segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pudim de Pão


“Rapazes, um de vocês vá lá em cima e me traga três ovos frescos, que eu quero fazer um pudim de pão.”

O “lá em cima”, a que ela se referia, era um dos vários ninhos, dentro do galinheiro que havia na parte mais alta do terreno contíguo à casa. Eu sabia que a mensagem era dirigida a mim, que estava quase sempre disponível. A simples menção ao pudim, já me fazia exultar, pois tinha uma grande afinidade com doces, naquela época. Não seria esforço nenhum da minha parte fazer o que me era pedido, pois já antecipava a compensação, no final.

A receita que ela usava devia estar na família havia anos. A simplicidade era estupenda, mas o que a fazia peculiar eram os poucos ingredientes usados e a forma com que ela trabalhava a massa do pudim. Na fórmula, nada além de pedaços cortados de pão francês amanhecido, leite, açúcar e alguns ovos. Estes eram batidos com muito vigor, por aqueles braços musculosos, que nunca conheceram cansaço. Não precisava muito mais, além de alguma imaginação, para fazer mais uma das várias iguarias inimitáveis dela.

Era no detalhe que estava a magia do processo. Não usava pão doce para a preparação – somente o francês e o de trigo, como chamávamos – que eram de massa salgada. Este era deixado de molho no leite adocicado com açúcar refinado branco, por algumas horas. Depois de bem amolecida, aquela massa era misturada, energicamente, à mão, por vários minutos, até ficar sem grânulos ou pedaços não dissolvidos. A seguir, era deixada mais um tempo a repousar, para amaciar melhor ainda, num processo que se repetia umas duas ou três vezes, até que ela se desse por satisfeita.

Minha mãe tinha a potência infatigável de uma máquina, sempre pronta a fazer de tudo para nos proporcionar alguma surpresa em termos de culinária. Era um dom que possuía. Tudo que fazia tinha que ser perfeito e quando elogiada, costumava dizer: “claro! Fui eu quem fez!”, dando uma risadinha logo em seguida.

À massa já descansada, ela acrescentava os tais três ovos, previamente batidos e misturava mais um pouco, usando a mesma energia de sempre. Uma pitada de sal, um punhado de cravos, um pouco de coco fresco - ralado à mão - e estava pronta para ser assada em forno pré-aquecido, depois de salpicada com um pouco de açúcar e canela em pó. O processo de cozimento estava terminado quando a bela e atraente côdea ficava dourada, endurecida e quase crocante. Era aquela crosta que eu deixava para comer depois da parte mais suave, pois tinha a mania de deixar o melhor para o fim.

Quem pegasse a parte das bordas tinha vantagem, pois eram mais crocantes que o meio. Como o grande tabuleiro de alumínio tinha apenas quatro cantos, aquelas eram as partes mais concorridas. A disputa era grande quando nós, os três irmãos, estávamos sós. Quando ela estava, porém, distribuía de acordo com o seu próprio critério, com o qual eu não concordava totalmente, mas sua autoridade era inquestionável.

A parte de baixo do pudim ficava consistente e aveludada, com um tom acastanhado suave. Esta contrastava com a firme superfície. Tinha que ser feito de véspera, para estar no seu melhor. Quanto mais frio, mais compacto ficava e podia ser cortado com faca, por isto era preferível ser comido no dia seguinte.

Muitos anos mais tarde, quando fui morar longe e me tornei independente, tentei fazer minha própria versão do pudim, adicionando um pouco de leite condensado, ao invés de leite com açúcar. Também acrescentava uvas passas ao invés de coco, uns cravos-da-índia e erva-doce, para manter parte da identidade original, mas não cheguei a conseguir aquela textura lisa e densa que ela obtinha. Aprendi que em Portugal usa-se somente pão doce na preparação da massa, o que difere bastante da composição que minha mãe fazia. Eles também usam leite condensado ao invés de leite e açúcar, mas além da canela, não encontrei outro tipo de especiarias no pudim de pão português que comi.

Eu era uma espécie de coadjuvante das aventuras culinárias de minha mãe. Ela sabia que podia contar comigo para ajudar, não só na cozinha, mas em qualquer outra actividade. As receitas eram copiadas num caderno especial, que eu devia manter sempre actualizado e com letra bem legível. Também era eu quem a ajudava a bater as massas de bolos e a controlar o tempo de cozimento de receitas novas. Às vezes me pedia para adivinhar qual o ingrediente secreto que ela usava. Era uma espécie de jogo que ela, invariavelmente, vencia, mas eu tinha o privilégio de tomar conhecimento de alguns de seus segredos gastronómicos, que mais tarde passava a adoptar nas minhas próprias proezas na cozinha. Com o tempo fui percebendo que cozinhar tinha uma lógica simples. Uma vez que se aprenda a lidar com as bases, doces ou salgadas, não há muito o que mudar. É a criatividade, aliada à experiência, que faz a diferença. E ela era mestra nisto. Adorava cozinhar e sentia prazer em receber os louvores e os pedidos – sempre atendidos - para repetir a dose.

Guardo belas memórias daquele tempo de inocência. Em algumas ocasiões, à tarde, quando estávamos sozinhos em casa, ela me dizia que estava com vontade de comer “uma coisa boa”. Era um tipo de código entre nós, para que eu fosse à confeitaria, comprar algum doce para o café da tarde.

Recordo-me bem da segurança que ela nos fazia sentir. Era senhora do tempo e das tradições da nossa pequena família. Todos sentados à volta da farta mesa, na ampla e iluminada sala de jantar, muita conversa e bom humor, faziam dos fins-de-semana, mesmo os mais comuns, peculiares por si próprios. Os aniversários das crianças e o almoço de Natal eram ocasiões especiais que uniam o nosso pequeno grupo familiar. Ela era a última a sentar-se e somente o fazia depois de certificar-se que todos estavam bem servidos. Meu pai colocava-se à cabeceira, sempre no mesmo lugar, respeitado por todos e vigiado por ela. A emoção era característica dele. A força, era dela. Os filhos e, mais tarde, as noras e os netos, davam-lhes uma enorme alegria e ela dizia gostar de ver a casa cheia, o que provavelmente trazia-lhe lembranças do tempo de infância, quando o pai e os tantos irmãos e irmãs se reuniam sempre às refeições, respeitosamente. Pelo que eu conseguia tirar das conversas com ela, meu avô era um homem austero e reverenciado pela família, mas era também justo e generoso. A imagem, que ela nos passava dele, era de um homem extremamente sério. Eu não o conheci, todavia - embora ela afirmasse que o “avô Vida” chegara a me conhecer e me dizia, às vezes, que eu tinha muitas semelhanças com o porte físico dele.

