Rael
- Sei que
ele é um homem excepcionalmente atraente, carismático e sedutor, mas asas nas
costas, foi forçar demais a barra... Pegou pesado demais…
- Pois
foi, mas quem sabe o significado seja outro. Na próxima vez, vou tentar obter
mais detalhes. Não há como convencer-se a respeito de uma história mirabolante
destas, sem ficar a pensar… e muito… a respeito das palavras e do que está por
trás delas, mas enfim, em casos como este, nunca se sabe…
- Pena. Pareceu-me tão equilibrado.
- Mas o dono do corpo é Gabriel. Não
esqueçamos disso…
As duas
mulheres, uma terapeuta experiente e uma estudante de psicologia, que fazia sua
tese de mestrado na clínica da outra, funcionando às vezes como recepcionista,
secretária e ajudante, discutiam o estranho encontro entre o terceiro
personagem contido, por assim dizer, no mesmo recipiente humano. Haviam
esquecido, quase completamente, que Phil havia mencionado um outro nome, que
poderia ser bem mais perigoso que os outros.
(Quem, afinal, seria Rael?)
***
-Olha para mim.
- Achas que este tipo de atitude ou o teu tom
de voz, assim direto e agressivo, vai intimidar-me, de alguma forma? Não deves,
mesmo, conhecer-me. Nem tu, nem nenhum dos outros vai conseguir nada com este
tipo de coerção. A tua hostilidade não vai ajudar em nada a resolver este caso.
- Ajudar? Quem disse que eu preciso de ajuda?
Sei muito bem cuidar de mim e sei, também, que os outros são fracos. Se eles
curvam-se a ti, podes perder a esperança comigo. Eu não costumo curvar-me
perante ninguém.
- Que és tu, afinal, que a arrogância domina
com tanta firmeza?
- Meu nome é Rael e sou um rebelde. Não luto
por ninguém, mas por mim. Minha pátria é onde meus pés pisam, naquele momento e
nunca fiquei em nenhum lugar o tempo suficiente para criar raízes. Não me apego
nem às coisas, nem às pessoas. Minhas experiências com elas não foram felizes, no
passado e, por isso, mantenho-me longe, numa constante e interminável viagem.
Sou um assassino a soldo. Meu sangue frio é umas das características mais
marcantes do meu currículo e, posso dizer, com certeza, uma mais-valia
poderosa.
A mulher
sentiu um desconfortável arrepio a subir-lhe a espinha. O músico estava certo:
ele era mais perigoso que todos os outros personagens. Assassino a soldo era
caso para a polícia. Quanto daquela loucura era imaginada e quanto era verdadeira,
ela ainda não sabia, mas tinha certeza que agir com cautela, nunca era demais. A
prudência era necessária a qualquer hora.
Quando
fora abordada pelo homem, na rua, a mulher percebera que estava diante de um
homem com inteligência rara e com astúcia de raposa. Ele aparecera poucas
semanas após a conversa com Phil e abordara-a na saída da clínica. Seu aspecto
desleixado, com a barba por fazer, as roupas sujas e os cabelos desalinhados,
não a assustaram tanto quanto seu discurso de agora. A terapeuta sabia que
podia correr perigo. Por que razão Rael entrara no jogo, ela ainda não sabia,
mas bem podia ser um lance estratégico a ser considerado.
- Tenho que ir agora. Uma batalha pode vencer
a guerra, se for bem preparada e eu tenho que estar pronto. A propósito, já
falaste com Thomas? Ele pode ser um grande aliado, se souberes levá-lo. Quem
sabe não tenhas mais sorte…
- Thomas?
Os olhos
da mulher arregalaram. A situação complicava cada vez mais. Ela começava a
sentir medo.
- É. Thomas… é este o nome…
Thorben
/ Thomas
Ela encontrou
Gabriel sentado à janela, num café, perto do consultório. Ele parecia distante,
pensativo e um tanto preocupado. Seu olhar parecia estar a muitas milhas dali.
- Não esperava encontrar-te aqui…
- Não estás a trabalhar? Ainda não é hora de
folga, ou é?
