quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 7

O velho vinha ficando cada vez mais anti-social. De vez em quando se isolava e se trancava no quarto, por períodos cada vez mais longos. Dizia que precisava deste isolamento, para colocar suas ideias em ordem. Ela desconfiava que havia algo além daquela boa intenção.

Ao retiro do quarto, era acompanhado somente pelo gato, que mantinha a cumplicidade, sem restrições, sem cobranças, sem se alterar, mas sempre atento aos movimentos do velho companheiro. Havia, entre eles, uma troca incondicional, com a qual o velho aprendera a lidar, tendo em vista a longa jornada que vinham fazendo juntos, entre momentos de alegria e outros de pura angústia. O ruivo felino era companheiro para todas as horas, para todos os momentos de lucidez ou de loucura do homem.


Outra noite avançava lentamente, num dia quente de verão e o silêncio ia tomando conta do lugar. Na saleta, perto da entrada, uma luz ainda estava acesa. O quase inaudível barulho das teclas sendo marteladas, suavemente, chamou a atenção da enfermeira-chefe. Ela sabia quem poderia estar àquela hora no computador. Pensou em se aproximar, mas a sua coerência e o respeito que tinha pelo velho amigo, a impediram de interferir. Ela sentou-se na sala de estar, próxima à entrada, aproveitando a leve brisa que entrava pela porta entreaberta da varanda e um dos poucos momentos de paz de que podia usufruir. A luz do poste iluminava sua silhueta, marcando os contornos do rosto e as linhas delicadas do pescoço e colo, a curva do braço e as ainda belas e torneadas pernas, cruzadas languidamente, sobre a poltrona desbotada. Sua tarefa do dia estava praticamente concluída e ela precisava descansar. Mas ficar ali, ouvindo o toque suave das teclas na sala ao lado, causavam uma certa sonolência e sua mente já divagava por outros lugares e outros tempos.

Ela lembrou do dia em que o velho entrou por aquela porta pela primeira vez. Trazia nas mãos uma pequena mala com roupas e a caixa de transporte do gato. O felino era uma figura à parte. Grande e gorducho, com idade avançada, ainda era bastante inteligente e ágil, dentro do possível, sendo a âncora do velho, para todos os momentos. Sabia o momento certo de se manifestar e o momento certo de, somente, observar. O velho tinha uma consideração e uma afeição sem limites pelo animal que o acompanhava. Eram dois solitários que se compreendiam e se respeitavam mutuamente.

A mulher lembrou das negociações do homem com a directora e como ela se divertiu ao ver a matrona se curvar diante da oferta generosa do velho, com uma condição que ela se arrependera depois de ter tomado. Apesar do período conturbado que se seguiu e que piorava a cada dia, ela ainda conseguia dar boas risadas. Tinha que se esquivar, politicamente, das investidas da directora, do veneno das mulheres mais velhas e até dos comentários das outras enfermeiras, que lhe diziam que era ainda jovem para se enclausurar na casa de repouso e esquecer sua vida social.

Como diria, sabiamente, Colleen McCullough, ela havia se deixado seduzir pela mais indecente das obsessões: o trabalho. Ela sabia que era bem mais profundo que isso, mas preferia não deixar transparecer suas frustrações em relação aos relacionamentos não profícuos que havia tido no passado. Ao invés de continuar tentando, preferia se dedicar exclusivamente à sua vida profissional. O resto, pensava, era secundário. Ela sabia que não estava totalmente certa, mas não estava completamente errada. Evitava sofrer, na melhor das hipóteses.

O som das teclas já havia parado e ela só percebeu que não estava mais sozinha na sala, quando o homem atrás de si fingiu limpar a garganta com um hum-hum audível. Ela se voltou, tentando não parecer embaraçada pela situação e olhou o homem de pé, a lhe observar na penumbra da sala. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, quieto, enquanto ela viajava nos pensamentos e lembranças, tentando se convencer que havia tomado todas as decisões correctas em sua vida.