O tempo passa depressa demais, sem piedade, apagando algumas memórias, avivando outras. Meus mais que cinco sentidos brincam com meu passado, quase sempre, de forma aleatória, mas coerente com minha história. Eu sempre me impressiono com o cheiro do mar, da terra húmida, das frutas no pomar. Amo o vento sul a soprar com força singular sobre a terra, as pessoas e as construções, a rugir entre as folhas dos cedros e dos chorões, levantando plumas de sementes de dente de leão pelo ar, fazendo redemoinhos à minha volta ou despenteando-me com energia. Aprecio caminhar descalço pela orla ou ficar sentado, por horas, a olhar o movimento das ondas, com os pensamentos soltos na distância. Recordo, com nostalgia, o aroma das laranjeiras em flor, os perfumes da flor roxa e da espirradeira ao anoitecer, da macela-galega dentro dos travesseiros, dos temperos verdes, do cominho e da pimenta-do-reino, da alfavaca no peixe, das ervas no jardim sempre bem cuidado por ela, do alecrim e da arruda, da maçanilha e da melissa, da hortelã e do funcho, do capim-limão e da carqueja.

Sinto saudades daquela época, em que a Páscoa tinha o toque de surpresa e o aroma de canjica, de cravo, canela, erva-doce e coco fresco e também de pão de mel. Dezembro tinha som de cigarras cantando ao levantar do sol e dos “cigarrões” ao crepúsculo ou das de guizo, mais tarde, quando a noite ia adiantada. Dizíamos que o ar tinha cheiro de Natal. Era princípio de verão e o sol avivava o perfume das folhas verdes e do musgo já pela manhã cedo. Em época de férias de fim de ano, ficávamos brincando na rua até tarde, com a turma do morro, a tirarmos vantagem das sombras e da temperatura amena da noite. O vento nordeste sempre trazia o aroma de café torrado no ar. O inverno era marcado pelos pinhões sendo cozidos, lentamente, em panela grande, no fogão à lenha, enquanto um bolo de fubá ia assando no forno e o amendoim torrava na estufa, o compartimento logo abaixo daquele. As partidas de futebol da selecção durante a copa do mundo - quando sentávamos todos sobre a fofa esteira de “taboa”, aberta sobre o chão da sala - eram temperadas com uma grande tigela de pipoca salgada, feita na hora, servidas ainda quentinhas e cujo cheiro enchia a casa.

Hoje sou fascinado por novos aromas, que vou conhecendo aos poucos, nestas andanças de mais de meio século, por terras distantes de onde nasci. A alfazema fresca a crescer nos canteiros, a casca da canela e a fava de baunilha, o café expresso denso e forte, o pão saindo quente do forno, o azeite virgem de oliva, o vinagre balsâmico, o coentro, o alho francês, as pimentas malaguetas, o polvo na brasa e o frango assado na chama, o bacalhau seco, o salmão defumado, as folhas de “maple” caídas no chão de Outono, que me preenchem os sentidos e aguçam-me a imaginação.

***

 “O lugar de vocês é perto de mim.” Aquela mulher pequena, de pouco mais de um metro e meio de altura, que ao me abraçar tinha de fazê-lo por baixo dos meus braços, por não alcançar meu pescoço, me deixara quase sem resposta, apesar da naturalidade com que expressara seu pensamento protector e a preocupação em me ter vivendo fora do país, longe dela já não pela primeira vez. Eu tinha uma vida a viver, uma carreira a seguir, novos desafios a enfrentar e não podia abrir mão de nenhum deles, em função dos medos que ela poderia sentir, todavia. Eu tinha meus próprios riscos a correr. Respeitava o que ela sentia, mas minha independência era meu maior bem, especialmente naquele momento histórico da minha vida. Ela havia seguido sua própria trilha, muitos anos antes de mim, quando deixou o sítio da família pela vida na capital.

Eu não era tão diferente dela, afinal. Meu mundo era, porém, mais amplo que o dela havia sido. Aquele menino franzino, cujos ossos das costelas apareciam, quase perfurando a pele pálida, havia-se tornado um homem – muito mais sólido e independente, que fazia seu voo solo pela segunda vez. Minha rotina, de telefonar-lhe sempre aos domingos, nunca mudou, apesar da distância de um imenso oceano, nos separar fisicamente. Lembro que a última coisa que lhe disse foi: eu ligo na semana que vem.

Embora fizesse todo o possível para pegar o primeiro voo disponível, não cheguei a tempo do funeral e me senti um tanto frustrado com a observação que ouvi, logo ao chegar em casa, de que era “tarde demais”. Eu compreendia a dor, mas aquilo me deixara incomodado, mesmo sabendo que não houve nada que eu pudesse ter feito diferente. Não muito tempo depois, já de volta à minha vida normal, tive um sonho, que mexeu comigo e com aquilo que me importunava a cabeça. Eu via o frágil e pequeno corpo sem vida sendo preparado para o funeral, por umas mulheres conhecidas, sobre um banco de pedra, numa espécie de praça interna, de uma construção de casas. Como não podia fazer mais nada, decidi que era melhor deixá-las sozinhas a concluir o serviço e foi então que lembrei que tinha de sair para pagar uma dívida importante. Ao me dirigir à saída para saldar aquele débito, antes que fosse tarde, meu pai me interceptou e disse: “não tens nenhuma dívida a compensar. Está tudo pago”…

Naquele dia acordei mais leve, como se um grande peso houvesse sido retirado de minhas costas. Enquanto preparava o café da manhã, o pãozinho que jazia no prato, me fez lembrar do pudim de pão. Sentei-me em silêncio, à pequena mesa com tampo de granito escuro. Um aperto no peito me fez recordar dela com imensas saudades… Meus olhos perderam-se na distância, para além da porta aberta da varanda, onde Tiger observava o movimento do pátio, com atenção felina.

Como se percebesse minha angústia, meu pequeno companheiro entrou, sentou-se ao meu lado, dando a tradicional cabeçada em minha perna, chamando atenção para outras necessidades, naquela sua maneira própria de desviar-me, propositadamente, da tristeza momentânea que abraçara meu espírito… Sábio animalzinho...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A Warrior Angel

A blue-eyed angel,
With the smile of a child
And the courage of a warrior,
Comes into my life,
Touches my soul
And warms my heart up,
With words of truth
And sights of beauty,
Which were hidden
Inside an insidious chaos.
This angel bestows me
With broad wings
And teaches me
How to fly
High,
Opening horizons
And sending me
Back
To a world,
Where honesty
Is a light
Shining bright
In the middle of
The shadows
Of deceit
And deception.
His wings glow
In the night
Like the beam
Of a lighthouse,
Leading me on
To safety
Throughout the heaviest storm
And the darkest gloom.
His smile brings me
Comfort
Through the days,
Like the welcome
And warm
Embrace of a friend,
Who comes from a long
And distant journey,
Just to say hello.
This blue-eyed angel
Takes my hands
Tenderly
And tells me
A broken heart
Can always be mended,
 As life is not only made of
One-time cheap emotions
Or sad stories,
But of hope
And bravery,
Which keeps us alive
To face the battles
And the tears
That washed
Our souls and eyes
Away.
My burden becomes lighter,
When this angel
Gives me strength
To let my fears
And pain behind
And to move on
-Ahead-
With my spirit and head
Well hung high…

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Stealing Away...