Ela riu.
Era a pausa para um merecido café, a meio da tarde. Ao explicar, ele respondeu,
simplesmente:
- Ah… Descanso para os guerreiros, então…
Seu
sorriso foi um tanto pálido. Algo deixava-o preocupado e ela conhecia bem
aquele olhar, assim longínquo e angustiado. Mesmo em sua hora de folga e
sabendo que não era dia de terapia, resolveu manter conversa e perguntar-lhe.
- O que é que te preocupa, Gabriel? Pareces
distante e sorumbático. Até mesmo teus ombros parecem mais arcados.
- Pode não ser nada, mas tenho lapsos de
memória cada vez mais longos. Antes até conseguia lembrar de algumas coisas,
como se estivesse em um sonho, mas, agora, passam-se horas em negro, numa
escuridão total. Devo estar a enlouquecer…
- Vamos ao consultório. Podemos conversar
melhor lá.
- Não tenho muito tempo agora. Também preciso
voltar ao trabalho, mas se tiveres um tempo à noite, passo por lá. Sei que não
é meu dia de terapia, por isso compreendo que tenhas de verificar.
Ela
pensou uma pequena fração de segundo e ripostou, sem titubear:
- Tenho tempo, sim. Venha às oito.
Uma mulher como ela não podia
perder uma oportunidade daquelas. Sentia-se mais como uma detetive, que como
psicóloga. Parecia uma especialista em traçar perfis perigosos. Mal podia
esperar pela noite, quando ia tentar obter mais informações para ajudar a desvendar o
grande mistério.
***
-
Gabriel, tenho receio que estejas em perigo. Esta confusão mental, esses lapsos
de memória… tudo isso contribui para um colapso iminente. Os outros falam em
batalha. Que batalha é essa? Consegues resgatar alguma coisa a este respeito?
Começo a temer pela tua vida…
- Acho
que não deves temer por mim. Tenho certeza que não corro perigo. Os outros
estarão preparados, quando chegar a hora da tal batalha…
-
Preparados? Como assim, preparados, Gabriel? Nunca falaste assim…
O rapaz, que havia chegado às
oito em ponto, olhou para a terapeuta e sorriu. Aquele sorriso, porém,
pareceu-lhe estranho, pois ele tinha o cenho franzido e olhava por trás de
sobrancelhas cerradas.
- Tens toda a razão. Gabriel trouxe-me até aqui, mas não ficou. Meu nome é Thorben, em
homenagem ao deus nórdico do trovão. Talvez eu seja assim chamado, pela minha
destreza com o martelo e por aparentar menos força que realmente tenho. Aqui,
nesta terra, prefiro ser chamado por Thomas. É muito mais prático. Sou um
ferreiro, uma profissão que já foi bastante útil, mas que agora já não serve
para nada, por isso , especializei-me em Metalurgia, para poder usar meus conhecimentos e minhas habilidades, com mais rigor. As armas que já fabriquei estão muito bem escondidas. Elas
serão úteis muito em breve. Mantenho minha ira controlada, exceto quando meu
limite é excedido. Quando isso acontece, ninguém me segura, assim como não se
consegue segurar a força dos relâmpagos e dos trovões. Na hora certa, saberei
fazer uso desta característica. Por ora, tenho que ter os olhos e os ouvidos em
constante estado de alerta.
Àquela
altura, a mulher já estava mais que perturbada. Nunca havia conhecido tantos
personagens estranhos como aqueles… ainda mais dentro do mesmo corpo. Parecia
eu estava dentro de um estranho filme de horror psico-mitológico.
- E isto não te deixa cansado?
- Não de todo. Tudo isso faz parte do
processo. É um bom exercício, afinal. Pena que eu não seja tão bom observador
quanto Alex.
(- Oh, não! Outro não!)
O rapaz percebeu o pânico na face da mulher e
sorriu. Deu-lhe um tapinha na mão, tentando tranquilizá-la.
- Não se preocupe. Alex não é perigoso. Aliás,
é bem amigável.