Ele a olhava com um olhar especial, dedicado somente à ela. Ela parecia ser um dos poucos elos que ele ainda tinha com a sanidade. Aquele par de olhos azuis, com a profundidade do mar e aquele ar desprotegido, como se vida esperasse por ela para continuar, fazia os seus dias mais brilhantes, mais suportáveis... Ele fazia de tudo para estender o tempo em que ela ficava à sua disposição. Ela era uma companhia agradável, que ele apreciava ao extremo. Além do mais, representava a lembrança de um passado, que não era dela, mas que ele prezava - do tempo em que julgou ser feliz.

- É tarde. Melhor ir se deitar, antes que a directora venha fazer alguma ronda e comece a fazer perguntas.

Ela dizia o que lhe vinha à cabeça, pois queria evitar qualquer confronto. Sabia, porém, que o velho não iria dizer nada, pois também não queria conversar sobre o que estava fazendo no computador àquela hora.

- Um chá gelado ia bem, com este calor. Será que há algum na cozinha?

Ele era mestre em iniciar aquelas conversas sem objectivo, para deixá-la à vontade, exprimindo uma conivência descomprometida, demonstrando que respeitava o silêncio dela, desde que o seu também o fosse. Ela sabia que aquela era a deixa para saírem dali, ir à cozinha e falar de amenidades, permitindo que o embaraço do momento passasse completamente. Sabia que, logo, estariam dando risadas, comentando os acontecimentos da casa de descanso e as aprontadas dele e de Ginger, o gato malhado, que no momento descansava no sofá da sala.


Horas depois de amanhecer, no dia seguinte, uma das mulheres notou que a porta do quarto ao fim do corredor não havia sido aberta. Curiosa que era, foi até o lado de fora e verificou que a janela também estava fechada, apesar do calor e do dia já ir adiantado. Era quase hora do almoço e o homem não havia sentado à mesa para fazer as primeiras refeições do dia. Alertada para o fato, a enfermeira-chefe, ao comando da directora, bateu à porta do quarto. Preocupada por não obter nenhuma reacção, nem resposta, usou a chave mestra e entrou no quarto. Na penumbra, viu que o homem ainda estava na cama. Ela desconfiou que algo estivesse errado. Com cautela, acendeu a luz.

O homem que jazia na cama não era, definitivamente, o mesmo da noite anterior, que tomava chá gelado na cozinha e dava risadas com ela, lembrando da gritaria das mulheres, quando o gato trazia seus "presentes" e os depositava aos pés do pessoal, na sala de jantar. O animalzinho, por sua vez, estava sentado aos pés da cama, cuidando do amigo, atento a todos os movimentos da mulher que havia entrado e do homem que jazia na cama, como se olhasse algo muito distante dali. Ele parecia desfigurado, desconfiado, deslocado... Aparentava não ter muita noção de onde se encontrava.

A mulher olhou o velho com compaixão e preocupação. Era como se ela visse, através dos olhos dele, toda a tristeza e o vazio da vida. Ela não sabia quase nada dele, reconhecia. O homem era um mistério não desvendado; uma equação a resolver. E ela não tinha dados suficientes para o cálculo das incógnitas.

A enfermeira-chefe já havia suspeitado que o velho apresentava alguns sintomas estranhos, mas nunca havia realmente ficado naquele estado anteriormente. Aproximou-se com cuidado, segurou a mão dele na sua e perguntou se ele estava bem. Ele a olhou, com um misto de confusão e impaciência. Ela foi até a escrivaninha, abriu a gaveta, para procurar algum medicamento, que ele pudesse estar tomando. Ao abrir a gaveta, viu o papel dobrado, com o timbre conhecido. Parecia estar ali há muito tempo, pois já começava a amarelar. Sem hesitar, ela pegou a folha de papel dobrada ao meio, abriu e leu o documento. Era o resultado de uma consulta a um especialista. No final da folha, escrito em caligrafia quase ilegível de médico, o diagnóstico: princípio de Alzheimer. Medicação: Memantina.

Ela procurou algum frasco de remédio, mas não encontrou naquela gaveta. Procurou no armário do banheiro, mas não havia nada.

Sem pensar em muitas opções, foi até a farmácia, pegou um sedativo e trouxe ao quarto. Era o mínimo que podia fazer. Ainda intrigada, olhou à sua volta. Pensou em procurar na mesinha de cabeceira. Havia um livro escrito por um autor desconhecido e um Novo Testamento. Quando ia fechar a gaveta, notou que o livro não ia até o fundo da mesma. Passou a mão por trás do livro e puxou um frasco pequeno de comprimidos, com o mesmo símbolo do papel timbrado, estampado no rótulo. Leu rapidamente as indicações e deu um comprimido ao velho, com um pouco de água, na qual havia colocado o sedativo.

