domingo, 8 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 3)

Rael


- Sei que ele é um homem excepcionalmente atraente, carismático e sedutor, mas asas nas costas, foi forçar demais a barra... Pegou pesado demais…

- Pois foi, mas quem sabe o significado seja outro. Na próxima vez, vou tentar obter mais detalhes. Não há como convencer-se a respeito de uma história mirabolante destas, sem ficar a pensar… e muito… a respeito das palavras e do que está por trás delas, mas enfim, em casos como este, nunca se sabe…

- Pena. Pareceu-me tão equilibrado.

- Mas o dono do corpo é Gabriel. Não esqueçamos disso…

As duas mulheres, uma terapeuta experiente e uma estudante de psicologia, que fazia sua tese de mestrado na clínica da outra, funcionando às vezes como recepcionista, secretária e ajudante, discutiam o estranho encontro entre o terceiro personagem contido, por assim dizer, no mesmo recipiente humano. Haviam esquecido, quase completamente, que Phil havia mencionado um outro nome, que poderia ser bem mais perigoso que os outros.

(Quem, afinal, seria Rael?)

***

-Olha para mim.

- Achas que este tipo de atitude ou o teu tom de voz, assim direto e agressivo, vai intimidar-me, de alguma forma? Não deves, mesmo, conhecer-me. Nem tu, nem nenhum dos outros vai conseguir nada com este tipo de coerção. A tua hostilidade não vai ajudar em nada a resolver este caso.

- Ajudar? Quem disse que eu preciso de ajuda? Sei muito bem cuidar de mim e sei, também, que os outros são fracos. Se eles curvam-se a ti, podes perder a esperança comigo. Eu não costumo curvar-me perante ninguém.

- Que és tu, afinal, que a arrogância domina com tanta firmeza?

- Meu nome é Rael e sou um rebelde. Não luto por ninguém, mas por mim. Minha pátria é onde meus pés pisam, naquele momento e nunca fiquei em nenhum lugar o tempo suficiente para criar raízes. Não me apego nem às coisas, nem às pessoas. Minhas experiências com elas não foram felizes, no passado e, por isso, mantenho-me longe, numa constante e interminável viagem. Sou um assassino a soldo. Meu sangue frio é umas das características mais marcantes do meu currículo e, posso dizer, com certeza, uma mais-valia poderosa.

A mulher sentiu um desconfortável arrepio a subir-lhe a espinha. O músico estava certo: ele era mais perigoso que todos os outros personagens. Assassino a soldo era caso para a polícia. Quanto daquela loucura era imaginada e quanto era verdadeira, ela ainda não sabia, mas tinha certeza que agir com cautela, nunca era demais. A prudência era necessária a qualquer hora.

Quando fora abordada pelo homem, na rua, a mulher percebera que estava diante de um homem com inteligência rara e com astúcia de raposa. Ele aparecera poucas semanas após a conversa com Phil e abordara-a na saída da clínica. Seu aspecto desleixado, com a barba por fazer, as roupas sujas e os cabelos desalinhados, não a assustaram tanto quanto seu discurso de agora. A terapeuta sabia que podia correr perigo. Por que razão Rael entrara no jogo, ela ainda não sabia, mas bem podia ser um lance estratégico a ser considerado.

- Tenho que ir agora. Uma batalha pode vencer a guerra, se for bem preparada e eu tenho que estar pronto. A propósito, já falaste com Thomas? Ele pode ser um grande aliado, se souberes levá-lo. Quem sabe não tenhas mais sorte…

- Thomas?

Os olhos da mulher arregalaram. A situação complicava cada vez mais. Ela começava a sentir medo.

- É. Thomas… é este o nome…

Thorben / Thomas


Ela encontrou Gabriel sentado à janela, num café, perto do consultório. Ele parecia distante, pensativo e um tanto preocupado. Seu olhar parecia estar a muitas milhas dali.

- Não esperava encontrar-te aqui…

- Não estás a trabalhar? Ainda não é hora de folga, ou é?