I wish I could
Once again
Hold you in my arms
And with a single kiss
Steal the sorrow
Away
From your distressed soul.
Trust my heart,
My sweet friend,
To soothe your pain
And agony away;
Let your defenses fall apart,
Let yourself surrender
To my embrace,
And forget any resistance,
Once and for all,
As you will find
Relief,
Comfort
And strength
In the unconditional
And sublime devotion
I have,
Since the beginning,
Offered  you.

domingo, 31 de julho de 2011

Teaser...

There must be a key
That opens a door
-Or, at least, a window-
To cross
The threshold
That leads one
Within that heart
Of steel.
There must be a way
Beyond understanding
That melts
This ice cover away
And shows me
I made no mistake
By fighting my fears
To face the unexpected
Pleasure
Of giving pleasure
To the one I cared for.
There must be indulgence
Beyond silence,
Anxiety and pain,
When I look back in time
And see vestiges
Of the teasing
I used to have
From the one
Who left me with
Nothing else than
Charming memories
Of our sweetest
And most cherished 
Moments together.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

The First Timer


I was standing by the window, looking at the sunny streets outside, when I felt the touch of warm lips on my left ear. I turned around and was welcomed by the sweetest and naughtiest smile I have ever seen and a pair of big green eyes which were - then - playing around with mine.

Thinking we were alone, I looked at those gorgeous and perfect lips and could not help but kissing them. Someone, somehow, saw me doing it and shouted at us indignantly. Other people joined and came after the two of us, who were already rushing off the place and laughing at the same time. We never stopped and although we knew no one would catch us, we just kept running away down the streets and laughing.

We were not really worried, once the only crime we made was letting our emotions run wild, just like our feet were doing at that moment.

When we turned a left corner, after a deep down slope - I woke up.

I opened my eyes feeling completely lost in time and it took me some seconds to realize where I was. There was a fine line of light coming from behind the curtain, not bright enough to tell me the time. I checked the clock at the bedside table. It was still too early in the morning, so I turned around and closed my eyes, but could not sleep again.


I reckon I did not have a good rest that night. I went to bed too late and was still tired. I was too scared for letting my heart and emotion decide over my mind and reason and I was too concerned about the hours to come, so being incapable of relaxing was not the only thing I was uncomfortable with. My mind was not at ease and any unusual noise made me jump up the small hotel bed I was lying in. From the other side of the room I could hear the sound of a light snoring coming every now and then. It was not that awful, I thought, in the end, once it made me feel – at least - safe.


When the alarm clock finally rang, I was already wide awake. In half an hour we were both ready to go downstairs. A few reticent words were exchanged between us – far from what I anticipated this first morning to be like. We left the room like siblings who slept in the same bedroom and did not have much to talk about. I kept my eyesight away from his face for the time being, just for precaution, when we entered the lift on the way down to the hotel restaurant.

Breakfast was almost formal. A good coffee would have to wait until we left the place, as the only available choice was the soluble one from the automatic machine – the option he avoided resolutely. We decided to have a fine and decent cup of coffee down at the city square, under a parasol, out in the dry and fresh air of springtime. That nice dose of proper caffeine made me feel a lot better.

Then we walked… A guide to the city was the present I was given. The main subject was always the place, the history, the past. His favorite spots were just what I expected them to be. I was not surprised at all by the fact that we had so much in common in our preferences. With time, I also noticed we had a lot in common in other terms…

When I felt a bit more comfortable, I started talking about myself as well. For some unknown reason, the place looked familiar to me and I made a comment about that. We both laughed over my nonsense, although I had a light impression of being back home, while walking the city streets.

Preferred sites, sunny lanes and boulevards, shady parks, the architecture of the buildings, his memories coming to illustrate our conversation – it was all kind of novelty to me, with a flavor of impracticality and weird melancholy, both still unsettling my mind. I felt like I was out of time and space, in spite of the apparent resemblance with places I have been or seen before.

At lunch we talked business - seriously. That man had his homework well done, but I realized it was not business I was really interested in - at all. Then we strolled around out in the sun again for hours, through more familiar streets and places of interest.

***

“…And do you still want that?”

I could not look directly to the eyes of the person who brought that issue up to the conversation, after my mentioning we had done two out or three things we proposed ourselves to do when I left home for that peculiar meeting. The main topic, for me, had been avoided all day long up to the minute he asked me the question.

I said ‘yes’, although I was feeling disturbingly sad and tired. I was led to what I believed to be a waste and was not quite pleased with that. A highly expensive cup of coffee – that’s what I thought it was. My mind and my body were entirely and unquestionably worn out.

When we got back to the room I felt a desperate need of a fresh shower, as I was feeling hot and weary and knew it was not only for having walked out in the sun for hours. It worked out fine though to calm me down a bit. There is nothing better than a good shower to feel alive again, I thought.

My heart was telling me my expectations were not solid enough to make anything I anticipated in my mind to happen anyway, so I put the TV on the music channel and started creaming my sore feet up, while he had himself taken his turn in the shower. It was then that I remembered I was walking almost non-stop for two whole days… and with the same pair of sneakers… They were kinda filthy, so I put them away from me. Fortunately I brought my new comfortable flip flops, the only real soothing I was about to feel – or so thought I.

I tried to remain cool and impassive when he lied on the bed next to mine. Pretending I was still watching TV, while he browsed through channels, I was attracted by the sight of his feet - the most beautiful pair I had seen in ages. I could not take my eyes off of them. I sat down and asked if he wanted some foot gel to refresh. Although the answer was ‘no’, I decided to apply the ointment myself, anyway, finding no resistance by any means from his part. I took some time giving myself the pleasure of providing him with some satisfaction with that massage. His skin was extraordinarily soft and I acted as if applying the soothing gel on his tired feet was the most natural thing to do.

I noticed those bright green eyes were set upon my seriousness with a mix of curiosity and fun. When I finished both feet, I glanced at his disguised smile and felt like a beginner – inexperienced, insecure and awkward at the same time.

‘What a shame!’ - I thought to myself, a little embarrassed and looking away from his face… - ‘He is making fun of me’.

***

“Do you still want it?” I raised my eyes back to his. “Look at me… I’m ready”…, he said.

