sábado, 21 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 4)

Gahiin

- Doutora, melhor vir até a recepção… com urgência…

A mulher levantou os olhos do computador, onde trabalhava, a fazer anotações sobre o paciente mais complexo que já havia passado por aquele consultório e fixou-os na jovem que entrara, com uma expressão preocupada.

Naquele dia, a psicóloga vestia um blazer azul-marinho, com saia reta até a altura dos joelhos, no mesmo tom. Uma blusa branca de algodão, simples, com gola arredondada, fazia conjunto sóbrio com o terninho e com os sapatos pretos de saltos altos. Tinhas pernas esbeltas e bem proporcionadas. O cabelo estava preso atrás com grampos, num coque, deixando o rosto já maduro, bastante encantador, à mostra, evidenciando-lhe as belas maçãs do rosto. Dir-se-ia que estava quase a chegar à casa dos quarenta, mas a idade caia-lhe muito bem. Era uma mulher bastante atraente. 

Ela já havia-se habituado com as mensagens subliminares no discurso da estagiária. Quando falava daquele jeito, estava com alguma situação difícil de lidar. Ela sabia que estava no horário reservado a Gabriel e que ele já deveria estar sentado à sala de espera. Pousou os óculos de leitura em cima da escrivaninha, levantou-se, aprumou a roupa e seguiu a moça.

Gabriel estava sentado na poltrona, de costas para a janela virada para o centro da cidade. Tinha os olhos um tanto perdidos e assustados e um grande corte, a sangrar, na face esquerda. A mulher aproximou-se, rápida. Não era a primeira vez que aquele homem chegava ao consultório em tal estado de confusão e a sangrar. O ferimento parecia um tanto profundo e requeria cuidado imediato. Ela pediu a caixa de primeiros socorros à secretária e voltou sua atenção ao homem, aflita por saber o que havia acontecido daquela vez.

- Gabriel? O que houve? Foste atacado na rua?

Ele pareceu mais confuso. Olhou-a com aquela expressão estranha, a qual ela já deparara em outras ocasiões. Aquele não era o Gabriel que ela conhecia. Pela expressão vazia no olhar e na face, poderia ser qualquer outro, ainda a tentar manifestar-se. Ela tinha que ir com calma. Limpou o corte, passou um antisséptico e decidiu deixar assim, para que a ferida respirasse um pouco, antes de ser coberta com um curativo. O sangue já havia estancado. Era uma ferida muito precisa, como o corte de uma lâmina. Pela profundidade, havia apenas atingido sua face de raspão, senão era caso para a Emergência de hospital.

- Vamos entrar. Conversamos lá dentro.

Uma vez acomodado confortavelmente na usual poltrona de couro castanho, o homem olhou-a com outros olhos. Ela teve a impressão que mudaram de cor. Aquele pálido azul tinha uns tons cinzentos, naquele momento. Sentiu-se perturbada, mas bem poderia ter sido, apenas, impressão sua, mesmo. Ele pareceu-lhe um completo desconhecido, a tentar compreender como chegara ali. Ela tomou coragem e perguntou.

- Gabriel? Está tudo bem agora? Como foi que te cortaste deste jeito?

Ele não sorriu. Permaneceu muito sério e com voz muito grave, falou.

- Eu não sei ao certo. Lembro muito pouco de como cheguei cá.

- Feche os olhos, então, e relaxe. Tente recordar o que aconteceu.

O homem fechou os olhos. Por uns instantes manteve o cenho franzido, depois, como se uma porta abrisse em sua memória, mudou a expressão do rosto e começou a falar.

- Sei que venho de muito distante, de além-mar, onde os campos são tão vastos quanto a coragem dos guerreiros que derrotei. Eu nasci um lutador e, as coisas que aprendi no meu percurso de vida, sempre levaram-me a batalhar pela sobrevivência. Não sei porque vim parar nesta terra, mas é a terceira vez que lembro-me de aqui estar. O nome, pelo qual me conhecem, nesta dimensão, é Gahiin. Sou filho da Terra e à ela tenho dedicado minha luta. Sou amante do vento e das tempestades e, por isto, viver ao extremo e em estado de constante risco, é uma das muitas particularidades, exclusivamente minhas. Sou muito aficionado de desportos radicais e altas velocidades, que nunca me assustaram. Ao contrário, sou viciado em adrenalina. Muitas vezes costumo partir em aventuras de preparação, por dias a fio, no meio do mato, no rio, no mar ou nas montanhas. Minha força, resistência e coragem serão características extremamente úteis, quando a grande hora chegar.

A mulher quase não conseguiu fechar a boca, de tão surpresa. Fora pega desprevenida.

(Mais um personagem? Como era, de alguma maneira, possível? Já eram sete e pouca luz ainda via, no grande mistério, que era aquele homem.)

