estava a meter-me.
Achas que eu não sou livre? Achas que não sei as consequências das minhas… ou
melhor, das nossas… atitudes? Quem disse que eu preciso de uma situação melhor
que esta?
Eu não sentia irritação, mas
minha agitação não conseguia esconder um certo desassossego. Tinha em mente,
naquele momento, apenas, que precisava fazer ver o meu ponto de vista, que eu
considerava ser mais que manifestamente adequado, na nossa situação. Da minha
parte era a mais pura verdade. No fundo, porém, eu tinha um receio incómodo e
pouco fundamentado de que aquele fosse o começo do fim…
- Como eu posso aceitar, pacificamente, que vivas em estado de martírio
mental, com uma intranquilidade destas, se a vida nem ao menos nos dá certeza
de nada? Se alguém, alguma vez em, qualquer tempo, teve segurança absoluta do
destino de uma relação emocional com outra pessoa, que atire a primeira pedra.
Se os poucos momentos, em que se desfruta o prazer da companhia da pessoa com
quem se quer estar, for torturado pela inquietação e pela dúvida, de que vale
estar-se juntos?
Olhou-me, com uma expressão meio
constrangida, provavelmente sem conseguir encontrar quaisquer novos argumentos,
que me pudessem convencer a abrir mão, sem luta, daquela espécie de mágica que
havia-se consolidado entre nós.
- Não te chateies, por favor, porque foi inevitável ver-me numa
situação tão… digamos… insegura. Sabes que, apesar de não dizer claramente, eu
sinto algumas coisas bastante profundas a teu respeito. Às vezes não digo o
quanto gosto de ti, nem como tens sido importante para o meu equilíbrio. Não
falo como me sinto bem quando estou contigo e como gosto dos nossos momentos,
tanto na cama quanto na mesa, quanto em qualquer outro lugar também! Sei que, normalmente,
esqueço-me ou evito, propositadamente, de falar-te estas coisas; talvez por ser-me
cómodo, ou por ser-me mais conveniente, mas nunca por ter as coisas dadas como
garantidas, entre nós. Por isso, não tens porque te importunares. Pelo menos, valeu
para dizer que gosto muito de ti!
Eu corei, instantaneamente, pois
não esperava por aquela constatação, tão diversa do que ouvira minutos antes. Só
consegui terminar a conversa com um último pedido... quase uma súplica.
- Deixa-te de cobrar uma certeza sobre o incerto. Se sabes o que
sentes, deixa-te levar pelo momento. De que valem as preocupações se temos tão
pouco tempo juntos? Abandona-te, pelo menos enquanto estiveres comigo… fica
comigo e somente comigo… deixa as tuas preocupações lá fora…
Olhou-me como se não tivesse mais
fundamentos plausíveis e como se aceitasse, finalmente, que os meus argumentos faziam
sentido, afinal. Recostei, então, a cabeça em seu peito macio e aninhei-me ali,
sentindo-me em completa proteção. Deixei-me envolver por um abraço, que trazia-me
um conforto morno e a impressão que a vida real ficava tão distante de nós,
naquele momento, que estávamos completamente resguardados de todo o mal. Éramos,
pelo menos naqueles breves instantes, simplesmente, invencíveis e imortais.
Cerrei as pálpebras e tentei relaxar,
ao mesmo tempo que engolia as lágrimas, que somente eu sabia estarem a brotar, involuntariamente,
em mim. Dei um longo suspiro e deixei-me cair num imenso vazio…
***
- Adormeci…
Sussurrei aquela frase
minimalista, sem virar-me, nem abrir os olhos. Não tinha ideia de quanto tempo
havia-se passado.
- Eu percebi… Ver-te assim, a dormir, como uma criança, aparentemente
tão frágil e vulnerável, deu-me uma vontade quase incontrolada de abraçar-te,
mas não quis perturbar teu sono inocente. Por isso apenas afaguei teu corpo,
teus cabelos e teu rosto e beijei-te bem suavemente, tentando não despertar-te.
Tive a impressão que tocava um anjo adormecido, tão desamparado… tão indefeso. Meu
desejo, na verdade, era ficar ali, a acariciar-te e proteger-te para sempre…
nos meus braços… até fundir-me em ti...
Virei-me para olhar em seus
olhos. Havia, neles, uma ternura com a qual eu não sabia se alguma vez já imaginara
contar. Embora aquela expressividade não me fosse conhecida, eu tinha
consciência do que significava. Era evidente demais para ser ignorada.
Beijei-lhe os lábios e colei meu corpo no seu, num abraço apertado, deixando as
nossas inseguranças e imperfeições encaixarem-se umas nas outras, como se
fossem peças de um doce quebra-cabeças.
Sabia que estávamos mais
envolvidos que jamais estivéramos e também sabia os riscos que corríamos… mas
eu não tinha receio nenhum de enfrentá-los. O que é a vida, final, sem
desafios? O que é o presente, senão uma coleção de momentos simples e plácidos,
como aquele?
Se tudo o que eu vivera em meu passado
havia representado a perfeita ilustração de um Pretérito Imperfeito, daqueles
que ficam suspensos entre as eras, inacabados e em modo de espera, o presente havia-se
transformado em um novo tempo… como se o Universo estivesse a ensinar-me a
conjugar o verbo ‘viver’ em tempo
Mais-Que-Perfeito, do Modo Indicativo…