Ela riu. Era a pausa para um merecido café, a meio da tarde. Ao explicar, ele respondeu, simplesmente:

- Ah… Descanso para os guerreiros, então…

Seu sorriso foi um tanto pálido. Algo deixava-o preocupado e ela conhecia bem aquele olhar, assim longínquo e angustiado. Mesmo em sua hora de folga e sabendo que não era dia de terapia, resolveu manter conversa e perguntar-lhe.

- O que é que te preocupa, Gabriel? Pareces distante e sorumbático. Até mesmo teus ombros parecem mais arcados.

- Pode não ser nada, mas tenho lapsos de memória cada vez mais longos. Antes até conseguia lembrar de algumas coisas, como se estivesse em um sonho, mas, agora, passam-se horas em negro, numa escuridão total. Devo estar a enlouquecer…

- Vamos ao consultório. Podemos conversar melhor lá.

- Não tenho muito tempo agora. Também preciso voltar ao trabalho, mas se tiveres um tempo à noite, passo por lá. Sei que não é meu dia de terapia, por isso compreendo que tenhas de verificar.

Ela pensou uma pequena fração de segundo e ripostou, sem titubear:

- Tenho tempo, sim. Venha às oito.

Uma mulher como ela não podia perder uma oportunidade daquelas. Sentia-se mais como uma detetive, que como psicóloga. Parecia uma especialista em traçar perfis perigosos. Mal podia esperar pela noite, quando ia tentar obter mais informações para ajudar a desvendar o grande mistério.

***

- Gabriel, tenho receio que estejas em perigo. Esta confusão mental, esses lapsos de memória… tudo isso contribui para um colapso iminente. Os outros falam em batalha. Que batalha é essa? Consegues resgatar alguma coisa a este respeito? Começo a temer pela tua vida…

- Acho que não deves temer por mim. Tenho certeza que não corro perigo. Os outros estarão preparados, quando chegar a hora da tal batalha…

- Preparados? Como assim, preparados, Gabriel? Nunca falaste assim…

O rapaz, que havia chegado às oito em ponto, olhou para a terapeuta e sorriu. Aquele sorriso, porém, pareceu-lhe estranho, pois ele tinha o cenho franzido e olhava por trás de sobrancelhas cerradas.

- Tens toda a razão. Gabriel trouxe-me até aqui, mas não ficou. Meu nome é Thorben, em homenagem ao deus nórdico do trovão. Talvez eu seja assim chamado, pela minha destreza com o martelo e por aparentar menos força que realmente tenho. Aqui, nesta terra, prefiro ser chamado por Thomas. É muito mais prático. Sou um ferreiro, uma profissão que já foi bastante útil, mas que agora já não serve para nada, por isso , especializei-me em Metalurgia, para poder usar meus conhecimentos e minhas habilidades, com mais rigor. As armas que já fabriquei estão muito bem escondidas. Elas serão úteis muito em breve. Mantenho minha ira controlada, exceto quando meu limite é excedido. Quando isso acontece, ninguém me segura, assim como não se consegue segurar a força dos relâmpagos e dos trovões. Na hora certa, saberei fazer uso desta característica. Por ora, tenho que ter os olhos e os ouvidos em constante estado de alerta.

Àquela altura, a mulher já estava mais que perturbada. Nunca havia conhecido tantos personagens estranhos como aqueles… ainda mais dentro do mesmo corpo. Parecia eu estava dentro de um estranho filme de horror psico-mitológico.

- E isto não te deixa cansado?

- Não de todo. Tudo isso faz parte do processo. É um bom exercício, afinal. Pena que eu não seja tão bom observador quanto Alex.

(- Oh, não! Outro não!)

O rapaz percebeu o pânico na face da mulher e sorriu. Deu-lhe um tapinha na mão, tentando tranquilizá-la.

- Não se preocupe. Alex não é perigoso. Aliás, é bem amigável.

Alex


O pub da esquina estava lotado no happy hour de sexta-feira. A psicóloga e a estagiária entraram depois que o expediente terminara, um pouco mais cedo que o habitual, dispostas a encontrarem Phil. Passaram-se alguns dias, desde a conversa com Gabriel e Thomas e o único cuja presença podia ser mais ou menos prevista era Phil, pelo cronograma de apresentações no bar.

- Gabriel é uma graça de pessoa, por quem tenho uma grande empatia, mas este homem a tocar e cantar… e daquele jeito... mexe mesmo comigo.