But how?, I asked, smiling shyly, a bit surprised and a bit lost by the evidence he showed me.

“I don’t know… I just am”… He made a pause, whilst studying my clumsy behavior.

“What do you want to do?”

He was defying me. His eyes were still laid down on my face. I, for that one time, did not know exactly what to do and he noticed my uneasiness. For a moment I had forgotten it was his irresistible teasing that attracted me to that adventure… and he was doing that - to me - again. A first timer – that’s what I thought I was.

“What do you want me to do?” - I asked almost inaudibly.

“Touch me”, he whispered.

“How would you like me to touch you”…?

"Just touch me”, he answered in an even lower tone of voice.

And I did. I touched light-handedly his small and beautiful face, his muscled torso, his strong legs - feeling the soft hair in between my trembling fingers and - then and again - his perfect feet. He closed his eyes and moaned lightly. I turned his body around and started massaging his back, his legs - his whole body - slowly and tenderly.

I just wanted to feel him and wished all the gods of time would make those seconds last forever. They would not, however, hear my prayer…

I kissed the soft skin of his neck, then his back and his neck again and again and again… He just heaved a loud sigh when I whispered behind his ear how much I liked him. He was ready for me long before I started touching him, but that was more evident when I turned his amazing body around again. It was then that I decided to give myself in to the moment, entirely inebriated by the sweet-salty taste and flavor of that man. I felt as if he was yielding himself to my lust, opening his heart and letting me explore his senses and his perfect and lean body without any restraint.

When his muscles tensed, ready to surrender to what that single moment in time was taking out of him, he let a louder groan come out and I knew it was the right time for me to provide him with what I would like to be a cherished reminder of that meeting. He let himself go like a boat sailing freely through warm and unknown waters. He submitted his entire being to my caresses, to the touch of my hands and lips, as if there was no tomorrow, nor yesterday – just that brief present in the – now - past.

His low moan transformed into a louder wail, when he lost grip of his control and finally gave in to the sensation of pleasure he said he had never had previously in his life.

When he took his turn, I decided not to fight against the unavoidable…

***

“Are you still looking at me?” He asked through closed eyes and with a naughty smile decorating his sweet and now relaxed face.

‘Uhum’, I groaned, smiling tenderly, without turning my eyes away from him. In fact I was not only looking at him… I was quietly admiring his astonishing beauty, while a song was playing non-stop in my head and saying everything, although he could not hear it from where he was:

“I can’t take my eyes off of you; I can’t take my eyes off of you; I can’t take my eyes off of you; I can´t take my eyes”…

And how could I, after the declaration that he had never felt that “horny” anytime before?

That song was still playing in my head and went on indefinitely:

“I can’t take my mind off of you; I can’t take my mind off of you; I can’t take my mind off of you; I can´t take my mind”… (The Blower’s Daughter)


Hours before I was fighting against myself for having made that choice. We had avoided the main subject for too long and he knew I was being extra careful, when I surrendered to his plea and answered the question I was refraining from responding not for the first time that day. He was trying me to see how far I would go.

Not too long afterwards I was rendering myself to his beauty and the perfection of his body. That small man had me all wrapped up in his web, like a fly caught inadvertently by the patient and clever spider.

I kept on staring at his wonderful features until I fell asleep, exhausted… but glad to be there.

***

“You’re always thinking so much and saying so little”. He said that from the other side of the table where we were having breakfast the morning after.

How could I possibly say anything, if my heart was so discomforted, as if an immense rock was afflicting my chest, like a difficult burden to carry? How could I say that what I wanted was being in the arms of someone who did not feel the same for me? At least that was what I assumed, from the silence and slight distance that followed the happenings of the night before. Somehow he was mysteriously quiet - sometimes facing me with a funny look, sometimes avoiding my eyes. He was not anymore the fun-teasing man I thought to meet and who amazed me some hours before.

Then, as if moved by some strange reason only he knew, he started talking, almost casually. He spoke little, but surprised me with things I was neither expecting nor comforted to hear. That young man, sitting opposite to me, was bitter, distressed, disappointed in life. His sadness dumbfounded me and broke my heart into more pieces. I was asking myself, while looking at him in nearly complete awe: where is the man, who surrendered himself to boundless pleasure last night? Where is the man who made me fall head over heels for him and now is refraining from allowing me go back there again, by saying those sad things to me? Is he afraid of having his heart broken? Does he know how many times can a heart be broken or will he give up and lock himself up before finding out? I could just keep myself quiet, paying careful attention to him, feeling my soul going deep in sorrow for that young man, who seemed to have had his hope lost by circumstances he could not have much power over… Listening was the best I could do that time. He wanted to talk and I was there - to hear. In a way, he was opening those secrets to my ears, showing some trust to the one person sitting at the breakfast table with him.

***

He was lying in his bed with his back turned to me, pretending he was not aware I was looking at him again. We did not speak much after leaving the hotel restaurant. I was still trying to digest the breakfast and the conversation we had during it. I knew no similar opportunities would be repeated and I felt there was an uneasy and heavy atmosphere set between us… Oh, God, how I wished to be in his arms again, but he never gave any signal he would let me… Giving myself finally up, I kissed the top of his head and asked, in a whisper, ‘why do things have to be this way?’

“I don’t know”, he said.

Nothing else was said… It was time to go back to our lives and we knew it.

***

“I did not expect you to like me that much. You know when you’re being touched by someone who cares so much about you. And that makes a big difference”…

Did I detect a slight faltering in his voice or was it my impression? I could not say for sure, as I was too affected by the moment to distinguish any foolish or unwelcome emotional reaction coming from his lips. Maybe he was fighting against feeling poignant or showing any weaknesses to me. He was always so full of himself - so strong and self assured - that it was probably just my imagination, I assumed.

He said that as if he was reporting a fact, pretending it was just a normal statement, trying to hide any emotion away from that moment, with his low and gloomy voice. I have to confess I was surprised by his words. Then he looked so very serious, not looking at my eyes with his big green ones – the eyes I could not ever read properly.

I was busy fighting the knot which was tying slowly around my throat and the tears which were jumping from my eyes uncontrollably. I did not look at his face either. I could not say anything, just kept eyeing the photo of a paradisiacal beach on the panel decorating the almost empty waiting room where we were sitting in.

The silence weighted heavily on both of us for what it seemed like centuries. I was torn, insecure, tired, distressed… the only thing I could do was trying to smile, sadly – an enormous effort to control the frayed emotions which were ripping my soul apart that warm and sunny afternoon.

“What is it you’re thinking about now? You never tell me what goes on your mind. You just look at me, as if you are going to say something, but you never do”…

His statement was true. I had so many things to say, so many questions to ask, so many declarations to make… I was not ready – however - to talk about them, so I said: “But you don’t either, my friend”…

He smiled – defeated - and we closed the issue with no further unnecessary comment. We have spent two days being economical in the words related to what we felt. Acting as if exposure was dangerous to our sanity or image, we both knew, deep inside, that we were being too cautious to express what was going on in our minds and senses.