Apesar de não demonstrar conhecê-la, o homem tomou, obediente, o medicamento que ela ofereceu. Fechou os olhos lentamente e deu um longo suspiro. Parecia cansado demais para lutar. Fechou os olhos, lentamente, sem dizer nenhuma palavra e se entregou ao sono.

Ao olhar o homem adormecido, a enfermeira se perguntava como deixara passar, despercebida, uma evidência tão clara. Devia prestar mais atenção ao paciente, pois agora o comportamento do velho parecia fazer sentido.

- Por que razão ele havia escondido esta condição por tanto tempo? - perguntava-se ela.

Aquela loucura tinha nome - e era terrível. Ela percebeu que o carinho que sentia pelo homem se transformava em compaixão. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela não lutou para conter. Mergulhou o rosto nas duas mãos e chorou de tristeza, pelo amigo ali deitado, à sua frente, com o gato, sempre atento, sentado aos seus pés.

Minutos depois, já praticamente recomposta, a enfermeira-chefe saía silenciosamente do quarto, e se dirigia ao gabinete da directora, com a folha de papel dobrada no bolso do uniforme.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 6

Sempre que ouvia gritaria no corredor, a directora sabia que o velho havia aprontado alguma nova estripulia. Mas ela jamais iria se acostumar a ouvir a gritaria geral das mulheres e a correria pelo corredor afora. A enfermeira-chefe, alheia aos gritinhos nervosos das damas, divertia-se secretamente, pois de outra forma o tédio era mais comum que as aprontadas do velho e do gato. Vez ou outra, porém, a casa de descanso virava um pandemónio.


A velha mulher estava sentada, de costas para a porta, quando viu a grande nuvem de fumaça sair pela porta do quarto, ao fundo do corredor lateral. Imediatamente começou a gritar:

- Fogo! Fogo! O velho louco colocou fogo no quarto!!!

A correria começou. A directora, de dentro do seu gabinete, já imaginava o que - e quem - poderia estar causando o tumulto.

- O que foi que este homem aprontou agora, meu Deus? Será que não posso ter uma semana de paz, nesse… nesse… nesse manicómio?

Ela custava a encontrar a palavra certa, para definir o que o velho havia transformado a casa de descanso, desde que chegara, há dois anos. E sentia que ele vinha piorando, a cada dia que passava. Abriu a porta do gabinete e se dirigiu para o salão central, onde já encontrou a enfermeira-chefe, com o extintor de incêndio em mãos, se dirigindo a passos apressados pelo corredor a dentro.

Pronta para disparar a carga de pó químico contra o fogo, a mulher quase não conseguiu conter o riso, quando viu o velho sair, do meio da fumaceira, com uma máscara cirúrgica cobrindo o nariz e a boca. Este era um daqueles dias em que a coerência e a sobriedade do velho pareciam desaparecer por completo. Ela bem que poderia ter desconfiado, quando ele pedira a máscara a ela, uma noite, depois do jantar, sem dizer para quê precisava de uma. Pelo menos estava explicado os estranhos sons de murmúrios repetidos, como cântico, que o velho fazia lá dentro, poucos minutos antes. O velho disse que resolvera defumar o quarto, alegando que precisava purificar o ambiente.

O gato, que havia estado do lado de fora e arranhava a porta, ao receber a grande nuvem de fumaça contra a cara, não se atreveu a entrar. Ao invés disso, saiu atrás do velho, pelo corredor afora.

A enfermeira-chefe olhou para as outras mulheres, desvencilhou-se do equipamento que trazia nas mãos e entrou no quarto, a fim de abrir as janelas e ver se não havia nenhuma avaria deixada pelo homem, que tantas vezes lhe havia ensinado pequenos detalhes de como viver uma vida simples e colorida. Ela notava que ele começava a mostrar sinais de alheamento ou isolamento com mais frequência. Teve medo que houvesse mais coisa escondida, por trás destas atitudes.