A estagiária soltou um risinho matreiro e tocou no braço da psicóloga. Sem dizer nada, a mulher mais velha concordou intimamente. O que ela sentia pelo rapaz também era especial. Quase desejava que Phil fosse o verdadeiro personagem, dono do corpo e a personalidade que dominasse as outras. Além de tocar e cantar, com uma destreza excepcional, vestia-se com uma elegância irrepreensível e era dono de um sorriso encantador.

Ela adorava conversar com ele, embora soubesse que era apenas uma ilusão. Se conseguisse curar Gabriel, Phil desapareceria para sempre. Ela sentia-se em conflito. Por um lado queria livrar Gabriel daquele suplício, daqueles blackouts e da iminência de um colapso nervoso. Por outro lado, sentia-se loucamente atraída por Phil, o homem que emanava um charme fora do comum e que dava-lhe, além de um grande desafio e boa conversa, a sensação de estar mais viva. Artistas tem este poder: até mesmo os mais tímidos podem fazer-nos apreciar a beleza, de maneira única e de sentirmo-nos muito mais vivos.

- Olá, moças. Pelo que vejo ganhei duas fiéis fãs.

As duas mulheres sorriram de uma maneira tão espontânea e aberta, diante daquela declaração, que ele sentiu-se, mesmo, bastante especial.

- Nós apreciamos a tua música, Phil. É mesmo de manter-se fidelidade. Devias gravar um disco…

- Que exagero. Quem iria comprar um disco meu?

- Nós!!!

As duas responderam em uníssono e os três riram ao mesmo tempo. Era bom demais dar umas risadas em boa companhia. Quase podia-se esquecer o grande problema que aquelas três pessoas deviam enfrentar, em um tempo que parecia-se aproximar, cada vez mais, em velocidade acelerada.

- Alex, tenho um trabalho para ti. É super importante!

O estranho havia aparecido do nada e dirigia-se ao músico, que conversava com duas mulheres. Os três viraram-se ao mesmo tempo, mostrando certa surpresa, mas o outro parecia saber com quem falava.

- Faz tempo que não te via. Por onde tens andado? Procurei-te por todo o lado. Tenho um trabalho muito importante para fazeres.

- Desculpa, mas não sei com quem pensas que estás a falar. O meu nome é Phil e sou um músico de bar. Aliás, meu intervalo acabou. Preciso voltar ao palco.

O rapaz virou-se, beijou as faces das duas mulheres e voltou ao palco, para tocar e cantar mais um punhado de músicas. O homem, que ficara sem saber o que dizer, dirigiu-se às duas mulheres.

- Que estranho. Eu tenho certeza que aquele é Alex. Não pode ser outra pessoa.

As duas entreolharam-se. A psicóloga já ouvira falar aquele nome anteriormente e não gostou do que viu e ouviu, ali, naquele momento.  

- Quem é Alex?

- Aquele homem é um dos melhores repórteres que eu conheço. Tem a percepção mais aguçada que eu já vi. Quando entra em um ambiente, basta uma olhada geral e já tem assunto para longas conversas, baseado no que pode observar. Além de ser um bom ouvinte é, também, um bom juiz e um excelente repórter. O uso de suas capacidades pode mudar o rumo dos acontecimentos, dependendo de como usa as informações que passam-lhe pelas mãos… ou pelos olhos…

(- Ai, meu Deus do céu!)

As duas ficaram a olhar, sem dizer nada, para o homem que tocava, eximiamente, uma canção conhecida, no pequeno palco do bar. Um sentimento comum passou pelas duas, num arrepio, como se fosse partilhado, sem ser mencionado, em alta voz… 

...E o sentimento era medo!

***

3 comentários:

  1. Demorou, mas veio. Algumas luzes na trama intrincada, mas que dá-me, além de um prazer enorme em escrever, um desafio descomunal a desenvolver.

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  2. O poder da mente leva-nos tão longe quanto a imaginação nos guia e tu consegues isso de forma eximia, parabéns e continua que os teus leitores querem mais

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  3. Obrigado. Espero manter o nível na última parte... não vai ser fácil.

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