sábado, 21 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 4)

Gahiin

- Doutora, melhor vir até a recepção… com urgência…

A mulher levantou os olhos do computador, onde trabalhava, a fazer anotações sobre o paciente mais complexo que já havia passado por aquele consultório e fixou-os na jovem que entrara, com uma expressão preocupada.

Naquele dia, a psicóloga vestia um blazer azul-marinho, com saia reta até a altura dos joelhos, no mesmo tom. Uma blusa branca de algodão, simples, com gola arredondada, fazia conjunto sóbrio com o terninho e com os sapatos pretos de saltos altos. Tinhas pernas esbeltas e bem proporcionadas. O cabelo estava preso atrás com grampos, num coque, deixando o rosto já maduro, bastante encantador, à mostra, evidenciando-lhe as belas maçãs do rosto. Dir-se-ia que estava quase a chegar à casa dos quarenta, mas a idade caia-lhe muito bem. Era uma mulher bastante atraente. 

Ela já havia-se habituado com as mensagens subliminares no discurso da estagiária. Quando falava daquele jeito, estava com alguma situação difícil de lidar. Ela sabia que estava no horário reservado a Gabriel e que ele já deveria estar sentado à sala de espera. Pousou os óculos de leitura em cima da escrivaninha, levantou-se, aprumou a roupa e seguiu a moça.

Gabriel estava sentado na poltrona, de costas para a janela virada para o centro da cidade. Tinha os olhos um tanto perdidos e assustados e um grande corte, a sangrar, na face esquerda. A mulher aproximou-se, rápida. Não era a primeira vez que aquele homem chegava ao consultório em tal estado de confusão e a sangrar. O ferimento parecia um tanto profundo e requeria cuidado imediato. Ela pediu a caixa de primeiros socorros à secretária e voltou sua atenção ao homem, aflita por saber o que havia acontecido daquela vez.

- Gabriel? O que houve? Foste atacado na rua?

Ele pareceu mais confuso. Olhou-a com aquela expressão estranha, a qual ela já deparara em outras ocasiões. Aquele não era o Gabriel que ela conhecia. Pela expressão vazia no olhar e na face, poderia ser qualquer outro, ainda a tentar manifestar-se. Ela tinha que ir com calma. Limpou o corte, passou um antisséptico e decidiu deixar assim, para que a ferida respirasse um pouco, antes de ser coberta com um curativo. O sangue já havia estancado. Era uma ferida muito precisa, como o corte de uma lâmina. Pela profundidade, havia apenas atingido sua face de raspão, senão era caso para a Emergência de hospital.

- Vamos entrar. Conversamos lá dentro.

Uma vez acomodado confortavelmente na usual poltrona de couro castanho, o homem olhou-a com outros olhos. Ela teve a impressão que mudaram de cor. Aquele pálido azul tinha uns tons cinzentos, naquele momento. Sentiu-se perturbada, mas bem poderia ter sido, apenas, impressão sua, mesmo. Ele pareceu-lhe um completo desconhecido, a tentar compreender como chegara ali. Ela tomou coragem e perguntou.

- Gabriel? Está tudo bem agora? Como foi que te cortaste deste jeito?

Ele não sorriu. Permaneceu muito sério e com voz muito grave, falou.

- Eu não sei ao certo. Lembro muito pouco de como cheguei cá.

- Feche os olhos, então, e relaxe. Tente recordar o que aconteceu.

O homem fechou os olhos. Por uns instantes manteve o cenho franzido, depois, como se uma porta abrisse em sua memória, mudou a expressão do rosto e começou a falar.

- Sei que venho de muito distante, de além-mar, onde os campos são tão vastos quanto a coragem dos guerreiros que derrotei. Eu nasci um lutador e, as coisas que aprendi no meu percurso de vida, sempre levaram-me a batalhar pela sobrevivência. Não sei porque vim parar nesta terra, mas é a terceira vez que lembro-me de aqui estar. O nome, pelo qual me conhecem, nesta dimensão, é Gahiin. Sou filho da Terra e à ela tenho dedicado minha luta. Sou amante do vento e das tempestades e, por isto, viver ao extremo e em estado de constante risco, é uma das muitas particularidades, exclusivamente minhas. Sou muito aficionado de desportos radicais e altas velocidades, que nunca me assustaram. Ao contrário, sou viciado em adrenalina. Muitas vezes costumo partir em aventuras de preparação, por dias a fio, no meio do mato, no rio, no mar ou nas montanhas. Minha força, resistência e coragem serão características extremamente úteis, quando a grande hora chegar.

A mulher quase não conseguiu fechar a boca, de tão surpresa. Fora pega desprevenida.

(Mais um personagem? Como era, de alguma maneira, possível? Já eram sete e pouca luz ainda via, no grande mistério, que era aquele homem.)

Ela olhou aquele que era o dono do corpo, Gabriel, com uma alguma piedade. Gahiin parecia ser um homem vigoroso, dominador e independente. Não tinha aquele charme imediato de Phil, mas era um homem muito forte, com certeza. O rapaz percebeu que ela tentava absorver aquela informação, com certa dificuldade. Ao invés de tentar acalmá-la, como se lesse seus pensamentos, apenas resolveu dizer o que sabia ser de alguma importância, naquele momento.

- Quantos de nós já conheces? Sete? Então falta-te apenas conhecer Joe. Talvez ele te entregue a chave daquilo que procuras. Ele, na verdade, é a própria chave. A chave do mistério é Joe. Não é Gabriel, como tu poderias pensar…

Os olhos da mulher arregalaram-se quando o homem levantou-se, estendeu-lhe a mão, e saiu do consultório, sem dizer mais nada.

Mesmo sendo uma pessoa bastante estável, ela sentiu uma espécie de vertigem. Teve que apoiar-se na secretária, para não perder o equilíbrio e cair ali mesmo.

Como iria encontrar o tal Joe? Se até aquele momento ainda não havia-se manifestado, quando iria, finalmente, fazê-lo?

(Oito personalidades? Oito tipos diferentes? Oito guerreiros, na verdade! E, pelo jeito, oito grandes lutadores… Aquilo era, realmente, muito assustador!)

Joe

 - Doutora, Gabriel já não vem à consulta há mais de duas semanas. Será que aconteceu algo?

- Vamos ver Phil, assim que acabarmos aqui, hoje. Depois daquele encontro com Gahiin, uma coisa ficou muito clara. É bem provável que tenhamos problema... e logo. Ele é a única pessoa que pode nos dizer algo, já que tem um programa de manifestação mais ou menos previsível. Se não fosse ele...