Was it fear of showing weakness or was it panic that we could make one run away from another in absolute fright? I could never know how to explain that…

***

I was sure that it was more a “goodbye” than a “see you soon”, when he departed without looking back. I did not look back either. When I got inside the airport building again, I took the small mp3 player out of the pocket and tried not to think about anything else, although I knew that would be impossible for many reasons.

A song started playing as soon as I entered the waiting room and I had to hide my face on my chest, so no one could see my eyes watering again. Life was cruelly playing with my heart, making me burst inside, breaking me into painful pieces, while the singer kept on and on, with his harsh voice, shattering my soul into small portions, which could never be put together one more time… little by little, making me want to disappear, struggling to pull me through back again:

*…”Silence is a heavy stone.
I fight the world and take all they can give
There are times my heart hangs low
Born to walk against the wind
Born to hear my name
No matter where I stand I'm alone.
Stand and fight
Live by your heart
Always one more try
I'm not afraid to die
Stand and fight
Say what you feel
Born with a Heart of Steel”…

*(Heart of Steel – Manowar)

***

Weeks of silence followed. Was he scared or disappointed? My mind let my reason overcome my feelings and I decided to accept the circumstances I was left with. It was a mistake… a big mistake, I said to myself. There would never be another chance. There would never be another anything… Left on my own, with the memories of a unique and only encounter, allied to my solitude, I cried - in profound sorrow - alone in the darkness of the bedroom. We never got in contact again…

I now ask myself if I wanted more from that - and thinking coolly, I come to the conclusion that I certainly did. Maybe he was not ready to give me anything further than he did or perhaps I was just expecting too much, when I left home on that sunny Friday morning to a chancy adventure with a cute stranger.

There is one thing now I can say for sure, however. He left me with something no one will ever take away from me: the sweet and live reminiscences of those two days, which will be in my mind… forever… and I will be grateful to him for those ‘mementos’ for as long as I may live…

Smiling sadly to myself, I bring the recollections back from those beautiful hours together, when I felt as if my soul was an immense ocean and his river soul came winding down through stony and curvy paths, merging into my waters, making him lose himself for a while, becoming one with me, for at least one brief and sweet moment – the one when I felt special like no one else has ever been.

Our special meeting lasted just that one short and delightful instant in time. It was so right and for such so right a time… My heart has certainly turned into a better place, thanks to that charming and lovely man… but - oh, Christ - I still miss him so much…

terça-feira, 31 de maio de 2011

Simbiose (Versão Oficial)

Às vezes, ele me olha fixamente, me abraça, me beija e conversa longamente comigo, mesmo sabendo que a minha mente funciona muito diferente da dele.

Nossa relação é de cumplicidade, quase uma simbiose. Ele depende da minha companhia, eu dependo dele para sobreviver, embora creia que em estado selvagem - eu nasci em África, afinal - eu possa me virar bem. Ele cuida de mim e eu velo por ele. Faço-lhe companhia sempre. Dou-lhe atenção quando quero ou quando vejo que está precisando. Ele sempre está pronto para me dar atenção, mesmo quando quero ficar sozinho, mas tento ser condescendente e paciente com este homem, para receber minhas compensações mais tarde.

Eu sei quando ele está para chegar em casa. Sinto a sua presença, apenas por instinto, mesmo antes de ouvi-lo ou vê-lo entrar pela porta. Ele conhece meus passos, percebe quando estou por perto e, além de me fazer carinho, com frequência, ainda me faz as vontades. Sabe, também, quando eu entro no quarto, à noite, para pedir um “cheiro”na cabeça e deitar-me ao seu lado. Claro que só faço isso depois de dar uma boa vistoria na casa, pois ele se limita a fechar as portas e apagar as luzes. Alguém tem que cuidar de tudo por aqui, com mais responsabilidade, afinal não é somente a segurança dele que está em jogo.

Sou curioso e diligente. Minhas extravagâncias e rotinas são evidentes e as dele também. Pela manhã, assim que saímos da cama, vamos directos ao banheiro. Gosto de deitar-me no tapete fofo, enquanto ouço a água do chuveiro a escorrer, um som que me fascina. Depois é hora do “desjejum” – do dele e do meu. Nos fins-de-semana, esta sequência muda, estrategicamente, para que eu perceba que vamos ter mais tempo juntos.

Não mexo em nada que não seja meu. Não toco em comida, a não ser que me seja dada, mesmo que eu esteja próximo de um prato feito... para ele. A minha dose vem num pratinho exclusivo ou na minha tigela de ração – também exclusiva.

Não gosto de ver as coisas fora do lugar e me acostumei com aquela sua mania de organização. Roupa suja tem que ser colocada no cesto. Se alguma coisa aparece fora do seu devido lugar, eu paro e fico olhando para ele até que conserte o erro. Minha caixa de areia tem que estar sempre limpinha. Eu aviso assim que acabo de usá-la e, assim que ele a deixa limpa e disponível, vou lá verificar se não ficou com resquícios de cheiros inconvenientes.

Não costumo procurá-lo pela casa, apenas o chamo (ele conhece meu miado especial para isso!) e sigo o som de sua voz, assim que me responde. Assim poupa-me o trabalho de ficar entrando em cada aposento, para ver se o encontro. Faço isto para garantir que não vou ficar só, desavisadamente. Aliás, ele sempre me deixa saber quando vai sair, de todo jeito. Por outro lado, também preciso de sossego e ele respeita estas minhas necessidades de silêncio e tranquilidade. Portanto, se eu colocar meu “manto da invisibilidade” e desaparecer das vistas, é porque não estou disponível. Se ele ficar me chamando, só vou me revelar novamente - se e quando - eu quiser e tiver vontade. No caso, eu chego bem quietinho e fico olhando, só para ver quão ridículo ele parece, a ponto de quase desesperar, por não me ver por perto. Imagino que ele tenha medo de me perder…

Ele pensa que pertenço a ele, mas no fundo, sabe que é o contrário. Quem dita e conduz todos os horários aqui dentro de casa sou eu mesmo. Luzes acesas depois das onze da noite, TV com o som alto, ficar na cama depois das sete da manhã ou dormir no sofá até tarde, são coisas intoleráveis, que eu trato de garantir que não me escapem ao controlo. Refeições nos horários certos, especialmente nos fins-de-semana, são essenciais e eu cuido bem para que esta regra seja cumprida. Minhas horas de sono são sagradas, por isso quando estou a lamber o pêlo, estou-me preparando para uma boa e revigorante soneca. Se me atrapalhar ou me despentear por algum motivo, tenho que recomeçar o trabalho desde o início… Claro que eu deixo evidente que isso me incomoda e… bufo, pois goste ou não, é a forma de manifestar meu descontentamento. Ele sabe que levo horas a me embelezar, afinal…

Quando quero algo, sou insistente. Na maioria das vezes ele cede, depois de algum tempo. Se encostar meu focinho na perna dele e empurrá-lo, significa que estou com fome. Se fico de barriga para cima, quero massagem. Se vou cutucá-lo no sofá, está na hora de me recolher e ir para a cama. Não gosto de portas dos guarda-roupas fechadas, nem das dos quartos e banheiros, por isto faço questão de pedir para abri-las. Quando fico sentado perto da porta de saída, quero dar uma voltinha lá fora. Ele sabe disso. Só me faz restrições ao tempo que fico no corredor e escadas e, também, ao barulho na frente das portas dos vizinhos.