Ela olhou aquele que era o dono do corpo, Gabriel, com uma alguma piedade. Gahiin parecia ser um homem vigoroso, dominador e independente. Não tinha aquele charme imediato de Phil, mas era um homem muito forte, com certeza. O rapaz percebeu que ela tentava absorver aquela informação, com certa dificuldade. Ao invés de tentar acalmá-la, como se lesse seus pensamentos, apenas resolveu dizer o que sabia ser de alguma importância, naquele momento.

- Quantos de nós já conheces? Sete? Então falta-te apenas conhecer Joe. Talvez ele te entregue a chave daquilo que procuras. Ele, na verdade, é a própria chave. A chave do mistério é Joe. Não é Gabriel, como tu poderias pensar…

Os olhos da mulher arregalaram-se quando o homem levantou-se, estendeu-lhe a mão, e saiu do consultório, sem dizer mais nada.

Mesmo sendo uma pessoa bastante estável, ela sentiu uma espécie de vertigem. Teve que apoiar-se na secretária, para não perder o equilíbrio e cair ali mesmo.

Como iria encontrar o tal Joe? Se até aquele momento ainda não havia-se manifestado, quando iria, finalmente, fazê-lo?

(Oito personalidades? Oito tipos diferentes? Oito guerreiros, na verdade! E, pelo jeito, oito grandes lutadores… Aquilo era, realmente, muito assustador!)

Joe

 - Doutora, Gabriel já não vem à consulta há mais de duas semanas. Será que aconteceu algo?

- Vamos ver Phil, assim que acabarmos aqui, hoje. Depois daquele encontro com Gahiin, uma coisa ficou muito clara. É bem provável que tenhamos problema... e logo. Ele é a única pessoa que pode nos dizer algo, já que tem um programa de manifestação mais ou menos previsível. Se não fosse ele...

A frase ficou assim, meio dita, meio pensada. Os pensamentos da psicóloga foram além do profissional. Ela queria desvendar o grande mistério. Queria curar o paciente, por quem tinha grande consideração. Precisava da ajuda de Phil, para chegar a Gabriel, mas havia mais. Muito mais. Ela tentava não pensar muito em outra coisa, mas sentia uma atração muito forte por Phil. Por que sentia aquilo por aquele personagem específico e não por outra pessoa, ou mesmo por Gabriel, a personalidade oficial, ela não conseguiria dizer, mas sabia que sentia. E não era um simples interesse.

A mulher balançou a cabeça, como se recusasse pensar mais naquilo. Precisava manter o profissionalismo, a qualquer preço. Havia um perigo iminente para seu paciente e ela tinha responsabilidade sobre o que poderia acontecer-lhe. Aquela história já era complicada demais e intrincada demais, para que ela perdesse tempo precioso a pensar nela, ou na sua tola atração.

Ela tinha que concentrar-se nas prioridades. Gabriel era a prioridade, mas, segundo Gahiin, Joe era a chave.

(Por onde andaria o tal Joe?)

***

- Já faz algum tempo que Phil não aparece. Ele cancelou algumas apresentações. Disse que precisava viajar por uns dias e quando estivesse de volta, avisava. A voz parecia diferente, mas devia ser porque ele disse também que não estava muito bem.

- Quanto tempo faz isto?

- Um pouco mais de duas semanas... talvez três.

- Se o vires, ou se ele entrar em contacto, por favor, peça-lhe para ligar-me. É muito importante.

O rapaz já havia visto as duas por lá, bem mais que algumas vezes e também sabia que eram conhecidas de Phil. Acenou a cabeça, em sinal positivo e voltou a atender os outros clientes. O bar estava em ritmo acelerado, como usualmente, naquele horário.

Duas, talvez três semanas... deve ter sido desde que o paciente estivera no consultório com um ferimento na face. Talvez por aquele motivo não havia aparecido. Não queria ser visto com um corte daqueles na face, assim à mostra. Poderia levantar suspeitas e uma série de perguntas muito difíceis de responder.

(Quem poderia ter feito aquilo? Quem poderia fazer mal a um homem tão doce, como Gabriel, ou tão atraente como Phil?)

***

Algumas noites depois, na quarta-feira, a psicóloga estava ainda no consultório, tentando juntar todas as peças do puzzle que tinha em mãos. Era tarde, a secretária já havia saído e ela tinha tudo fechado e as luzes apagadas, exceto a de sua escrivaninha, onde procurava, no meio das anotações, descobrir alguma luz, algum detalhe deixado nas conversas entre ela e os personagens, mas não conseguira muita coisa.

O segurança já havia passado e perguntado se ela precisava de alguma coisa. Ela havia dito que ia sair em poucos minutos, por isso não precisava de mais nada. Ele verificou as portas e janelas e despediu-se. Ela ouviu-o sair e o barulho do elevador a movimentar-se. Estava sozinha. Precisava concentrar-se. Talvez houvesse mais algo que ela não estivesse percebendo na história.

