segunda-feira, 23 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 2

Um fim-de-semana fora da cidade deixaria os amigos distantes de olhares curiosos e de interferências indesejadas. Joe parecia querer manter as expectativas baixas, mas no fundo sabia que era-lhe praticamente impossível. Ela vinha sendo adorável naqueles dias e era-lhe difícil mostrar indiferença ou pouco interesse, apesar dos esforços em parecer casual. Já começava a perceber uma sensação conhecida invadir-lhe a alma. As borboletas que esvoaçavam em seu estômago eram apenas um prémio extra – uma compensação.

Como era a primeira vez que teriam dois dias completos somente para eles, saíram cedo, antes de o sol nascer. Não tinham de ir muito longe, mas não conseguiam controlar a ansiedade. Desejavam aproveitar tudo que aqueles dias pudessem lhes oferecer e os momentos que passariam juntos. O sol começava a tingir o céu em tons de vermelho e alaranjado quando eles chegaram ao lago – uma visão de encher os olhos, a aquecer-lhes a alma, apesar do ar frio da manhã.

 O tempo não parou. Passou rápido demais, na verdade. Eles estiveram unidos, mais que apenas fisicamente, por um laço que parecia inquebrável. A jovem mulher sentia-se especial nos braços do amante. Joe deixava-se perder no olhar cristalino e no corpo deliciosamente morno e esbelto dela. Por alguns momentos a vida pareceu assustadoramente perfeita…

Já de volta à cidade, no domingo à noite, decidiram parar no Café, para fechar o fim-de-semana da maneira mais perfeita possível, na concepção deles. Estavam ambos com o astral alto, rindo com espontaneidade e sem vontade de esconder quão bem se sentiam naquele momento. Não perceberam o par de olhos que os vigiava ao entrarem e sentarem no lugar usual. Ela fez um sinal ao rapaz do balcão, para que tocasse sua música favorita. Ele sorriu, diante da subtileza do gesto, quando os primeiros acordes da canção começaram a preencher o ar do Café.

A voz levemente rouca e sedosa da vocalista repetia: …”let me do the ‘B’ part, please… oh! Please”…* (Hess is More - Yes, Boss)

Joe pensava que talvez fosse, mesmo, tempo de passar para uma fase mais adiante no relacionamento deles e olhou-a directa e profundamente nos olhos. Ela não conseguiu deixar de enrubescer, ante o olhar magnético dele e estendeu-lhe a mão, nervosamente, enquanto um arrepio lhe passava pela coluna. A sensação era estranha e não combinou com o momento, mas ela deixou-a passar.

Aquele homem observava-os, com cuidado de não ser notado, por detrás do copo de água tónica, temperado com rodelas de limão. Levantou-se, foi até o caixa e pagou a conta, saindo logo em seguida. Os dois amigos estavam fechando a conta com a garçonete, quando ele cruzou a porta e mergulhou na rua escura.

Lá fora, o ar frio da noite de Outono obrigou-o a levantar a gola do casaco. Conhecia-lhes os hábitos suficientemente bem para saber que caminho tomariam. Embrenhou-se no beco e esperou. Sabia que se separariam quase que imediatamente após chegarem perto de onde espreitava. O jogo corpo a corpo seria mais fácil quando a vítima fosse pega de surpresa, pois não teria tanto tempo de reagir ou de se defender. Ele sentia-se como um predador. Assim como os animais, estudara os hábitos de sua presa e sabia qual a melhor estratégia de ataque, para ser mais eficiente.