A frase ficou assim, meio dita, meio pensada. Os pensamentos da psicóloga foram além do profissional. Ela queria desvendar o grande mistério. Queria curar o paciente, por quem tinha grande consideração. Precisava da ajuda de Phil, para chegar a Gabriel, mas havia mais. Muito mais. Ela tentava não pensar muito em outra coisa, mas sentia uma atração muito forte por Phil. Por que sentia aquilo por aquele personagem específico e não por outra pessoa, ou mesmo por Gabriel, a personalidade oficial, ela não conseguiria dizer, mas sabia que sentia. E não era um simples interesse.

A mulher balançou a cabeça, como se recusasse pensar mais naquilo. Precisava manter o profissionalismo, a qualquer preço. Havia um perigo iminente para seu paciente e ela tinha responsabilidade sobre o que poderia acontecer-lhe. Aquela história já era complicada demais e intrincada demais, para que ela perdesse tempo precioso a pensar nela, ou na sua tola atração.

Ela tinha que concentrar-se nas prioridades. Gabriel era a prioridade, mas, segundo Gahiin, Joe era a chave.

(Por onde andaria o tal Joe?)

***

- Já faz algum tempo que Phil não aparece. Ele cancelou algumas apresentações. Disse que precisava viajar por uns dias e quando estivesse de volta, avisava. A voz parecia diferente, mas devia ser porque ele disse também que não estava muito bem.

- Quanto tempo faz isto?

- Um pouco mais de duas semanas... talvez três.

- Se o vires, ou se ele entrar em contacto, por favor, peça-lhe para ligar-me. É muito importante.

O rapaz já havia visto as duas por lá, bem mais que algumas vezes e também sabia que eram conhecidas de Phil. Acenou a cabeça, em sinal positivo e voltou a atender os outros clientes. O bar estava em ritmo acelerado, como usualmente, naquele horário.

Duas, talvez três semanas... deve ter sido desde que o paciente estivera no consultório com um ferimento na face. Talvez por aquele motivo não havia aparecido. Não queria ser visto com um corte daqueles na face, assim à mostra. Poderia levantar suspeitas e uma série de perguntas muito difíceis de responder.

(Quem poderia ter feito aquilo? Quem poderia fazer mal a um homem tão doce, como Gabriel, ou tão atraente como Phil?)

***

Algumas noites depois, na quarta-feira, a psicóloga estava ainda no consultório, tentando juntar todas as peças do puzzle que tinha em mãos. Era tarde, a secretária já havia saído e ela tinha tudo fechado e as luzes apagadas, exceto a de sua escrivaninha, onde procurava, no meio das anotações, descobrir alguma luz, algum detalhe deixado nas conversas entre ela e os personagens, mas não conseguira muita coisa.

O segurança já havia passado e perguntado se ela precisava de alguma coisa. Ela havia dito que ia sair em poucos minutos, por isso não precisava de mais nada. Ele verificou as portas e janelas e despediu-se. Ela ouviu-o sair e o barulho do elevador a movimentar-se. Estava sozinha. Precisava concentrar-se. Talvez houvesse mais algo que ela não estivesse percebendo na história.

(Batalhas. Grandes batalhas.  Que diabos de batalhas? E Joe... Onde estava Joe?)

Ouviu novamente o barulho do elevador. A porta abriu-se. Passos. O segurança, um homem que tinha um apreço muito grande por ela, devia estar preocupado. Sem levantar a cabeça, ela falou.

- Já disse que estou bem. Não se preocupe, pois vou sair em minutos. Podes fechar tudo. Boa noite.

- Ok. Boa noite.

O homem saiu, usando o elevador. Ela respirou aliviada. Precisava mesmo terminar aquilo.

Pouquíssimos minutos depois, ouviu a porta do elevador novamente. Ela sorriu, vencida. O segurança mesmo estava preocupado com ela e, talvez, tivesse razão. Considerou que, provavelmente, fosse mesmo melhor que acabasse o trabalho em casa. Assim teria mais tranquilidade e não precisava preocupar o pobre homem. Além do mais estaria em sua própria casa, segura e confortável, sem os sapatos e a roupa de trabalho... Àquela hora já estaria de pantufas e pijamas...

- Ok. Ok. Já vou sair...

A mulher desligou o computador, marcou as anotações que tinha num pequeno caderno de apontamentos, fechou-o, guardou-o e levantou-se, pronta para sair.

- Vamos. Já vi que não ficas em paz, se eu estiver sozinha aqui, assim tão tarde.

- Não fico mesmo. A sua segurança é muito importante para mim.

- Obrigada. Às vezes penso que sou mimada demais, sem achar que mereço toda essa atenção. Mas, não precisava subir três vezes para verificar se eu estava bem.

- Merece sim. Mas eu só subi duas vezes...

- Devo mesmo estar cansada. Tive a impressão que foram três, mas devo ter-me enganado.

Ele não sorriu. Acompanhou-a até o carro, esperou que ela partisse e, só então, tomou seu caminho, a pé, para casa. Manter a doutora a salvo, era responsabilidade sua. Não podia deixar de sentir-se incomodado em deixá-la trabalhar sozinha, sem que ele tivesse a certeza que estava bem. Mas foi para casa intrigado com a confusão que ela fez...

Não percebeu, porém, que a poucos metros dali, um carro partiu, saindo na mesma direção que o outro.

***
Deitada, com os pés esticados sobre a cama e com o computador no colo, a mulher lia as notas tiradas nas avaliações sobre seus pacientes. Estava mais concentrada em um, especificamente, tentando juntar os detalhes de cada personalidade com a qual já havia cruzado até ali. Já passava das onze da noite, por isso decidiu que ia parar e dormir, finalmente. Seu dia havido sido bem longo e ela desejava uma merecida noite de sono. Arrumou as coisas e deitou-se.

Embora tentasse relaxar e adormecer, seus pensamentos voltavam sempre para o mesmo ponto: Joe. A chave...

Foi então que a campainha tocou.

- Não é possível! À esta hora. Quem poderá ser?

Mesmo sabendo que não era a hora mais adequada, foi até a porta. Às vezes as emergências aparecem nas horas mais impróprias. Ela, sendo a doutora, sabia bem... Levantou-se e foi até a porta. Espiou pelo olho mágico e quase não acreditou no que viu. Abriu a porta, com um puxão forte, tamanha a surpresa que teve.

***

- Soube que andavas à minha procura, mas não pude aparecer logo. Tive que segui-la, depois que saiu do consultório, mas não queria ser visto por ninguém, por isso demorei a subir. Precisamos mesmo conversar. É mais que hora...

- Mas, como...?

- Calma, doutora. Não vou fazer-lhe mal. Todos sabem quem eu sou. Eu sou um pacifista e não lhe represento nenhum perigo. Eu apareço quando os guerreiros estão em conflito ou cansados demais para lutarem. Chamam-me Joe – um nome comum para um homem comum.