Excepto pela fumaça e a quantidade de restos de palitos de incenso caídos num recipiente em cima da escrivaninha, não parecia haver nada mais a queimar no quarto. A mulher vasculhou todos os cantos, mas a única evidência de algo mais, era um pedaço de papel chamuscado, que jazia dentro da lixeira. Ao passar os olhos, lembrou de já haver visto aquele timbre, no alto da folha de papel, quase completamente queimada. O símbolo era de uma clínica de medicina.

- O que será que ele está tentando esconder aqui? Isto parece mais uma tentativa de acobertar uma evidência, que uma defumada no ambiente.

A enfermeira-chefe pensou que havia visto aquele papel anteriormente. Precisava prestar mais atenção aos pequenos detalhes, deixados à vista - talvez propositadamente - quando viesse visitar o homem, mais tarde…


Mais tarde, no pátio, os residentes passeavam ao sol e liam ou jogavam damas e xadrez nas mesas colocadas por baixo do grande flamboyant. O sol era sempre bem-vindo pelos “seniors”, pois lhes dava a liberdade de transitar livremente do lado de fora. O gato brincava do lado de fora, no canteiro de flores, perseguindo as borboletas e os pequenos pássaros que iam e vinham, como se a provocar o velho felino. O velho lia um livro, sentado num banco, a um canto, protegido do sol. Tudo parecia sob controle.

Mesmo assim, as enfermeiras passavam e verificavam os senhores e senhoras, ocupados em seus afazeres simples. Elas, na verdade, iam ver se algum deles – e um, em especial - não estava aprontando alguma. Quando todos estavam no pátio, as coisas ficavam mais calmas e controladas.

Quando todos estavam presentes na casa, é que as aprontadas do velho aconteciam. Em semanadas frias ou chuvosas, sempre acontecia alguma aparição inusitada. Ele parecia se divertir ao ver a mulherada em polvorosa. Uma vez, comprou um ratinho branco e soltou no corredor, para ver a reacção do gato. A reacção foi pior das mulheres que do gato, que se divertia a valer, em caçada ao pequeno roedor, enquanto as mulheres gritavam e corriam pelos corredores, ou subiam sobre as poltronas da sala de visitas.

Outra vez, o gato encontrou um pequeno lagarto no jardim e o trouxe para dentro, depositando-o aos pés do velho, na hora da refeição. Nova gritaria, quando o lagarto deu por si e saiu correndo, com o gato em perseguição desgovernada entre os pés dos comensais no salão principal.

As enfermeiras mais jovens já haviam se acostumado a estes acontecimentos, severamente condenados pela directora, mas tolerados por elas, já que eram inofensivos e as divertiam, quebrando a monotonia da casa de descanso.

Quando era acusado de colocar em risco o sossego e saúde dos outros residentes, o velho respondia com um sorrisinho de canto de boca, ou uma larga gargalhada, mas nunca com uma explicação.


Da janela do quarto, o velho observava o portão principal. O porteiro era metódico nos horários e não abandonava o posto facilmente. Todas as entradas e saídas eram devidamente registradas, de modo que a direcção soubesse, sempre, quem saía e quem entrava no recinto. Em todo o tempo em que se encontrava na casa de descanso, ele havia recebido uma única visita. Um homem havia vindo, há algum tempo atrás, conversar com ele e não ficou mais que uma hora em reunião privada.

Devido a avançada idade da maioria, as saídas para fora do recinto eram somente autorizadas se fossem acompanhadas, por isso o grupo sabia que, uma vez por semana, às quintas-feiras, uma van os levava ao centro da cidade, ao shopping center, ao cinema, ou a algum outro lugar previamente combinado. O velho não costumava acompanhar os outros nestas viagens. Preferia ficar ocupado com seus hobbies e com o acesso quase livre ao computador, por um tempo mais longo.


Nestas ocasiões, em que a casa de descanso ficava mais calma, o velho aproveitava e passava a tarde inteira trancado no quarto ou na sala do computador. Foi numa destas tardes, que a enfermeira viu, “en passant”, o que aparecia na tela do computador. Ela, que achava que o velho apenas se divertia lendo ou pesquisando alguma coisa na internet, ficou surpresa ao ver que estava em “conversa” no Messenger.