Quase não brigamos, mas quando eu estou de mau humor e o ataco, ele fica chateado e me dá broncas, mas estas não são muito sérias. Somente quando eu fujo pela varanda e entro, pela janela, na casa do vizinho, é que ele fica, mesmo, muito irritado e me põe de castigo. O castigo é uma greve de fala e de atenção. Fico incomodado quando ele faz estas greves. Tento de tudo para que ele me desculpe e para que aquilo dure pouco tempo, mas ele é turrão, quase tão teimoso quanto eu. Eu sei que ele sofre com isso, também, porque me diz, quando pede desculpas e fazemos as pazes.

Aprendi a lidar com ele e ele aprendeu a ler minha linguagem e compreender minhas vocalizações, quase sem erro. Associo palavras que ele usa, com minhas atitudes. Sei responder ao meu nome, reconheço quando menciona a palavra comida, associei o convite ”vamos tomar café?” a ganhar uma colherada de iogurte e sei quando me chama para deitar e dormir. Gosto de tomar água directamente da torneira, mas ensinei-o que puxar-lhe a mão lamber-lhe as gotículas na sua pele molhada, mostra que quero que me sirva da mão em concha. E ele compreende perfeitamente. Algumas vezes tenho que ser mais óbvio ou não consigo passar minha mensagem, mas isso acontece somente quando ele está distraído.

Tenho meus dentes escovados duas vezes por dia. Pode parecer estranho, mas eu gosto – não somente do sabor da pasta de dentes, mas de ter alguns momentos dedicados só a mim. Na maioria das vezes, obedeço ao pedido dele para sentar-me, pois do contrário posso cair de cima do móvel da pia do banheiro. Eu o deixo fazer a operação com calma, sabendo que no fim vou ganhar mais um pouquinho daquela delícia. Depois, ele verifica e limpa meus olhos e nariz com o cotonete, me dá um cheiro na cabeça, um abraço e diz-me, logo em seguida, que estou lindo. É bom ouvir isso de vez em quando… Sei que sou simpático, mas ouvir que sou lindo é muito melhor…

Não tenho aversão a banho, desde que a água esteja na temperatura certa e que venha em chuveiradas gostosas nas minhas costas e barriga. Até gosto. Ele me esfrega o corpo com shampoo e com delicadeza, do contrário eu reclamo. Não fujo do banho, mas não suporto ser enxuto com a toalha. Gosto é de ficar ao sol, secando ao natural, usando meus próprios recursos, mas quero que me escove, de tempos em tempos. Aliás, a escova é um prazer ao qual não abro mão. Se ele esquecer, vou atrás e protesto. Ele acaba se divertindo com isso. Meu pêlo ganha um brilho extra e cheirinho de limpeza. Mais uma razão para ser chamado de bonitão.

Gosto bastante de música, mas nem de tudo que se ouve nesta casa. Ele conhece minhas preferências e fez uma selecção especial de canções com melodias mais harmoniosas, que eu reconheço assim que começam a tocar. Costumamos ter nosso espaço e tempo exclusivos para curtir. Aos domingos à noite, especialmente, enquanto ele passa as roupas a ferro, deito-me por perto, ouvindo àquela sequência, em silêncio, até que termine sua tarefa e chegue a hora de nos recolhermos.

Desconfio logo quando percebo certos movimentos estranhos. Se o vejo com a mala nas mãos, deito-me por perto, quieto e triste, deixando evidente que não aprecio o facto de ele viajar. Quando vai trabalhar é uma coisa muito diferente, pois eu sei que à noite, quando chega, mesmo que seja tarde, vou ter toda a atenção que mereço. Mas quando viaja, nunca sei se aquela situação vai me deixar sozinho por dois dias ou três semanas a fio... e isto me deixa desconsolado. Claro que quando ele volta, eu fico contente, mas deixo sempre manifesto meu desagrado. Faço meu teatrinho particular, que ele já conhece e aceita, dedicando-me tempo e carinho extra. É isto mesmo que quero… Ele tem que pensar que, se me acontece algo, tenho que ter quem me socorra, imediatamente. Será que ele percebe que eu preciso dele, cada vez mais, por perto?

Eu sou um sénior agora (somos, ambos, para falar a verdade). Tenho necessidades diferentes e careço de mais cuidado. Meu tempo com ele é precioso. Ele parece ter-se dado conta disso, quando conversou comigo hoje. Eu o vi lendo algo a este respeito recentemente. Não sei se ele está, de alguma forma, preparado para quaisquer eventualidades. Sei que faz pouco sentido ter expectativas que vou viver tanto quanto ele, mas percebi que chorou quando falou sobre isto. Aliás, tem chorado bastante ultimamente. Quando chora, este lugar me parece tão imenso, tão desolado… Quando ele parece desabar, eu tento permanecer firme como rocha. Então me aproximo, olho nos seus olhos e espero até que a coerência volte, que se recomponha e me diga que está bem. Às vezes até me pede desculpas, por parecer estúpido. Não sei se compreendo o que se passa, mas mesmo assim, mostro que estou ali para o que der e vier, se for necessário. E ele parece contentar-se com isso.

Eu gosto quando me olha com afeição, o que acontece quase sempre. Me faz sentir amado, mimado e especial. Eu sei que ele estima a minha presença, a forma com que eu o saúdo - com uma leve cabeçada - e minhas demonstrações de carinho, porque me dá indicações de que se regozija com isso.

Ele ri. Ele sempre ri. Às vezes apronto alguma, só para ouvir a gargalhada dele. Quem o ouve,  deve pensar que é louco, mas não o vejo muito preocupado com isso. Acho que isso o diverte, ao invés de incomodar.