- Finalmente, Joe. Tenho ouvido falar muito de ti, ultimamente. Preciso de sua ajuda, ou teremos um grande problema num futuro muito próximo. Todos anunciam-me que está por advir uma grande batalha. É sobre ela que devemos conversar. Como ninguém quis antecipar-me detalhes, tenho estado cada vez mais apreensiva.

- OK. Vou dar-lhe todos os pormenores do que eu sei e da grande batalha. Também de como podemos enfrentar o conflito, mas é melhor sentar-se...

A psicóloga olhou o homem que acabara de entrar com um misto de curiosidade, apreensão e uma grande ansiedade. Ele tinha uma cicatriz na face esquerda, visível a quem olhasse com cuidado, mas nada assustador. Sua expressão passava-lhe uma tranquilidade inexplicável.

Ela suspirou e sentou-se. Era a hora da verdade... finalmente!


***

domingo, 8 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 3)

Rael


- Sei que ele é um homem excepcionalmente atraente, carismático e sedutor, mas asas nas costas, foi forçar demais a barra... Pegou pesado demais…

- Pois foi, mas quem sabe o significado seja outro. Na próxima vez, vou tentar obter mais detalhes. Não há como convencer-se a respeito de uma história mirabolante destas, sem ficar a pensar… e muito… a respeito das palavras e do que está por trás delas, mas enfim, em casos como este, nunca se sabe…

- Pena. Pareceu-me tão equilibrado.

- Mas o dono do corpo é Gabriel. Não esqueçamos disso…

As duas mulheres, uma terapeuta experiente e uma estudante de psicologia, que fazia sua tese de mestrado na clínica da outra, funcionando às vezes como recepcionista, secretária e ajudante, discutiam o estranho encontro entre o terceiro personagem contido, por assim dizer, no mesmo recipiente humano. Haviam esquecido, quase completamente, que Phil havia mencionado um outro nome, que poderia ser bem mais perigoso que os outros.

(Quem, afinal, seria Rael?)

***

-Olha para mim.

- Achas que este tipo de atitude ou o teu tom de voz, assim direto e agressivo, vai intimidar-me, de alguma forma? Não deves, mesmo, conhecer-me. Nem tu, nem nenhum dos outros vai conseguir nada com este tipo de coerção. A tua hostilidade não vai ajudar em nada a resolver este caso.

- Ajudar? Quem disse que eu preciso de ajuda? Sei muito bem cuidar de mim e sei, também, que os outros são fracos. Se eles curvam-se a ti, podes perder a esperança comigo. Eu não costumo curvar-me perante ninguém.

- Que és tu, afinal, que a arrogância domina com tanta firmeza?

- Meu nome é Rael e sou um rebelde. Não luto por ninguém, mas por mim. Minha pátria é onde meus pés pisam, naquele momento e nunca fiquei em nenhum lugar o tempo suficiente para criar raízes. Não me apego nem às coisas, nem às pessoas. Minhas experiências com elas não foram felizes, no passado e, por isso, mantenho-me longe, numa constante e interminável viagem. Sou um assassino a soldo. Meu sangue frio é umas das características mais marcantes do meu currículo e, posso dizer, com certeza, uma mais-valia poderosa.

A mulher sentiu um desconfortável arrepio a subir-lhe a espinha. O músico estava certo: ele era mais perigoso que todos os outros personagens. Assassino a soldo era caso para a polícia. Quanto daquela loucura era imaginada e quanto era verdadeira, ela ainda não sabia, mas tinha certeza que agir com cautela, nunca era demais. A prudência era necessária a qualquer hora.

Quando fora abordada pelo homem, na rua, a mulher percebera que estava diante de um homem com inteligência rara e com astúcia de raposa. Ele aparecera poucas semanas após a conversa com Phil e abordara-a na saída da clínica. Seu aspecto desleixado, com a barba por fazer, as roupas sujas e os cabelos desalinhados, não a assustaram tanto quanto seu discurso de agora. A terapeuta sabia que podia correr perigo. Por que razão Rael entrara no jogo, ela ainda não sabia, mas bem podia ser um lance estratégico a ser considerado.

- Tenho que ir agora. Uma batalha pode vencer a guerra, se for bem preparada e eu tenho que estar pronto. A propósito, já falaste com Thomas? Ele pode ser um grande aliado, se souberes levá-lo. Quem sabe não tenhas mais sorte…

- Thomas?

Os olhos da mulher arregalaram. A situação complicava cada vez mais. Ela começava a sentir medo.

- É. Thomas… é este o nome…

Thorben / Thomas


Ela encontrou Gabriel sentado à janela, num café, perto do consultório. Ele parecia distante, pensativo e um tanto preocupado. Seu olhar parecia estar a muitas milhas dali.

- Não esperava encontrar-te aqui…

- Não estás a trabalhar? Ainda não é hora de folga, ou é?

Ela riu. Era a pausa para um merecido café, a meio da tarde. Ao explicar, ele respondeu, simplesmente:

- Ah… Descanso para os guerreiros, então…

Seu sorriso foi um tanto pálido. Algo deixava-o preocupado e ela conhecia bem aquele olhar, assim longínquo e angustiado. Mesmo em sua hora de folga e sabendo que não era dia de terapia, resolveu manter conversa e perguntar-lhe.

- O que é que te preocupa, Gabriel? Pareces distante e sorumbático. Até mesmo teus ombros parecem mais arcados.

- Pode não ser nada, mas tenho lapsos de memória cada vez mais longos. Antes até conseguia lembrar de algumas coisas, como se estivesse em um sonho, mas, agora, passam-se horas em negro, numa escuridão total. Devo estar a enlouquecer…

- Vamos ao consultório. Podemos conversar melhor lá.

- Não tenho muito tempo agora. Também preciso voltar ao trabalho, mas se tiveres um tempo à noite, passo por lá. Sei que não é meu dia de terapia, por isso compreendo que tenhas de verificar.

Ela pensou uma pequena fração de segundo e ripostou, sem titubear:

- Tenho tempo, sim. Venha às oito.

Uma mulher como ela não podia perder uma oportunidade daquelas. Sentia-se mais como uma detetive, que como psicóloga. Parecia uma especialista em traçar perfis perigosos. Mal podia esperar pela noite, quando ia tentar obter mais informações para ajudar a desvendar o grande mistério.

***

- Gabriel, tenho receio que estejas em perigo. Esta confusão mental, esses lapsos de memória… tudo isso contribui para um colapso iminente. Os outros falam em batalha. Que batalha é essa? Consegues resgatar alguma coisa a este respeito? Começo a temer pela tua vida…

- Acho que não deves temer por mim. Tenho certeza que não corro perigo. Os outros estarão preparados, quando chegar a hora da tal batalha…

- Preparados? Como assim, preparados, Gabriel? Nunca falaste assim…

O rapaz, que havia chegado às oito em ponto, olhou para a terapeuta e sorriu. Aquele sorriso, porém, pareceu-lhe estranho, pois ele tinha o cenho franzido e olhava por trás de sobrancelhas cerradas.