Alex
O pub da esquina estava lotado no happy hour de sexta-feira. A psicóloga e
a estagiária entraram depois que o expediente terminara, um pouco mais cedo que
o habitual, dispostas a encontrarem Phil. Passaram-se alguns dias, desde a
conversa com Gabriel e Thomas e o único cuja presença podia ser mais ou menos
prevista era Phil, pelo cronograma de apresentações no bar.
- Gabriel é uma graça de pessoa, por quem
tenho uma grande empatia, mas este homem a tocar e cantar… e daquele jeito... mexe
mesmo comigo.
A
estagiária soltou um risinho matreiro e tocou no braço da psicóloga. Sem dizer
nada, a mulher mais velha concordou intimamente. O que ela sentia pelo rapaz
também era especial. Quase desejava que Phil fosse o verdadeiro personagem,
dono do corpo e a personalidade que dominasse as outras. Além de tocar e cantar,
com uma destreza excepcional, vestia-se com uma elegância irrepreensível e era
dono de um sorriso encantador.
Ela
adorava conversar com ele, embora soubesse que era apenas uma ilusão. Se conseguisse
curar Gabriel, Phil desapareceria para sempre. Ela sentia-se em conflito. Por
um lado queria livrar Gabriel daquele suplício, daqueles blackouts e da iminência de um colapso nervoso. Por outro lado,
sentia-se loucamente atraída por Phil, o homem que emanava um charme fora do
comum e que dava-lhe, além de um grande desafio e boa conversa, a sensação de
estar mais viva. Artistas tem este poder: até mesmo os mais tímidos podem
fazer-nos apreciar a beleza, de maneira única e de sentirmo-nos muito mais
vivos.
- Olá, moças. Pelo que vejo ganhei duas fiéis
fãs.
As duas
mulheres sorriram de uma maneira tão espontânea e aberta, diante daquela declaração,
que ele sentiu-se, mesmo, bastante especial.
- Nós apreciamos a tua música, Phil. É mesmo
de manter-se fidelidade. Devias gravar um disco…
- Que exagero. Quem iria comprar um disco
meu?
- Nós!!!
As duas
responderam em uníssono e os três riram ao mesmo tempo. Era bom demais dar umas
risadas em boa companhia. Quase podia-se esquecer o grande problema que aquelas
três pessoas deviam enfrentar, em um tempo que parecia-se aproximar, cada vez
mais, em velocidade acelerada.
- Alex, tenho um trabalho para ti. É super
importante!
O
estranho havia aparecido do nada e dirigia-se ao músico, que conversava com
duas mulheres. Os três viraram-se ao mesmo tempo, mostrando certa surpresa, mas
o outro parecia saber com quem falava.
- Faz tempo que não te via. Por onde tens
andado? Procurei-te por todo o lado. Tenho um trabalho muito importante para
fazeres.
- Desculpa, mas não sei com quem pensas que
estás a falar. O meu nome é Phil e sou um músico de bar. Aliás, meu intervalo
acabou. Preciso voltar ao palco.
O rapaz
virou-se, beijou as faces das duas mulheres e voltou ao palco, para tocar e
cantar mais um punhado de músicas. O homem, que ficara sem saber o que dizer,
dirigiu-se às duas mulheres.
- Que estranho. Eu tenho certeza que aquele é
Alex. Não pode ser outra pessoa.
As duas
entreolharam-se. A psicóloga já ouvira falar aquele nome anteriormente e não
gostou do que viu e ouviu, ali, naquele momento.
- Quem é Alex?
- Aquele homem é um dos melhores repórteres
que eu conheço. Tem a percepção mais aguçada que eu já vi. Quando entra em um
ambiente, basta uma olhada geral e já tem assunto para longas conversas,
baseado no que pode observar. Além de ser um bom ouvinte é, também, um bom juiz
e um excelente repórter. O uso de suas capacidades pode mudar o rumo dos
acontecimentos, dependendo de como usa as informações que passam-lhe pelas
mãos… ou pelos olhos…
(- Ai, meu Deus do céu!)
...E o sentimento era medo!
***