Somos independentes em termos de relacionamentos com outros, mas somos muito apegados entre nós. Sei que ele fala muito a meu respeito. Deve ser por gostar tanto de mim. Gosto quando ele me escova a cabeça e o corpo, me faz massagens, deita sua cabeça sobre a minha ou quando me pega no colo e me abraça ao chegar em casa. Às vezes dança comigo de rosto colado. Gosto de acomodar-me sobre a sua barriga, enquanto ouvimos música ou assistimos à TV, deitados no sofá. No inverno, é mais agradável ainda, pois usufruo do calor de seu corpo. Ele, então, diz que me ama. Eu, em resposta, recito meu “mantra” - um ronronar contínuo - que lhe abranda as preocupações e o faz adormecer. Isto também acalma e atenua minhas tensões. Chego a cochilar ali, bem confortável e aquecido, sabendo que sou bem-vindo e tenho um lugar sempre disponível junto a ele. Só não gosto quando fica várias horas na frente do computador e me dá menos atenção que estou habituado a receber, mas na maioria das vezes ele pára e me dá alguma. Se não, eu sento-me sobre o teclado. Não há como não perceber que já passou tempo demais sem me dedicar algum…

Em termos gerais, minha vida é bem tranquila e sou bem tratado e respeitado. Não tenho acessos de ciúme, pois não tenho motivos para isso, por enquanto. Minha veia possessiva é, porém, bem acentuada e lembro bem que já mostrei quem pertence a quem, quando tive que o fazer. Ele está dentro do meu domínio, portanto me pertence... e ponto final! Nem que eu o tenha que "marcar" como parte do meu território!!!

Bom, agora que já me penteei, vou deitar-me sobre o meu tapete favorito. Minha barriga está cheia e vejo que ele está ocupado com alguém no computador. Minhas músicas favoritas estão tocando e vou relaxar um pouco, até a hora de ser chamado para escovar os dentes e ir para a cama, nossa rotina nocturna, que eu controlo com maestria. Amanhã sei que vou ganhar meu carinho habitual e minha porção de atum, que eu adoro comer quando ele está em casa, na hora do jantar… a não ser que faça um bom peixinho assado e divida comigo… Hummm… O amanhã promete!

Ah, antes que esqueça: meu nome é Tiger…

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 2

Um fim-de-semana fora da cidade deixaria os amigos distantes de olhares curiosos e de interferências indesejadas. Joe parecia querer manter as expectativas baixas, mas no fundo sabia que era-lhe praticamente impossível. Ela vinha sendo adorável naqueles dias e era-lhe difícil mostrar indiferença ou pouco interesse, apesar dos esforços em parecer casual. Já começava a perceber uma sensação conhecida invadir-lhe a alma. As borboletas que esvoaçavam em seu estômago eram apenas um prémio extra – uma compensação.

Como era a primeira vez que teriam dois dias completos somente para eles, saíram cedo, antes de o sol nascer. Não tinham de ir muito longe, mas não conseguiam controlar a ansiedade. Desejavam aproveitar tudo que aqueles dias pudessem lhes oferecer e os momentos que passariam juntos. O sol começava a tingir o céu em tons de vermelho e alaranjado quando eles chegaram ao lago – uma visão de encher os olhos, a aquecer-lhes a alma, apesar do ar frio da manhã.

 O tempo não parou. Passou rápido demais, na verdade. Eles estiveram unidos, mais que apenas fisicamente, por um laço que parecia inquebrável. A jovem mulher sentia-se especial nos braços do amante. Joe deixava-se perder no olhar cristalino e no corpo deliciosamente morno e esbelto dela. Por alguns momentos a vida pareceu assustadoramente perfeita…

Já de volta à cidade, no domingo à noite, decidiram parar no Café, para fechar o fim-de-semana da maneira mais perfeita possível, na concepção deles. Estavam ambos com o astral alto, rindo com espontaneidade e sem vontade de esconder quão bem se sentiam naquele momento. Não perceberam o par de olhos que os vigiava ao entrarem e sentarem no lugar usual. Ela fez um sinal ao rapaz do balcão, para que tocasse sua música favorita. Ele sorriu, diante da subtileza do gesto, quando os primeiros acordes da canção começaram a preencher o ar do Café.

A voz levemente rouca e sedosa da vocalista repetia: …”let me do the ‘B’ part, please… oh! Please”…* (Hess is More - Yes, Boss)

Joe pensava que talvez fosse, mesmo, tempo de passar para uma fase mais adiante no relacionamento deles e olhou-a directa e profundamente nos olhos. Ela não conseguiu deixar de enrubescer, ante o olhar magnético dele e estendeu-lhe a mão, nervosamente, enquanto um arrepio lhe passava pela coluna. A sensação era estranha e não combinou com o momento, mas ela deixou-a passar.

Aquele homem observava-os, com cuidado de não ser notado, por detrás do copo de água tónica, temperado com rodelas de limão. Levantou-se, foi até o caixa e pagou a conta, saindo logo em seguida. Os dois amigos estavam fechando a conta com a garçonete, quando ele cruzou a porta e mergulhou na rua escura.

Lá fora, o ar frio da noite de Outono obrigou-o a levantar a gola do casaco. Conhecia-lhes os hábitos suficientemente bem para saber que caminho tomariam. Embrenhou-se no beco e esperou. Sabia que se separariam quase que imediatamente após chegarem perto de onde espreitava. O jogo corpo a corpo seria mais fácil quando a vítima fosse pega de surpresa, pois não teria tanto tempo de reagir ou de se defender. Ele sentia-se como um predador. Assim como os animais, estudara os hábitos de sua presa e sabia qual a melhor estratégia de ataque, para ser mais eficiente.

A hora chegava devagar, mas ele não tinha pressa nenhuma. Saboreava os segundos que antecediam o ataque, sentindo um crescendo de emoções. Quase já nem precisava pensar. Era uma máquina que atingia o momento certo de operar – no ponto da melhor eficiência. O botão de partida havia sido accionado. Era chegada a sua grande oportunidade. Pobre vítima…

***

Joe caminhava sozinho, com seus passos ligeiros. Acabara de se despedir da amiga e sentia-se satisfeito e um pouco ansioso, até. Desta vez, queria que fosse diferente. Seguia pelo caminho que fazia automática e rotineiramente. Não precisava pensar muito, para chegar em casa - bastava seguir seus pés. Seus pensamentos estavam, na realidade, em outro lugar, em outra situação. Ele sorria, quase que secretamente. Era evidente que sua mente estava bem distante dali. Seus pensamentos iam soltos, carregados pelo vento da noite.