- Tens toda a razão. Gabriel trouxe-me até aqui, mas não ficou. Meu nome é Thorben, em homenagem ao deus nórdico do trovão. Talvez eu seja assim chamado, pela minha destreza com o martelo e por aparentar menos força que realmente tenho. Aqui, nesta terra, prefiro ser chamado por Thomas. É muito mais prático. Sou um ferreiro, uma profissão que já foi bastante útil, mas que agora já não serve para nada, por isso , especializei-me em Metalurgia, para poder usar meus conhecimentos e minhas habilidades, com mais rigor. As armas que já fabriquei estão muito bem escondidas. Elas serão úteis muito em breve. Mantenho minha ira controlada, exceto quando meu limite é excedido. Quando isso acontece, ninguém me segura, assim como não se consegue segurar a força dos relâmpagos e dos trovões. Na hora certa, saberei fazer uso desta característica. Por ora, tenho que ter os olhos e os ouvidos em constante estado de alerta.

Àquela altura, a mulher já estava mais que perturbada. Nunca havia conhecido tantos personagens estranhos como aqueles… ainda mais dentro do mesmo corpo. Parecia eu estava dentro de um estranho filme de horror psico-mitológico.

- E isto não te deixa cansado?

- Não de todo. Tudo isso faz parte do processo. É um bom exercício, afinal. Pena que eu não seja tão bom observador quanto Alex.

(- Oh, não! Outro não!)

O rapaz percebeu o pânico na face da mulher e sorriu. Deu-lhe um tapinha na mão, tentando tranquilizá-la.

- Não se preocupe. Alex não é perigoso. Aliás, é bem amigável.

Alex


O pub da esquina estava lotado no happy hour de sexta-feira. A psicóloga e a estagiária entraram depois que o expediente terminara, um pouco mais cedo que o habitual, dispostas a encontrarem Phil. Passaram-se alguns dias, desde a conversa com Gabriel e Thomas e o único cuja presença podia ser mais ou menos prevista era Phil, pelo cronograma de apresentações no bar.

- Gabriel é uma graça de pessoa, por quem tenho uma grande empatia, mas este homem a tocar e cantar… e daquele jeito... mexe mesmo comigo.

A estagiária soltou um risinho matreiro e tocou no braço da psicóloga. Sem dizer nada, a mulher mais velha concordou intimamente. O que ela sentia pelo rapaz também era especial. Quase desejava que Phil fosse o verdadeiro personagem, dono do corpo e a personalidade que dominasse as outras. Além de tocar e cantar, com uma destreza excepcional, vestia-se com uma elegância irrepreensível e era dono de um sorriso encantador.

Ela adorava conversar com ele, embora soubesse que era apenas uma ilusão. Se conseguisse curar Gabriel, Phil desapareceria para sempre. Ela sentia-se em conflito. Por um lado queria livrar Gabriel daquele suplício, daqueles blackouts e da iminência de um colapso nervoso. Por outro lado, sentia-se loucamente atraída por Phil, o homem que emanava um charme fora do comum e que dava-lhe, além de um grande desafio e boa conversa, a sensação de estar mais viva. Artistas tem este poder: até mesmo os mais tímidos podem fazer-nos apreciar a beleza, de maneira única e de sentirmo-nos muito mais vivos.

- Olá, moças. Pelo que vejo ganhei duas fiéis fãs.

As duas mulheres sorriram de uma maneira tão espontânea e aberta, diante daquela declaração, que ele sentiu-se, mesmo, bastante especial.

- Nós apreciamos a tua música, Phil. É mesmo de manter-se fidelidade. Devias gravar um disco…

- Que exagero. Quem iria comprar um disco meu?

- Nós!!!

As duas responderam em uníssono e os três riram ao mesmo tempo. Era bom demais dar umas risadas em boa companhia. Quase podia-se esquecer o grande problema que aquelas três pessoas deviam enfrentar, em um tempo que parecia-se aproximar, cada vez mais, em velocidade acelerada.

- Alex, tenho um trabalho para ti. É super importante!

O estranho havia aparecido do nada e dirigia-se ao músico, que conversava com duas mulheres. Os três viraram-se ao mesmo tempo, mostrando certa surpresa, mas o outro parecia saber com quem falava.

- Faz tempo que não te via. Por onde tens andado? Procurei-te por todo o lado. Tenho um trabalho muito importante para fazeres.

- Desculpa, mas não sei com quem pensas que estás a falar. O meu nome é Phil e sou um músico de bar. Aliás, meu intervalo acabou. Preciso voltar ao palco.

O rapaz virou-se, beijou as faces das duas mulheres e voltou ao palco, para tocar e cantar mais um punhado de músicas. O homem, que ficara sem saber o que dizer, dirigiu-se às duas mulheres.

- Que estranho. Eu tenho certeza que aquele é Alex. Não pode ser outra pessoa.

As duas entreolharam-se. A psicóloga já ouvira falar aquele nome anteriormente e não gostou do que viu e ouviu, ali, naquele momento.  

- Quem é Alex?

- Aquele homem é um dos melhores repórteres que eu conheço. Tem a percepção mais aguçada que eu já vi. Quando entra em um ambiente, basta uma olhada geral e já tem assunto para longas conversas, baseado no que pode observar. Além de ser um bom ouvinte é, também, um bom juiz e um excelente repórter. O uso de suas capacidades pode mudar o rumo dos acontecimentos, dependendo de como usa as informações que passam-lhe pelas mãos… ou pelos olhos…

(- Ai, meu Deus do céu!)

As duas ficaram a olhar, sem dizer nada, para o homem que tocava, eximiamente, uma canção conhecida, no pequeno palco do bar. Um sentimento comum passou pelas duas, num arrepio, como se fosse partilhado, sem ser mencionado, em alta voz… 

...E o sentimento era medo!

***

domingo, 1 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 2)

Phil


Quando as duas mulheres entraram no pub, após um longo dia no consultório, pretendiam simplesmente relaxar um pouco, tomar uma bebida qualquer e fugir do frio lá fora. O bar estava bastante movimentado àquela hora, apesar de já ser tarde para o happy hour.

Na parede oposta à entrada havia um  pequeno palco. O clima era agradável e a música, acústica e de muito boa qualidade. O volume do som era audível, mas discreto o suficiente para manter o público confortável, sem perturbar a conversa. Os músicos poderiam passar quase despercebidos, se tocassem com aquela intenção.