A hora chegava devagar, mas ele não tinha pressa nenhuma. Saboreava os segundos que antecediam o ataque, sentindo um crescendo de emoções. Quase já nem precisava pensar. Era uma máquina que atingia o momento certo de operar – no ponto da melhor eficiência. O botão de partida havia sido accionado. Era chegada a sua grande oportunidade. Pobre vítima…

***

Joe caminhava sozinho, com seus passos ligeiros. Acabara de se despedir da amiga e sentia-se satisfeito e um pouco ansioso, até. Desta vez, queria que fosse diferente. Seguia pelo caminho que fazia automática e rotineiramente. Não precisava pensar muito, para chegar em casa - bastava seguir seus pés. Seus pensamentos estavam, na realidade, em outro lugar, em outra situação. Ele sorria, quase que secretamente. Era evidente que sua mente estava bem distante dali. Seus pensamentos iam soltos, carregados pelo vento da noite.

***

A jovem mulher seguia a rota conhecida, rumo ao seu apartamento. Seus pés moviam-se leves por sobre as pedras duras e frias das calçadas. Naquela noite pareceu-lhe que podia ser feliz. Apesar de sempre ter sido cautelosa em seus relacionamentos anteriores, a vida parecia que lhe dava novas chances, que ela valorizava, agora, de uma maneira peculiar. O homem com quem passara o fim-de-semana era especial e ímpar. Ela experimentava uma sensação distinta. Sentia-se, depois de muito tempo, amada. Era como se aquela menina, que lutava por sobreviver em seu peito - depois de sufocada por algum tempo - rejuvenescesse.

***

O vento soprava as folhas secas pela ruela semi-iluminada do beco. Quando passou pela face mais escura, não percebeu que estava sendo vigiado. Não percebeu um homem de casaco cinza se aproximar por trás de si. Não conseguiu reagir ao ser puxado pelo ombro com violência estudada. Não viu que a caneta em seu bolso fora arrancada com precisão e, num golpe certeiro, a tampa removida e a ponta de Irídio transformada em arma letal, cravada em sua jugular.

Só percebeu mesmo, antes de cair, que o homem sorriu e disse, com um certo sarcasmo na voz grave e rouca: “Adeus, Joe Hardy… Nos vemos no inferno”.

Sentiu um frio na coluna e uma sensação estranha de enfraquecimento, enquanto o sangue fluía solto de seu pescoço. Colocou a mão sobre o ferimento, mas a luz apagou-se muito rapidamente, enquanto ele caía sobre as pedras frias do calçamento, com uma expressão de assombro estampada no rosto... E não sentiu mais nenhuma dor.

***

Uma ambulância passou em alta velocidade, com as sirenes ligadas, profanando o quase silêncio da noite fresca. Ela sentiu um desconforto no peito. Uma angústia passou-lhe pela alma, o que lhe pareceu estranho, pois estava se sentindo animada, depois do fim-de-semana que passaram juntos. Mas ela confiava na sua intuição. Algo não estava certo…

Para desfazer-se da má impressão e do desconforto que instalou-se em seu peito, resolveu voltar atrás e seguir na direcção da casa de Joe. Precisava ter certeza que tudo estava bem e queria partilhar seu receio com o amigo. Precisava ter convicção que era apenas uma má impressão, nada mais que isso….

Ao reaproximar-se do Café, uma fisgada de dor atingiu-lhe em cheio, como se fosse ferida pela ponta duma lança envenenada. Ela olhou para a parte escura do beco e viu um corpo de homem caído na penumbra. A princípio achou que era um bêbado, mas seus olhos perceberam algo mais. A roupa do homem caído era-lhe familiar...

Não teve dúvida nenhuma ao correr na direcção do homem caído no chão de pedra suja, já puxando do bolso o telefone e sentindo lágrimas de dor brotarem descontroladamente de seus olhos. Mal conseguiu digitar o número da emergência, com seus dedos trémulos e clamar por socorro.

