Às vezes, ele me olha fixamente, me abraça, me beija e conversa longamente comigo, mesmo sabendo que a minha mente funciona muito diferente da dele.
Nossa relação é de cumplicidade, quase uma simbiose. Ele depende da minha companhia, eu dependo dele para sobreviver, embora creia que em estado selvagem - eu nasci em África, afinal - eu possa me virar bem. Ele cuida de mim e eu velo por ele. Faço-lhe companhia sempre. Dou-lhe atenção quando quero ou quando vejo que está precisando. Ele sempre está pronto para me dar atenção, mesmo quando quero ficar sozinho, mas tento ser condescendente e paciente com este homem, para receber minhas compensações mais tarde.
Eu sei quando ele está para chegar em casa. Sinto a sua presença, apenas por instinto, mesmo antes de ouvi-lo ou vê-lo entrar pela porta. Ele conhece meus passos, percebe quando estou por perto e, além de me fazer carinho, com frequência, ainda me faz as vontades. Sabe, também, quando eu entro no quarto, à noite, para pedir um “cheiro”na cabeça e deitar-me ao seu lado. Claro que só faço isso depois de dar uma boa vistoria na casa, pois ele se limita a fechar as portas e apagar as luzes. Alguém tem que cuidar de tudo por aqui, com mais responsabilidade, afinal não é somente a segurança dele que está em jogo.
Sou curioso e diligente. Minhas extravagâncias e rotinas são evidentes e as dele também. Pela manhã, assim que saímos da cama, vamos directos ao banheiro. Gosto de deitar-me no tapete fofo, enquanto ouço a água do chuveiro a escorrer, um som que me fascina. Depois é hora do “desjejum” – do dele e do meu. Nos fins-de-semana, esta sequência muda, estrategicamente, para que eu perceba que vamos ter mais tempo juntos.
Não mexo em nada que não seja meu. Não toco em comida, a não ser que me seja dada, mesmo que eu esteja próximo de um prato feito... para ele. A minha dose vem num pratinho exclusivo ou na minha tigela de ração – também exclusiva.
Não gosto de ver as coisas fora do lugar e me acostumei com aquela sua mania de organização. Roupa suja tem que ser colocada no cesto. Se alguma coisa aparece fora do seu devido lugar, eu paro e fico olhando para ele até que conserte o erro. Minha caixa de areia tem que estar sempre limpinha. Eu aviso assim que acabo de usá-la e, assim que ele a deixa limpa e disponível, vou lá verificar se não ficou com resquícios de cheiros inconvenientes.
Não costumo procurá-lo pela casa, apenas o chamo (ele conhece meu miado especial para isso!) e sigo o som de sua voz, assim que me responde. Assim poupa-me o trabalho de ficar entrando em cada aposento, para ver se o encontro. Faço isto para garantir que não vou ficar só, desavisadamente. Aliás, ele sempre me deixa saber quando vai sair, de todo jeito. Por outro lado, também preciso de sossego e ele respeita estas minhas necessidades de silêncio e tranquilidade. Portanto, se eu colocar meu “manto da invisibilidade” e desaparecer das vistas, é porque não estou disponível. Se ele ficar me chamando, só vou me revelar novamente - se e quando - eu quiser e tiver vontade. No caso, eu chego bem quietinho e fico olhando, só para ver quão ridículo ele parece, a ponto de quase desesperar, por não me ver por perto. Imagino que ele tenha medo de me perder…
Ele pensa que pertenço a ele, mas no fundo, sabe que é o contrário. Quem dita e conduz todos os horários aqui dentro de casa sou eu mesmo. Luzes acesas depois das onze da noite, TV com o som alto, ficar na cama depois das sete da manhã ou dormir no sofá até tarde, são coisas intoleráveis, que eu trato de garantir que não me escapem ao controlo. Refeições nos horários certos, especialmente nos fins-de-semana, são essenciais e eu cuido bem para que esta regra seja cumprida. Minhas horas de sono são sagradas, por isso quando estou a lamber o pêlo, estou-me preparando para uma boa e revigorante soneca. Se me atrapalhar ou me despentear por algum motivo, tenho que recomeçar o trabalho desde o início… Claro que eu deixo evidente que isso me incomoda e… bufo, pois goste ou não, é a forma de manifestar meu descontentamento. Ele sabe que levo horas a me embelezar, afinal…
Quando quero algo, sou insistente. Na maioria das vezes ele cede, depois de algum tempo. Se encostar meu focinho na perna dele e empurrá-lo, significa que estou com fome. Se fico de barriga para cima, quero massagem. Se vou cutucá-lo no sofá, está na hora de me recolher e ir para a cama. Não gosto de portas dos guarda-roupas fechadas, nem das dos quartos e banheiros, por isto faço questão de pedir para abri-las. Quando fico sentado perto da porta de saída, quero dar uma voltinha lá fora. Ele sabe disso. Só me faz restrições ao tempo que fico no corredor e escadas e, também, ao barulho na frente das portas dos vizinhos.