Iluminado apenas por dois pequenos holofotes, direcionados para sua cabeça e mãos, o músico que lá se apresentava no momento era realmente bom, tanto a cantar, quanto a acompanhar-se no violoncelo. Sua voz era harmoniosa e sua performance, estava sendo bastante apreciada pelo público frequentador do local, que mantinha um silêncio quase absoluto, a ouvi-lo atentamente e com extremo deleite. Aquele homem não devia ser apenas um músico de bar.

Os olhos das duas pousaram, curiosos e atónitos, sobre o jovem homem, vestido com uma impecável camisa branca, com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos cotovelos e modernas calças jeans de marca, quando ele levantou a cabeça e teve o rosto completamente iluminado.

- Aquele não é o Gabriel?

- Eu ia perguntar o mesmo. Parece ser ele, sim. Não sabia que ele podia cantar e tocar violoncelo.

- Nem eu. Cada dia, uma surpresa, sim senhora... Vamos lá falar com ele?

- Vamos esperar fazer um intervalo e, então, falamos com ele. O homem é mesmo bom!

A outra olhou-a, com um ar entre o surpreso e o maroto e deu uma risadinha. Ambas aproximaram-se do balcão para pedir um bebida e esperar, enquanto apreciavam o show e mantinham interesse no clima dentro do recinto.

Algumas canções eximiamente bem tocadas após, o músico anunciou que iria parar por uns instantes, levantou-se e dirigiu-se ao bar, perto do palco, na ponta oposta onde as mulheres estavam a observá-lo. Elas abriram caminho entre as pessoas e aproximaram-se. Ele estava de costas. A terapeuta tocou-lhe no ombro e falou:

- Nossa, Gabriel. Que performance linda! Não sabíamos que tocavas assim tão bem. Nem sabíamos que eras um músico, menos ainda que fosses tão bom. Meus parabéns!

O rapaz virou-se. Seus olhos pousaram sobre as duas mulheres e ele sorriu, de uma maneira bastante cordial, mas um tanto estranha.

- Obrigado pelo elogio. Aprecio mesmo a vossa opinião e não sei se mereço tudo isso, mas devem estar a confundir-me com outra pessoa. O meu nome é Filipe, mas artisticamente assino como Phil, que é mais fácil e conveniente.

As duas mulheres entreolharam-se, estupefatas e incrédulas. Tinham certeza que estavam diante do mesmo homem que conheceram há dias e que já havia-lhes causado uma impressão bastante incomum, por ser um raro caso de estudo psicológico.

Ou será que estavam, assim, tão enganadas? Como aquilo podia ser possível? Quem diabos era aquele homem, afinal?

***

A terapeuta ficou às voltas com uma pesquisa por longas horas, noite adentro. Sua cabeça andava aos turbilhões. Vários filmes haviam passado em sua mente, enquanto estudava caso após caso, tentando compreender se estava diante de uma personalidade fragmentada, ou se estava mesmo errada em relação ao homem que tocava, tão perfeitamente, no bar, horas antes. A coisa ficava mais complicada à medida que avançava no que pensava ser o conhecimento de seu paciente, na terapia.

Se Phil e Gabriel fossem o mesmo homem, ela estava diante de um processo muito mais assustador e emaranhado que ela poderia imaginar. Julgava que casos de dupla personalidade eram bastante difíceis de tratar, mas aquele estava começando a ficar assustadoramente denso. E, ainda, havia Lucius a considerar na equação, uma personalidade muito mais intimidante e difícil de conter, que podia, facilmente, dominar as outras, se quisesse... ou pudesse.

Como psicóloga, ela conhecia histórias e relatos científicos, mas, pessoalmente, nunca havia topado com pacientes sofrendo de múltiplas personalidades. Aquele caso era bem mais profundo que isso. Se Gabriel era, por assim dizer, o dono do corpo, como podia ter deixado os outros aparecerem assim?

Ela lembrou que Lucius falara em exteriorização... Ele mostrara saber bem do que falava...

Não vendo nenhuma saída, decidiu que deveria que entrar em contacto com um velho amigo, um professor da faculdade, para trocar informações e tentar perceber melhor como agir, em um caso daqueles. Talvez ele pudesse, com sua experiência, indicar, ou mesmo discutir uma forma de ajudar, antes que...

- Oh, meu Deus! A batalha... Que raios de batalha poderia ser?

***

- Doutora, é a terceira sessão que Gabriel falta. Não consegui contactá-lo pelo telefone. Está desligado.

- Vamos ao pub, hoje, ver se encontramos Phil. Quem sabe ele esteja lá... Começo a ficar muito mais preocupada, agora.

- OK. Vamos ao pub.

O dia arrastou-se, na sua rotina e quando, finalmente, acabou-se, a secretária entrou no consultório, já toda pronta para sair. A psicóloga ainda tomava alguns apontamentos da última sessão, mas levantou-se de pronto e, com uma expressão que não escondia a ansiedade, tomou a bolsa. Deu um longo suspiro.

- Temos que descobrir o que está havendo. Tenho medo do que possa vir por aí...

Quando chegaram ao pub, olharam imediatamente para o pequeno palco, mas o músico que lá estava não era quem esperavam. Ao perguntar por Phil, o barman informou-lhes que só devia aparecer dali há dois dias. Ele havia deixado um número de telefone, mas parecia estar desligado, portanto não tinham como contactá-lo.

As duas mulheres resolveram que deveriam esperar até dali há dois dias e saíram do bar, logo em seguida. Talvez tivessem mais sorte em um par de dias...

Ao cruzar a rua, no fim do quarteirão, esbarraram num jovem que vinha de cabeça baixa a caminhar, meio sem destino. Seus cabelos estavam desalinhados, sua barba por fazer há algum tempo e suas roupas bastante sujas. Era, com certeza, um morador de rua. Pelo jeito que vinha a caminhar, parecia estar drogado. A terapeuta pediu desculpas e atravessou a rua, apressada, acompanhada da secretária. Nenhuma das duas olhou para trás, logo esquecendo o incidente.

O homem, logo que alcançou a calçada, voltou-se e ficou a acompanhar, com o olhar, as duas mulheres a caminhar do outro lado da rua, apressadas, na direção oposta. Esperou um pouco, até que elas virassem na esquina e voltou a cruzar a faixa de pedestres, apressando o passo, para alcançá-las.

Ao chegar à esquina, onde as mulheres viraram, o homem viu que uma delas já estava ao volante de um carro, enquanto a outra entrava pelo outro lado e, antes mesmo que ele chegasse mais perto, arrancaram dali.

Ele seguiu-as com o olhar, pois sabia que não ia conseguir chegar mais perto que já havia... não daquela vez, pelo menos. Mas oportunidades não iriam faltar...