(Batalhas. Grandes batalhas.  Que diabos de batalhas? E Joe... Onde estava Joe?)

Ouviu novamente o barulho do elevador. A porta abriu-se. Passos. O segurança, um homem que tinha um apreço muito grande por ela, devia estar preocupado. Sem levantar a cabeça, ela falou.

- Já disse que estou bem. Não se preocupe, pois vou sair em minutos. Podes fechar tudo. Boa noite.

- Ok. Boa noite.

O homem saiu, usando o elevador. Ela respirou aliviada. Precisava mesmo terminar aquilo.

Pouquíssimos minutos depois, ouviu a porta do elevador novamente. Ela sorriu, vencida. O segurança mesmo estava preocupado com ela e, talvez, tivesse razão. Considerou que, provavelmente, fosse mesmo melhor que acabasse o trabalho em casa. Assim teria mais tranquilidade e não precisava preocupar o pobre homem. Além do mais estaria em sua própria casa, segura e confortável, sem os sapatos e a roupa de trabalho... Àquela hora já estaria de pantufas e pijamas...

- Ok. Ok. Já vou sair...

A mulher desligou o computador, marcou as anotações que tinha num pequeno caderno de apontamentos, fechou-o, guardou-o e levantou-se, pronta para sair.

- Vamos. Já vi que não ficas em paz, se eu estiver sozinha aqui, assim tão tarde.

- Não fico mesmo. A sua segurança é muito importante para mim.

- Obrigada. Às vezes penso que sou mimada demais, sem achar que mereço toda essa atenção. Mas, não precisava subir três vezes para verificar se eu estava bem.

- Merece sim. Mas eu só subi duas vezes...

- Devo mesmo estar cansada. Tive a impressão que foram três, mas devo ter-me enganado.

Ele não sorriu. Acompanhou-a até o carro, esperou que ela partisse e, só então, tomou seu caminho, a pé, para casa. Manter a doutora a salvo, era responsabilidade sua. Não podia deixar de sentir-se incomodado em deixá-la trabalhar sozinha, sem que ele tivesse a certeza que estava bem. Mas foi para casa intrigado com a confusão que ela fez...

Não percebeu, porém, que a poucos metros dali, um carro partiu, saindo na mesma direção que o outro.

***
Deitada, com os pés esticados sobre a cama e com o computador no colo, a mulher lia as notas tiradas nas avaliações sobre seus pacientes. Estava mais concentrada em um, especificamente, tentando juntar os detalhes de cada personalidade com a qual já havia cruzado até ali. Já passava das onze da noite, por isso decidiu que ia parar e dormir, finalmente. Seu dia havido sido bem longo e ela desejava uma merecida noite de sono. Arrumou as coisas e deitou-se.

Embora tentasse relaxar e adormecer, seus pensamentos voltavam sempre para o mesmo ponto: Joe. A chave...

Foi então que a campainha tocou.

- Não é possível! À esta hora. Quem poderá ser?

Mesmo sabendo que não era a hora mais adequada, foi até a porta. Às vezes as emergências aparecem nas horas mais impróprias. Ela, sendo a doutora, sabia bem... Levantou-se e foi até a porta. Espiou pelo olho mágico e quase não acreditou no que viu. Abriu a porta, com um puxão forte, tamanha a surpresa que teve.

***

- Soube que andavas à minha procura, mas não pude aparecer logo. Tive que segui-la, depois que saiu do consultório, mas não queria ser visto por ninguém, por isso demorei a subir. Precisamos mesmo conversar. É mais que hora...

- Mas, como...?

- Calma, doutora. Não vou fazer-lhe mal. Todos sabem quem eu sou. Eu sou um pacifista e não lhe represento nenhum perigo. Eu apareço quando os guerreiros estão em conflito ou cansados demais para lutarem. Chamam-me Joe – um nome comum para um homem comum.

- Finalmente, Joe. Tenho ouvido falar muito de ti, ultimamente. Preciso de sua ajuda, ou teremos um grande problema num futuro muito próximo. Todos anunciam-me que está por advir uma grande batalha. É sobre ela que devemos conversar. Como ninguém quis antecipar-me detalhes, tenho estado cada vez mais apreensiva.

- OK. Vou dar-lhe todos os pormenores do que eu sei e da grande batalha. Também de como podemos enfrentar o conflito, mas é melhor sentar-se...

A psicóloga olhou o homem que acabara de entrar com um misto de curiosidade, apreensão e uma grande ansiedade. Ele tinha uma cicatriz na face esquerda, visível a quem olhasse com cuidado, mas nada assustador. Sua expressão passava-lhe uma tranquilidade inexplicável.

Ela suspirou e sentou-se. Era a hora da verdade... finalmente!


***

1 comentário:

  1. Sei que ficou um pouco longa, mas precisava terminar a apresentação dos personagens e aumentar o conflito. Agora só falta a grande batalha.

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