Ela parou, intrigada, à porta, mas logo foi notada pelo homem, que desligou imediatamente e saiu da saleta, sem dizer uma palavra, nem olhar directamente à ela. Pigarreou ao passar pela porta e assobiou uma canção conhecida sua.

A enfermeira ficou ali, parada, a olhar a tela vazia do computador, imaginando quem poderia ser o contacto do velho, com o mundo lá fora…

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 5

As luzes da sala de espera, próxima ao portão 22, focavam apenas uma única pessoa, ou assim parecia ao homem, que sentado, lia um jornal. Aqueles olhos azuis fingiram não ver o seu olhar cruzar a sala momentaneamente, mas tornaram a observar o homem, assim que este voltara a baixar a cabeça.

Já na fileira de quatro lugares, no meio de um voo lotado, o homem observava as pessoas passarem e se acomodarem, algumas em silêncio, outras em verdadeira balbúrdia, sorrindo e conversando alto. Imediatamente colocou os fones nos ouvidos, para isolar-se do alvoroço geral. Logo o avião estaria no ar, o tumulto mais controlado e ele poderia fechar os olhos e fingir estar dormindo, para não ser perturbado.

Olhares iam-se, indiferentes, procurando o assento certo. Um rapaz sentara-se na poltrona da ponta, deixando um lugar vago entre eles. O homem desejou que o lugar ficasse vago até o destino. Foi quando ele viu aqueles olhos novamente. As luzes pareceram apagar, outra vez, excepto por aquela sobre a cabeça bem desenhada da mulher parada, a olhar o lugar vago a seu lado, com uma expressão divertida.

- Sente-se aqui. Sente-se aqui - desejava ele, em silêncio e com veemência, tentando não parecer desesperado demais, pela expressão de sua face.

Aquele olhar pousou sobre ele e a mulher pediu licença ao rapaz sentado próximo ao corredor. O homem sentiu seu coração dar um salto.

- Com licença…

Ele ouvia a frase repetida, mas era consigo que ela falava agora. O homem quase não acreditava na sua sorte. Não lembra como começaram a conversar. Só lembra que a noite foi curta demais. Não pararam de falar a noite toda. Nunca um voo pareceu tão rápido. Poucos minutos antes da saída, ele ouviu:

- Você tem endereço de Messenger? (Quem não tinha?) Escreva aqui, por favor.

Ele escreveu, com cuidado, caprichando na caligrafia para não deixar dúvidas na sequência de letras. Num pedacinho do mesmo papel, rasgado em rectângulo, numa caligrafia miúda e rebuscada, recebeu o endereço dela. Mesmo que nunca mais se vissem ou se comunicassem, aquela era uma prova que ele não imaginara aquela viagem tão incomum. Tiveram que se separar, pois cada um tinha um destino diferente. Ele ficava, ela partia para um próximo destino. O voo de conexão já estava em vias de embarque.

Se despediram às pressas, sem aperto de mão, sem nada mais que um simples adeus, meio gritado, com um rápido olhar por sobre os ombros, enquanto os passos apressados sumiam à distância. O homem apalpou o pedacinho de papel, dobrado em dois, no bolso, com uma afeição que há muito não sentia.

Ao sair pela porta giratória, o mundo pareceu bater-lhe de frente, à face, com a frieza do ar de inverno e da realidade, vindos, sem piedade, do lado de fora…


O velho olha o gato deitado, a lhe observar com atenção, mas sem se mostrar ansioso a sair do conforto da almofada, sobre a qual se encontrava a descansar. Ele coça o pescoço do amigo, que lhe retorna o carinho com um ronronar de satisfação. Olha, com uma pontinha de tristeza, para a caixa em cima da escrivaninha e pensa que e enfermeira-chefe não voltaria a buscar o presente que ele havia-lhe oferecido.

Ele se adianta e abre a pequena caixa de madeira, retirando dela um objecto embrulhado, cuidadosamente, em um pano de cetim roxo. Dele, desenrola um deck de cartas, marcadas pelo uso. Ele estende o pano sobre a escrivaninha e embaralha as cartas, distraidamente, várias vezes. Neste momento, a porta se abre e ela entra.