***

Dois dias depois, durante o intervalo do happy hour, no pub do outro lado da rua, a psicóloga conversava com o músico da noite e convenceu-o, depois de muita conversa, a ir vê-la no consultório, mesmo que por uma única vez, conforme ela prometeu. Sabia que precisava de ajuda e, talvez, Phil pudesse apontar-lhe uma saída.

Quando o jovem entrou, vestido impecavelmente, como ela o conheceu, na outra noite, ele abriu-lhe um sorriso imenso e estendeu-lhe a mão. A mulher tomou-lhe a mão, educadamente, mas sentiu mais que uma simples simpatia pelo personagem que estava de pé à sua frente.

- Bem vindo, Phil. Fale-me um pouco de si, por favor. Acredito que haja muito a dizer.

Ele sorriu. A conversa começou muito amena, mas depois de alguns pontos, quase sem importância, ele falou:

- Bom, como sabes, meu nome é Phil. Em dias normais, sou um músico reconhecido, mas este é apenas um disfarce.

A mulher levantou a sobrancelha, em estado de alerta. Sabia que havia algo mais, que ele não havia contado. 

- Sei que esconder minhas habilidades aumenta um certo mistério, mas também serve para apanhar o inimigo desprevenido. Apesar da minha aparência calma e da minha muito pouca experiência em lutar, acredito que serei um poderoso 'asset', quando vier a fase de guerra fria. Pode não parecer, mas sou um exímio atleta. Minha maior virtude é a resistência física e à dor. Eu tenho asas às minhas costas, mas estas ainda estão em crescimento. No futuro terei asas enormes – ao menos assim o espero... e poderei voar alto e longe. Até lá tenho que me preparar bem, pois minhas habilidades serão de grande valia. Quando for necessário, porém, saberei usar meus recursos com grande maestria.

Ele chegou-se para frente, como quem está para revelar um grande segredo. A mulher já estava bem mais que assustada.

- Tenha cuidado, porém, com o Rael. Ele é muito perigoso.

- Quem é Rael?

- Tu talvez não saibas quem ele seja, mas podes ter certeza que ele sabe muito bem quem tu és...

***

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 1)

Gabriel

 - Gabriel? Gabriel? Sabes onde estás?

O jovem olhou em volta, mas não pareceu reconhecer o lugar. A sala era comum, com uma grande janela voltada para a cidade. Apesar de estarem apenas no 4º andar, não era possível ouvir os sons que passavam lá fora. As vedações eram quase perfeitas, o que era excelente para um consultório como aquele.

O homem balançou a cabeça. Seus olhos pareciam vazios, como se estivesse num estado de confusão mental bastante grande. Não dava nenhuma demonstração de saber onde estava.

- Foste encontrado na rua, aparentemente sem saber quem eras ou onde estavas e foste trazido para cá. Vimos teu nome na documentação na tua carteira. Consegues entender o que eu digo?

Ele fitou a pequena mulher com um ar entre o confuso e o hostil. A psicóloga já estava acostumada, em seus muitos anos de experiência, a lidar com pacientes hostis, em confusão mental ou, mesmo, com amnésia. Não mostrou-se intimidada. Voltou a perguntar ao rapaz de pálidos olhos azuis:

- Gabriel? Consegues compreender o que falo?

O rapaz olhou a mulher, agora com uma certa irritação, franziu no cenho e grunhiu, entre dentes.

- Meu nome não é Gabriel.

A mulherzinha observou-o com outros olhos. Ele parecia estar realmente indignado ao ser chamado pelo nome que ela usara. Seus olhos revelaram um pouco mais que irritação. Havia algo mais selvagem e agressivo neles.

Ela percebeu que estava diante de um caso mais complicado que contava. Não parecia ser apenas um problema de confusão mental ou amnésia. Ela viu que podia ser muito mais que aquilo. Se não tivesse passado por um grande trauma, poderia ser...

... Não ... não podia ser...

Há muito que não via um paciente com aquelas características, mas ela própria duvidava que suas suspeitas tivessem fundamento. Tentou escrutinar as reações do homem, ao aproximar-se dele, para ver como reagia, mas foi interrompida.

- Ele tinha sangue nas mãos e na camisa… o rosto estava machucado e estava completamente desorientado. Quase nem ofereceu resistência a ser trazido para cá. Talvez tenha sido assaltado, levado uma surra, batido com a cabeça, ou algo assim.

O policial parecia perturbado. Havia recolhido o jovem na rua e pelo estado em que se encontrava, parecia haver sido vítima de agressão ou, talvez, pelo contrário, ter agredido alguém. Como a carteira ainda estava no bolso, a hipótese de assalto era menor. A não ser que tivesse reagido e dado luta...

- Tenha calma. Vamos ter que desvendar este mistério. Primeiro tenho que fazê-lo falar. Talvez seja melhor investigar a área onde foi encontrado, para ver se há alguém ferido. Melhor chamar a emergência para verificar seu estado de saúde física. Enquanto isso, eu tento descobrir algo, embora pense que não seja tão fácil.

O policial puxou-a para o lado e disse-lhe que não seria aconselhável deixá-la sozinha com o homem. Ela concordou, mas pediu-lhe para esperar na saleta contígua ao consultório, ao que ele acedeu, meio a contragosto. A especialista era ela, afinal.

A mulher voltou, então, sua atenção ao jovem homem, sentado numa confortável poltrona revestida com couro castanho-escuro. Ele tinha o olhar perdido para além da janela, num ponto muito distante dali.

- O que é que o preocupa? Já não pareces perdido ou confuso. Podes contar-me o que aconteceu?

A mulher usava de cautela, ao falar. Sabia que o documento que o policial havia-lhe entregue era original e que era daquele homem. Na carteira de identidade, o nome era Gabriel.

- Fale comigo, Gabriel, por favor.

- Já disse que meu nome não é Gabriel. Gabriel é um tolo. Eu sou Lucius.

- Lucius?

Ele assentiu e sorriu... e seu sorriso tinha um ar beirando o perverso. A mulher sentiu que suas suspeitas pareciam estar certas, mas precisava de mais convicção. Precisava fazê-lo falar, mas tinha que ter cautela. Uma profissional como ela não podia confiar em suspeitas.

- OK, Lucius. Fala-me de ti, por favor. Preciso tentar compreender o que aconteceu.

O homem chegou-se um pouco para a frente e começou a falar. A mulher ouvia atentamente, tentando gravar cada palavra que ele dizia, na sua mente treinada para tratar de casos exceptionais como aquele.

Lucius


- O nome, pelo qual eu respondo, é Lucius. Este poderia muito bem ser Lúcifer, que talvez fosse mais apropriado, tendo em vista minha forma, um tanto violenta, de exteriorização.

- Exteriorização?

Ele ignorou-a e continuou.