Quase não brigamos, mas quando eu estou de mau humor e o ataco, ele fica chateado e me dá broncas, mas estas não são muito sérias. Somente quando eu fujo pela varanda e entro, pela janela, na casa do vizinho, é que ele fica, mesmo, muito irritado e me põe de castigo. O castigo é uma greve de fala e de atenção. Fico incomodado quando ele faz estas greves. Tento de tudo para que ele me desculpe e para que aquilo dure pouco tempo, mas ele é turrão, quase tão teimoso quanto eu. Eu sei que ele sofre com isso, também, porque me diz, quando pede desculpas e fazemos as pazes.
Aprendi a lidar com ele e ele aprendeu a ler minha linguagem e compreender minhas vocalizações, quase sem erro. Associo palavras que ele usa, com minhas atitudes. Sei responder ao meu nome, reconheço quando menciona a palavra comida, associei o convite ”vamos tomar café?” a ganhar uma colherada de iogurte e sei quando me chama para deitar e dormir. Gosto de tomar água directamente da torneira, mas ensinei-o que puxar-lhe a mão lamber-lhe as gotículas na sua pele molhada, mostra que quero que me sirva da mão em concha. E ele compreende perfeitamente. Algumas vezes tenho que ser mais óbvio ou não consigo passar minha mensagem, mas isso acontece somente quando ele está distraído.
Tenho meus dentes escovados duas vezes por dia. Pode parecer estranho, mas eu gosto – não somente do sabor da pasta de dentes, mas de ter alguns momentos dedicados só a mim. Na maioria das vezes, obedeço ao pedido dele para sentar-me, pois do contrário posso cair de cima do móvel da pia do banheiro. Eu o deixo fazer a operação com calma, sabendo que no fim vou ganhar mais um pouquinho daquela delícia. Depois, ele verifica e limpa meus olhos e nariz com o cotonete, me dá um cheiro na cabeça, um abraço e diz-me, logo em seguida, que estou lindo. É bom ouvir isso de vez em quando… Sei que sou simpático, mas ouvir que sou lindo é muito melhor…
Não tenho aversão a banho, desde que a água esteja na temperatura certa e que venha em chuveiradas gostosas nas minhas costas e barriga. Até gosto. Ele me esfrega o corpo com shampoo e com delicadeza, do contrário eu reclamo. Não fujo do banho, mas não suporto ser enxuto com a toalha. Gosto é de ficar ao sol, secando ao natural, usando meus próprios recursos, mas quero que me escove, de tempos em tempos. Aliás, a escova é um prazer ao qual não abro mão. Se ele esquecer, vou atrás e protesto. Ele acaba se divertindo com isso. Meu pêlo ganha um brilho extra e cheirinho de limpeza. Mais uma razão para ser chamado de bonitão.
Gosto bastante de música, mas nem de tudo que se ouve nesta casa. Ele conhece minhas preferências e fez uma selecção especial de canções com melodias mais harmoniosas, que eu reconheço assim que começam a tocar. Costumamos ter nosso espaço e tempo exclusivos para curtir. Aos domingos à noite, especialmente, enquanto ele passa as roupas a ferro, deito-me por perto, ouvindo àquela sequência, em silêncio, até que termine sua tarefa e chegue a hora de nos recolhermos.