***

A jovem mulher seguia a rota conhecida, rumo ao seu apartamento. Seus pés moviam-se leves por sobre as pedras duras e frias das calçadas. Naquela noite pareceu-lhe que podia ser feliz. Apesar de sempre ter sido cautelosa em seus relacionamentos anteriores, a vida parecia que lhe dava novas chances, que ela valorizava, agora, de uma maneira peculiar. O homem com quem passara o fim-de-semana era especial e ímpar. Ela experimentava uma sensação distinta. Sentia-se, depois de muito tempo, amada. Era como se aquela menina, que lutava por sobreviver em seu peito - depois de sufocada por algum tempo - rejuvenescesse.

***

O vento soprava as folhas secas pela ruela semi-iluminada do beco. Quando passou pela face mais escura, não percebeu que estava sendo vigiado. Não percebeu um homem de casaco cinza se aproximar por trás de si. Não conseguiu reagir ao ser puxado pelo ombro com violência estudada. Não viu que a caneta em seu bolso fora arrancada com precisão e, num golpe certeiro, a tampa removida e a ponta de Irídio transformada em arma letal, cravada em sua jugular.

Só percebeu mesmo, antes de cair, que o homem sorriu e disse, com um certo sarcasmo na voz grave e rouca: “Adeus, Joe Hardy… Nos vemos no inferno”.

Sentiu um frio na coluna e uma sensação estranha de enfraquecimento, enquanto o sangue fluía solto de seu pescoço. Colocou a mão sobre o ferimento, mas a luz apagou-se muito rapidamente, enquanto ele caía sobre as pedras frias do calçamento, com uma expressão de assombro estampada no rosto... E não sentiu mais nenhuma dor.

***

Uma ambulância passou em alta velocidade, com as sirenes ligadas, profanando o quase silêncio da noite fresca. Ela sentiu um desconforto no peito. Uma angústia passou-lhe pela alma, o que lhe pareceu estranho, pois estava se sentindo animada, depois do fim-de-semana que passaram juntos. Mas ela confiava na sua intuição. Algo não estava certo…

Para desfazer-se da má impressão e do desconforto que instalou-se em seu peito, resolveu voltar atrás e seguir na direcção da casa de Joe. Precisava ter certeza que tudo estava bem e queria partilhar seu receio com o amigo. Precisava ter convicção que era apenas uma má impressão, nada mais que isso….

Ao reaproximar-se do Café, uma fisgada de dor atingiu-lhe em cheio, como se fosse ferida pela ponta duma lança envenenada. Ela olhou para a parte escura do beco e viu um corpo de homem caído na penumbra. A princípio achou que era um bêbado, mas seus olhos perceberam algo mais. A roupa do homem caído era-lhe familiar...

Não teve dúvida nenhuma ao correr na direcção do homem caído no chão de pedra suja, já puxando do bolso o telefone e sentindo lágrimas de dor brotarem descontroladamente de seus olhos. Mal conseguiu digitar o número da emergência, com seus dedos trémulos e clamar por socorro.

Ajoelhou-se junto ao amigo e, ao virar o corpo, viu um bilhete escrito a sangue, saindo do bolso da camisa do amigo já inconsciente. Abraçou-o, desesperada e, na sua impotência em reparar a situação irremediável, enterrou o rosto no ombro do homem ferido e chorou copiosamente, sem sentir vergonha nenhuma de ser vista naquela posição. Mal percebeu a pequena chave, saindo para fora do bolso da camisa, pendurada num cordão pardo, daqueles que se usa atado ao pescoço…

***

O homem de casaco cinza escuro afastou-se do beco, sentindo uma espécie de onda de calor, já conhecida, percorrer-lhe o corpo. Sirenes, ao longe, anunciavam a vinda da ambulância ao local e pessoas começavam a olhar, curiosas. Seguiu, sem pressa, com naturalidade e sem olhar para trás, para não levantar suspeitas.

Havia-se livrado de um ‘serial killer’ ordinário e sentimental, porém extremamente prudente, que investigava por longo tempo. Muitas mulheres haviam sido suas presas, após serem envolvidas em uma cuidadosa artimanha afectiva. Sua mente era perversa e paciente. Fazia suas - por assim dizer - vítimas, se apaixonarem por ele e depois de muito envolvidas sentimentalmente, escolher um souvenir de cada uma delas, para ser a arma do crime. Após o acto haver sido consumado, o algoz guardava os pequenos objectos, cuidadosamente, ainda manchados do sangue de suas amantes. Sabia-se, também, que as mortes aconteciam durante o acto sexual. Talvez por piedade ou algum sentimento menos pérfido, porém, não parecia haver vestígios de tortura.

O que fazia um homem se envolver com aquelas mulheres e depois matá-las da forma que ele fazia? Seria o assassino movido por algum delírio ou por um surto de esquizofrenia? Porque guardava lembranças de suas vítimas, como se quisesse recordar dos momentos vividos com elas? Estas eram questões que jamais teriam respostas. Ele nunca saberia o que movia a mente daquele homem que acabara de matar.

O que ele tinha, como certo, naquele momento, era que até mesmo os criminosos mais calculistas e frios podiam ser previsíveis. Uma pequena distracção - desatenção, talvez - foi o que bastou para condenar o assassino. Teria ele, finalmente, se apaixonado e se tornado descuidado? Ou teria o excesso de confiança lhe subido à cabeça? Fosse uma ou outra razão, nunca se saberia… e tampouco importava naquele momento. Joe Hardy havia cometido um erro, que lhe custara a vida – nada mais que isso…

Ainda lembrou, com detalhe fotograficamente admirável, como os olhos esverdeados do homem se arregalaram, ao ser surpreendido pelo golpe da ponta metálica de sua própria caneta. Ele havia usado a mesma técnica que sabia que o assassino usava: atacar de surpresa e, depois, guardar um souvenir da vítima consigo. O bilhete, escrito com o sangue da vítima, havia sido o pormenor mais subtil e sádico da história. Era o seu próprio detalhe de “requinte de crueldade”, que aprendera em tantos anos de “serviço à comunidade”, avaliando crimes hediondos. Sentiu orgulho de haver pensado naquilo, no pouco tempo que esteve junto ao corpo. Sorriu para si mesmo, sentindo-se vitorioso…

Aprumou a gola do casaco surrado, para se proteger do frio e saiu, pensando em como tinha sorte de não se relacionar com ninguém há muito tempo. As emoções deixam as pessoas vulneráveis e à mercê de oportunistas. Ele, porém, tinha que manter o sangue frio a todo custo…

Ainda tocou de leve o bolso, onde a caneta manchada de sangue aparecia ostensiva - embora discretamente - e desceu as escadas que o levariam à estação do metro. Agora, pensou, precisava fazer um relatório aos seus superiores. Havia cumprido a sua parte. Sua promoção estava sobre a mesa do chefe e era garantida, caso conseguisse fechar aquele caso de uma vez por todas…

‘Missão cumprida’, pensou e desapareceu no meio da multidão, que se dirigia aos corredores de acesso às plataformas.