- Desde muito tenra idade eu tenho sido uma personalidade difícil de lidar e, por isso, muitas vezes perco o controle sobre meus atos e parto para cima de meus contendores, com extrema violência. Tenho muitas passagens pela polícia, mas não é uma coisa que realmente me deixe preocupado. Quando sou preso, meus companheiros de cela não tardam a conhecer o poder da minha força e, mais especificamente, da minha ira. Não foram poucas as vezes em que tive que ser colocado em cela separada, ou levar banhos gelados, para acalmar-me. O que gosto mesmo é de uma boa briga. Eu tomo estas experiências como treino para a grande batalha. Mal sabem eles o que os espera. Pelo menos eu estarei preparado… Quem não estiver, que sofra as consequências…

A mulher olhou o jovem homem, agora tão seguro de si, completamente oposto ao estado em que havia chegado e confirmou, em sua mente, que estava certa. Aquele homem era mais que um caso complexo a estudar. Era uma bomba relógio, pronta a explodir.

- Que grande batalha é esta?

Ele sorriu.

- Pergunte ao Gabriel...

***

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Anjo Caído (Parte 2 de 2)


O anjo ficou muito sério, pois não esperava que uma proposta daquelas fosse possível de ser concebida, menos ainda de ser proferida em voz alta. O preço era mesmo muito alto, pensou. Ele sabia, todavia, que tinha que tomar uma decisão rápida.

- Minhas asas? Eu não posso…

- Podes, se quiseres. Afinal, para que elas servem aqui, neste limbo, neste lugar abandonado, onde estarás em castigo por muitos milênios?

O demónio era mestre na arte da persuasão e sabia usar, e muito bem, as suas artimanhas para convencer o outro.

- Olha…

E virou-se, mostrando suas costas, onde duas cicatrizes, do tamanho de uma mão, cada uma em um lado, na altura dos ombros, marcavam os lugares onde antes haviam estado suas próprias asas.

O anjo sentiu-se perdido, completamente sem palavras, ao ver o que havia acontecido ao outro.

- Eu também fui um anjo e também tinha minhas próprias asas. Mas fui destituído delas pela ira do todo-poderoso. No entanto, eu sobrevivi…

- Eu pago o preço. Mas deixa-me ver a minha amada, pelo menos uma vez mais.

O demónio sorriu e estendeu a mão ao anjo...

- Chega disto!

Bem naquele momento, em que uma grande negociação fechava-se, entre os dois seres imortais, a voz do todo-poderoso, forte e dramática como um trovão, causava duas fortes emoções no limbo. Ao demónio, causou terror e medo. Ao anjo, sentimentos que pouco conhecia: ódio e rancor!

- Eu te preveni. Cuidado com o que desejas… e a ti, avisei-te para ficar longe daqui, mas nenhum dos dois importou-se. Agora vão ambos conhecer o peso da minha mão.

E o todo-poderoso baniu o demónio para todo o sempre, jogando-o nas profundezas de um inferno, do qual jamais sairia. Em seguida, dirigiu-se ao anjo.

- Tu escolheste teu destino. Agora vais poder ver a tua tão amada, como querias. O preço que ias pagar ao demónio pagas a mim, só que com altos juros. Agora sairás da minha presença, para todo o sempre... ou pelo tempo que conseguires existir…

E, ao arrancar-lhe as asas, lançou-o fora do limbo, destituindo-o de todos os seus poderes angelicais. Deu-lhe um corpo físico e uma vida tão imprevista quanto a dos homens... assim como uma maldição...

- Quanto mais conviveres entre os homens, mais vais esquecer a tua vida de anjo, até que, se tiveres sorte para viver o bastante, esquecerás completamente quem eras.

***

Na noite chuvosa, em meio ao fulgor momentâneo dos relâmpagos e ao repetido ribombar dos trovões, uma silhueta caminha por uma rua deserta do subúrbio, a procurar, em cada porta, o sinal certo. Cada clarão converte-o em mais detalhes. Suas costas estão a sangrar e o corpo está desnudo. Ele para em frente à uma porta e vê que é o lugar que procura. Sobe o pequeno lance de três degraus e bate na fria e dura madeira.

Uma mulher de idade avançada abre-lhe a porta e escandaliza-se ao ver o estado do homem, que parece um mendigo, encharcado de chuva e com um ar desesperado ou, talvez, enlouquecido. Ela não sabia distinguir qual daqueles dois estados podiam aplicar-se ao homem.

- Eu tenho que vê-la, por favor.

- Vá embora ou eu chamo a polícia.

- Por favor, minha senhora… eu preciso vê-la, nem que seja por um minuto. Custou-me tanto encontrar este lugar…

A mulher tentou fechar a porta, mas o homem apoiou-se na maçaneta e, perdendo o equilíbrio, caiu para dentro, aos pés dela. A mulher não podia deixar aquele homem nu, caído no tapete da entrada, a sangrar. Arrancou a toalha da mesa e estendeu sobre seu corpo. O homem resmungou o nome da filha, pedindo para vê-la.

- De onde tu conheces a minha filha? Oh, cubra-se, pelo amor de Deus!

- Eu sei que ela está adoentada por minha causa. Por favor, senhora. Preciso vê-la.

- Chegaste tarde demais. Ela está nas últimas. Já não há o que se possa fazer.

- Oh! Não pode ser possível. Não pode ser possível!

O homem irrompeu em um pranto inconsolável e a mulher comoveu-se, percebendo que o que ele dizia e o que sentia eram verdadeiros. Convidou-o para ir ao quarto, onde a filha jazia. Ao ver sua amada, quase sem vida, deitada na cama, o homem chorou mais ainda. Aproximou-se do corpo e tocou-lhe a face. Ela abriu os olhos, com muita dificuldade e olhou para o jovem. Ele tinha um aspeto lastimável, mas pareceu sorrir. Ela tentou levantar a mão e tocar-lhe. Ele segurou-lhe a frágil e pálida mão, levou-a aos lábios e beijou, suavemente. Dentro de si, um fogo pareceu arder com o calor de mil fornalhas acesas.

- Minha querida. Que medo eu tive de não chegar a tempo. Perdão, meu grande amor…

A moça tentou sorrir, mas era um esforço muito grande. Tentou falar, mas apenas conseguiu balbuciar uma única palavra, num sussurro quase inaudível.

- Anjo…

Ela fechou os olhos muito devagar. Sua expressão deixou de transparecer tristeza e transmutou-se em algo mais sereno, como se uma inesperada paz tomasse conta de si, naquele momento. Ele aproximou-se e tocou seus lábios, muito suavemente, num beijo frágil como o toque das asas de uma borboleta. Ela respondeu, debilmente, ao contacto da boca daquele jovem, martirizado por uma dor quase insuportável. Suas últimas forças esvaíram-se, finalmente, naquele único beijo, trocado entre os amantes impossíveis. Seu derradeiro suspiro foi na boca de seu amado.