- Desculpe por não vir antes. Não foi de propósito… muita coisa para fazer…

O gato espreguiça-se sobre a almofada, enquanto o velho se volta, com o deck de cartas na mão. Ela desculpava-se, por educação, mas ele já havia-se esquecido porque tinha estado triste. Ela tinha o efeito de lhe curar as dores da alma, pela simples presença, que ele estimava tanto.

- Sente-se aqui – disse-lhe ele, apontando para a cadeira à escrivaninha. Vou-te ensinar a jogar estas cartas. Gostaria que aceitasses o presente e as lições…

Ele buscou um livro num armário e o colocou sobre a mesa.

- Em caso de dúvidas, nunca tenha medo de consultar o manual…

Ele dizia aquilo com uma naturalidade e tranquilidade, que ela admirava. O homem ensinou-lhe a embaralhar e dispor as cartas no jogo e pediu-lhe para puxar uma carta do meio do monte disposto em leque aberto, colocado no centro do pano estendido na escrivaninha.

Ela puxa uma carta, franze o cenho e olha para o velho. Uma sombra passa à luz dos seus olhos. Ela tenta não se afectar, mas já havia sentido o efeito que a representação de um esqueleto com uma foice na mão provocara em sua percepção. A figura não causou tanto desconforto, quanto o nome da lâmina representada. Com a mão trémula, ela hesita em continuar e solta a carta sobre a escrivaninha.

- Desculpe. Eu não consigo fazer isso. Tenho medo do que possa ver. Essas coisas me assustam.

Ele percebeu que ela falava com sinceridade. Olhou com complacência para a mulher, que se transformara numa menina amedrontada, recolheu a carta e disse, devagar e firmemente:

- Assim como muitas atitudes e pessoas, esta carta é mal compreendida. Apesar do nome, no tarot, esta carta significa uma grande mudança. É preciso deixar umas coisas para trás, abandonar certos hábitos, para que outros nasçam. Mas deve-se estar preparado para esta transformação. É como se fosse a alegoria da Fénix: das cinzas de uma, nasce a outra, rejuvenescida e pronta para enfrentar novas e radicais mudanças. Não tenha medo. Esta carta é muito positiva!

Ela olhou-o, com cuidado, tentando estudar suas expressões, tentando ver se ele falava a verdade. Ele parecia de um mestre, paciente e sábio, tentando mostrar a verdade à sua pupila. O músculo de sua testa, entre os olhos, relaxou um pouco. O velho, então, sorriu.

- Sabendo usar as cartas, te deu alguma vantagem? Foi mais fácil viver, sabendo que podias contar com um conhecimento que nem todos possuem? Pode-se achar a felicidade, procurando nas cartas?

Ela agora parecia uma menina curiosa e ávida por respostas, que ele não havia se acostumado a dar, em todo o curso da vida. Mas ele sabia que se não fosse a ela, jamais se abriria novamente. A mulher fingiu que não percebeu que ultrapassava uma linha limítrofe entre o respeito e a intimidade. O gato semi-cerrou os olhos e levantou as orelhas, observador que era e conhecedor dos hábitos do velho.

- As coisas não funcionam assim tão fáceis. Não se tem vantagem por saber ler as cartas. Eu usei pouco este conhecimento em meu favor. Minha intenção era compreender certos mistérios e não ser completamente surpreendido em algumas ocasiões. Mas eu também ajudei outras pessoas… não muitas… Algumas tem medo do que vêem.

Ele olhou fixamente nos olhos dela. Será que ela estaria preparada? Ela parecia hipnotizada pelo olhar do homem. Por fim, ele disse:

- Eu fui feliz com tão pouco. A vida não me deu muito… em relacionamentos, em amor, em prazer… e, no entanto, eu fui feliz. Algumas coisas parecem ter acontecido tarde demais, no tempo… Mas... não, eu não vivi uma vida morna. Tudo que eu fiz, foi muito intenso. Eu vivi sempre com muita paixão pelas coisas que fazia e pelas pessoas que eu amei. Se eu fui tão feliz com tão pouco, o que poderia ter sido, se tivesse um amor verdadeiro? E se tivesse recebido mais? Teria, eu, sido mais feliz? Não sei dizer…

A enfermeira-chefe compreendeu o que o homem dizia. Só não esperava pelo próximo passo dele.

- Esta é a carta que deves temer… e, esta, a combinação mais perigosa de todas…