Ajoelhou-se junto ao amigo e, ao virar o corpo, viu um bilhete escrito a sangue, saindo do bolso da camisa do amigo já inconsciente. Abraçou-o, desesperada e, na sua impotência em reparar a situação irremediável, enterrou o rosto no ombro do homem ferido e chorou copiosamente, sem sentir vergonha nenhuma de ser vista naquela posição. Mal percebeu a pequena chave, saindo para fora do bolso da camisa, pendurada num cordão pardo, daqueles que se usa atado ao pescoço…

***

O homem de casaco cinza escuro afastou-se do beco, sentindo uma espécie de onda de calor, já conhecida, percorrer-lhe o corpo. Sirenes, ao longe, anunciavam a vinda da ambulância ao local e pessoas começavam a olhar, curiosas. Seguiu, sem pressa, com naturalidade e sem olhar para trás, para não levantar suspeitas.

Havia-se livrado de um ‘serial killer’ ordinário e sentimental, porém extremamente prudente, que investigava por longo tempo. Muitas mulheres haviam sido suas presas, após serem envolvidas em uma cuidadosa artimanha afectiva. Sua mente era perversa e paciente. Fazia suas - por assim dizer - vítimas, se apaixonarem por ele e depois de muito envolvidas sentimentalmente, escolher um souvenir de cada uma delas, para ser a arma do crime. Após o acto haver sido consumado, o algoz guardava os pequenos objectos, cuidadosamente, ainda manchados do sangue de suas amantes. Sabia-se, também, que as mortes aconteciam durante o acto sexual. Talvez por piedade ou algum sentimento menos pérfido, porém, não parecia haver vestígios de tortura.

O que fazia um homem se envolver com aquelas mulheres e depois matá-las da forma que ele fazia? Seria o assassino movido por algum delírio ou por um surto de esquizofrenia? Porque guardava lembranças de suas vítimas, como se quisesse recordar dos momentos vividos com elas? Estas eram questões que jamais teriam respostas. Ele nunca saberia o que movia a mente daquele homem que acabara de matar.

O que ele tinha, como certo, naquele momento, era que até mesmo os criminosos mais calculistas e frios podiam ser previsíveis. Uma pequena distracção - desatenção, talvez - foi o que bastou para condenar o assassino. Teria ele, finalmente, se apaixonado e se tornado descuidado? Ou teria o excesso de confiança lhe subido à cabeça? Fosse uma ou outra razão, nunca se saberia… e tampouco importava naquele momento. Joe Hardy havia cometido um erro, que lhe custara a vida – nada mais que isso…

Ainda lembrou, com detalhe fotograficamente admirável, como os olhos esverdeados do homem se arregalaram, ao ser surpreendido pelo golpe da ponta metálica de sua própria caneta. Ele havia usado a mesma técnica que sabia que o assassino usava: atacar de surpresa e, depois, guardar um souvenir da vítima consigo. O bilhete, escrito com o sangue da vítima, havia sido o pormenor mais subtil e sádico da história. Era o seu próprio detalhe de “requinte de crueldade”, que aprendera em tantos anos de “serviço à comunidade”, avaliando crimes hediondos. Sentiu orgulho de haver pensado naquilo, no pouco tempo que esteve junto ao corpo. Sorriu para si mesmo, sentindo-se vitorioso…

Aprumou a gola do casaco surrado, para se proteger do frio e saiu, pensando em como tinha sorte de não se relacionar com ninguém há muito tempo. As emoções deixam as pessoas vulneráveis e à mercê de oportunistas. Ele, porém, tinha que manter o sangue frio a todo custo…

Ainda tocou de leve o bolso, onde a caneta manchada de sangue aparecia ostensiva - embora discretamente - e desceu as escadas que o levariam à estação do metro. Agora, pensou, precisava fazer um relatório aos seus superiores. Havia cumprido a sua parte. Sua promoção estava sobre a mesa do chefe e era garantida, caso conseguisse fechar aquele caso de uma vez por todas…

‘Missão cumprida’, pensou e desapareceu no meio da multidão, que se dirigia aos corredores de acesso às plataformas.

3 comentários:

  1. Missão cumprida... espero não haver decepcionado...

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  2. muito bom, eu realmente nao esperava por isso.

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  3. Heheheheh... sabia que ia deixar gente de boca aberta! Claro que foi de propósito! Valeu, Gui...

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