Ele deitou a cabeça no colo dela e chorou copiosamente, como uma criança que experimenta a angústia da perda, pela primeira vez... o que não estava longe da verdade.

 A mãe olhou o jovem enrolado na toalha de mesa, com as costas ainda a sangrar, abraçado ao corpo já sem vida da filha e perguntou-lhe o que aquilo significava.

- É uma longa história...

- Preciso tratar do funeral, mas antes, deixa-me cuidar destes ferimentos... Enquanto isso, tu contas o que te aconteceu.

E ele contou-lhe sua inacreditável saga. A mulher ouviu, com atenção, cada detalhe, como se estivesse ouvindo o relato de um sonho. Não sabia se acreditava naquela loucura ou se considerava a si mesma e à filha, duas afortunadas.

- Admito que seja uma bela história. Um tanto delusória e triste, mas bela, mesmo assim.

O homem sorriu. Era um sorriso consternado, quase um pedido de socorro. Sabia que acreditar no que havia falado pareceria loucura, mas resolveu que não tinha que insistir em dar mais detalhes. Por ora, bastava aquela verdade, apesar de parecer inconcebível, à primeira vista. Terminou, então, o relato com algumas perguntas perturbadoras.

- É isso que chamam de amor, os homens? É sempre assim tão angustiante este sentimento entre as pessoas? Nunca conheci uma aflição tão grande como esta. É por isso que alguns evitam-no de todas as maneiras? Nunca pensei que fosse possível sentir uma dor tão lancinante quanto a que sinto agora. É preferível morrer que viver com isto a maltratar tanto a alma. É mesmo uma sensação horrível…

A mulher olhou o jovem, sentindo uma tristeza pungente a dilacerar-lhe o espírito, sem saber, com certeza, o que responder-lhe. Disse-lhe, entretanto, a única coisa que conseguiu, naquele momento e que, para si, era a mais pura verdade.

- Nem sempre é assim, meu rapaz... Nem sempre... Às vezes, um único contacto, um breve momento já valem a pena. O que importa é a intensidade do sentimento. O amor consegue curar até mesmo as mais profundas dores e transformar as mais horríveis cicatrizes em memórias, somente. Lembre-se disso, no futuro, pois é um poder grandioso demais, para ser menosprezado ou banalizado.

***

Alguns longos anos se passaram. O rapaz, que inicialmente evitava o contato humano, expondo-se muito pouco e usando subterfúgios para não mostrar suas estranhas estigmas, amadureceu e aprendeu a lidar com a dor e com as limitações da sua condição e aparência física. Não queria ser considerado um masoquista, adepto de estranhos jogos de autoflagelo e mutilação, ou mesmo um louco.

Esperava que na hora certa, com a pessoa certa, ele, talvez pudesse mostrar evidências do que havia passado. Sua trágica história estava escrita nas marcas que o corpo iria carregar, enquanto vivesse. Mais profundas que as do corpo, porém, eram suas cicatrizes na alma: as marcas indeléveis do seu passado, em outra condição de "vida". Eram também suas provas de alguma vez, quase já esquecida, haver feito parte da legião do amor infinito do todo-poderoso.

Sabia que se o tempo passasse muito depressa, até mesmo aquelas memórias acabariam por dissipar-se por completo... como uma maldição... ou uma dádiva...

Infelizmente o tempo era, também, servo do todo-poderoso e apressou-se a passar mais rápido que o homem conseguiu reter as memórias... conforme fora previsto pelo mestre de todos os mestres...

***

Um homem de pele muito clara e cabeça calva viu a pessoa que saía da estação, com um ar sombrio, como se carregasse um fardo maior que merecesse e viu que era a perfeita circunstância para entrar em contato. Fingiu distração e deixou-se esbarrar, fazendo com que os pacotes que carregava nas sacolas às suas mãos, caíssem todos sobre o passeio...

***

- Eu juro que vi, no corpo dele, cicatrizes parecidas com aquelas nas minhas costas.

- Deves ter sonhado, ou era efeito do álcool. Sabes que não pode ser, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela tinha razão. Eu devo ter-me enganado. Não podia ser...

Sacudi a cabeça, como quem tenta desvencilhar-se de um mau pensamento e saí. Eu sabia que às vezes sonhava que podia voar como um anjo e que aquilo era uma evidência a comprovar que meus sonhos poderiam mais que isso, apenas. Ou talvez não...

***

Agora, olhando, assim, seu corpo tão pálido e tão plácido, deitado na cama, ao meu lado, tento não fazer movimentos bruscos, para não acordá-lo. Esta sua tranquilidade faz-me crer no poder de um amor, que é capaz de vencer todas as dores e que parece emanar dele, mesmo quando dorme como um humano. 

Observo as cicatrizes, pouco disfarçadas pelas tatuagens muito bem feitas e sinto que a fortuna fê-lo aproximar-se de mim, tornando-me um ser tão especial quanto ele. Tenho ímpeto de tocar-lhe as costas, de leve, tentando apaziguar-lhe toda a dor que alguma vez sentiu e todas as provações pelas quais passou.

Nunca tive coragem de perguntar-lhe como conseguira fugir do inferno em que foi jogado e, para falar a verdade, não sei se, realmente, me interessa. Meu anjo caído dorme em paz. Eu vivo em paz, na paz dele... e é o que me basta...

Beijo suas cicatrizes, como quem deseja a cura de todos os males do mundo e sinto que sua musculatura reage ao calor morno dos meus lábios. Ele geme, baixinho e vira-se um pouco. Seus olhos verdes fixam-se nos meus e eu penso que o amor é uma conexão entre o divino e o humano e que quanto mais ele cresce e intensifica, mais próximos do divino nos tornamos. 

Ele parece ler meus pensamentos e puxa-me para si, abraçando-me com seu corpo cálido. Neste momento, sinto que eu poderia voar, mesmo sem as asas que o todo-poderoso retirou-me, quando lançou-me ao limbo, por tentar desafiar suas ordens e fazer pacto com seu anjo desobediente... 

Ele passa as pontas dos dedos nas minhas cicatrizes e diz-me que tudo vai ficar bem... e eu acredito nele, afinal. Ele fez-me recuperar a memória perdida dos tempos em que ambos vivíamos no paraíso e que éramos parte do amor do amor...

Vivi tanto tempo entre os homens, que cheguei a esquecer-me completamente quem eu era, até que ele esbarrou em mim, talvez de propósito, talvez por acaso... e mudou, totalmente, minha vida...

Teria o divino reconsiderado e decidido nos dar uma segunda chance? Teria ele feito um pacto de recuperação de ambos, se aquele doce demónio conseguisse fazer-me ver, novamente, o lado positivo do amor?

Acho que nunca saberei a verdade...