Desconfio logo quando percebo certos movimentos estranhos. Se o vejo com a mala nas mãos, deito-me por perto, quieto e triste, deixando evidente que não aprecio o facto de ele viajar. Quando vai trabalhar é uma coisa muito diferente, pois eu sei que à noite, quando chega, mesmo que seja tarde, vou ter toda a atenção que mereço. Mas quando viaja, nunca sei se aquela situação vai me deixar sozinho por dois dias ou três semanas a fio... e isto me deixa desconsolado. Claro que quando ele volta, eu fico contente, mas deixo sempre manifesto meu desagrado. Faço meu teatrinho particular, que ele já conhece e aceita, dedicando-me tempo e carinho extra. É isto mesmo que quero… Ele tem que pensar que, se me acontece algo, tenho que ter quem me socorra, imediatamente. Será que ele percebe que eu preciso dele, cada vez mais, por perto?
Eu sou um sénior agora (somos, ambos, para falar a verdade). Tenho necessidades diferentes e careço de mais cuidado. Meu tempo com ele é precioso. Ele parece ter-se dado conta disso, quando conversou comigo hoje. Eu o vi lendo algo a este respeito recentemente. Não sei se ele está, de alguma forma, preparado para quaisquer eventualidades. Sei que faz pouco sentido ter expectativas que vou viver tanto quanto ele, mas percebi que chorou quando falou sobre isto. Aliás, tem chorado bastante ultimamente. Quando chora, este lugar me parece tão imenso, tão desolado… Quando ele parece desabar, eu tento permanecer firme como rocha. Então me aproximo, olho nos seus olhos e espero até que a coerência volte, que se recomponha e me diga que está bem. Às vezes até me pede desculpas, por parecer estúpido. Não sei se compreendo o que se passa, mas mesmo assim, mostro que estou ali para o que der e vier, se for necessário. E ele parece contentar-se com isso.
Eu gosto quando me olha com afeição, o que acontece quase sempre. Me faz sentir amado, mimado e especial. Eu sei que ele estima a minha presença, a forma com que eu o saúdo - com uma leve cabeçada - e minhas demonstrações de carinho, porque me dá indicações de que se regozija com isso.
Ele ri. Ele sempre ri. Às vezes apronto alguma, só para ouvir a gargalhada dele. Quem o ouve, deve pensar que é louco, mas não o vejo muito preocupado com isso. Acho que isso o diverte, ao invés de incomodar.
Somos independentes em termos de relacionamentos com outros, mas somos muito apegados entre nós. Sei que ele fala muito a meu respeito. Deve ser por gostar tanto de mim. Gosto quando ele me escova a cabeça e o corpo, me faz massagens, deita sua cabeça sobre a minha ou quando me pega no colo e me abraça ao chegar em casa. Às vezes dança comigo de rosto colado. Gosto de acomodar-me sobre a sua barriga, enquanto ouvimos música ou assistimos à TV, deitados no sofá. No inverno, é mais agradável ainda, pois usufruo do calor de seu corpo. Ele, então, diz que me ama. Eu, em resposta, recito meu “mantra” - um ronronar contínuo - que lhe abranda as preocupações e o faz adormecer. Isto também acalma e atenua minhas tensões. Chego a cochilar ali, bem confortável e aquecido, sabendo que sou bem-vindo e tenho um lugar sempre disponível junto a ele. Só não gosto quando fica várias horas na frente do computador e me dá menos atenção que estou habituado a receber, mas na maioria das vezes ele pára e me dá alguma. Se não, eu sento-me sobre o teclado. Não há como não perceber que já passou tempo demais sem me dedicar algum…
Em termos gerais, minha vida é bem tranquila e sou bem tratado e respeitado. Não tenho acessos de ciúme, pois não tenho motivos para isso, por enquanto. Minha veia possessiva é, porém, bem acentuada e lembro bem que já mostrei quem pertence a quem, quando tive que o fazer. Ele está dentro do meu domínio, portanto me pertence... e ponto final! Nem que eu o tenha que "marcar" como parte do meu território!!!
Bom, agora que já me penteei, vou deitar-me sobre o meu tapete favorito. Minha barriga está cheia e vejo que ele está ocupado com alguém no computador. Minhas músicas favoritas estão tocando e vou relaxar um pouco, até a hora de ser chamado para escovar os dentes e ir para a cama, nossa rotina nocturna, que eu controlo com maestria. Amanhã sei que vou ganhar meu carinho habitual e minha porção de atum, que eu adoro comer quando ele está em casa, na hora do jantar… a não ser que faça um bom peixinho assado e divida comigo… Hummm… O amanhã promete!