domingo, 9 de setembro de 2018

As Pedras Grandes (Parte 2)


- Precisa de ajuda?

- Oh. Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.

- Eles não lhe vão fazer nenhum mal. Por que fariam?

- Eu preciso voltar para a ilha, mas já não vejo a embarcação.

- Embarcação? Não sei de nenhuma embarcação. Por que não vai de carro ou de ónibus?

Ela olhou-nos com uma expressão estranha, como se não soubesse do que falávamos.

‘Deve estar com Alzheimer. Melhor tentar ajudar. Ela parece tão velha’, pensei

- Venha connosco.

Demos-lhe o braço e ela aceitou a ajuda, caminhando ao meio, apoiada aos nossos braços. Parecia mais tranquila. Do que ela tinha medo, afinal?

Os homens mal notaram que nós íamos saindo do local, com a estranha mulher junto de nós. Estavam ocupados com outra coisa.

Já no centro da cidade, depois de atravessar a ponte, deixamo-la no terminal urbano, para pegar o ónibus para o Ribeirão da Ilha, onde ela disse que vivia. Antes de passar pelo portão, todavia, voltou-se e deu um abraço afectuoso em cada um de nós. Depois tirou um pequeno artefacto do bolso do vestido, ao qual estava preso um cordão preto. Entregou-o e disse que usasse para protecção contra todos os males. Aquele amuleto era muito poderoso, segundo ela.

Eu não disse nada. Fiquei a olhar e a imaginar as coisas que as pessoas acreditavam, ainda, em pleno século XXI, mas fiquei feliz que ela estivesse bem e agradecida pelo pequeno gesto que fizemos. Vivemos numa época tão estranha. Por vezes sinto saudades daquela ingenuidade da crença em bruxas e outros seres fantásticos.

Ficamos ao portão do terminal até vê-la entrar, hesitante, no colectivo que ia levá-la de volta à casa, não sem antes olhar para trás e certificar-se que estávamos ali, ainda. Acenamos, uma última vez e fomos embora.

***

Uma velha mulher, vestida de negro, caminhava pelas ruas do Ribeirão da Ilha, à procura de uma determinada casa. Ela parecia um tanto perdida, pois o lugar estava muito diferente do que ela conhecia. Na dificuldade de localizar-se, com precisão, tentava falar com as pessoas que por ela passavam, mas pouca atenção tinha, daqueles que caminhavam às pressas, pelas ruas do bairro, localizado no interior da Ilha.

Teve uma indicação, finalmente, de um jovem, para tentar a rua que descia na direcção da praia, onde havia uma casa antiga, com a cobertura de telhas em calha, muito ‘encarunchadas’ pelo tempo. A casa era pintada de branco, com janelas azuis e era fácil de ser reconhecida, por ser a segunda casa depois da igreja e pelo roseiral, sempre florido, na frente. A descrição que o rapaz fez, pareceu satisfazê-la, pois seus olhinhos negros abriram-se um pouco, com um brilho diferente e uma expressão de agrado iluminou-lhe a face enrugada pelo tempo.

Ela olhou na direcção indicada, deu um longo suspiro e partiu rumo ao seu pretenso destino. Quando chegou à rua da igreja, reconheceu logo a casa e chamou do portão, com a voz meio afectada por causa da idade e da garganta seca pela sede. Apesar de haver chamado somente uma vez, a porta logo abriu-se e uma moça muito bonita veio atendê-la.

A jovem acolheu a estranha, com bondade, apesar de pensar que tratava-se de uma mendiga, de passagem por ali. A anciã sorriu para ela, de maneira um pouco desajeitada e estendeu-lhe a mão esquerda. A moça retribuiu o cumprimento, sem dizer nada, mas com um sorriso aberto, como se reconhecesse uma velha amiga. A velha sorriu, tranquila.

- Tu és uma de nós. Tu sabes porque eu estou aqui…

A moça assentiu, balançando a cabeça, muito levemente, ainda a sorrir e convidou-a a entrar. No mesmo instante, ouviu-se um trovão, não muito longe, e nuvens escuras cobriram o céu da tarde.

Acordei em sobressalto.

- O que foi aquilo?

***

- Andei a ler sobre as bruxas da ilha.

- Ah, sim?

- Uh-hum… É interessante, mas descobri que muita coisa que se dizia era baseada em crendices e, algumas eram mesmo invenções das pessoas…

- Como todas as lendas.

- Acho que muita gente foi prejudicada pela maldade de outras.

- Sempre foi. Maldade, ignorância e medo.

- E interesse.

- Isso mesmo!

- Será que a nossa ‘amiga’ teria sido uma delas? Ela parecia bastante assustada e com medo daqueles homens.

- Não sei dizer.

- Por qual razão as pessoas fazem este tipo de coisas? Que prazer há em fazer maldades?

 - Já tens idade para saber que o ser humano é extremamente complexo. Inveja, medo e ignorância podem causar grandes males. Sabes que, em inglês, a Idade Média, era chamada 'The Dark Ages', não sabes?

- Sabia que foi uma das piores épocas da história da humanidade. Muitas bruxas foram queimadas vivas. Bastava uma pessoa ter pensamentos contrários ao que a Igreja queria que pensassem, para serem acusados de bruxaria e serem condenados. Sei que muitos livros, com informações importantíssimas, foram destruídos. Muitos inocentes foram mortos. Até pelas pestes aquelas pobres pessoas foram acusadas e condenadas.

-  Até pouco tempo atrás acreditava-se que as bruxas foram mais caçadas no auge da Idade Média, porém pesquisas e documentos provaram que foi no fim daquela época e no início da Idade Moderna, já no Iluminismo, quando o protestantismo foi criado. Sabias que muitas das coisas que se afirmavam sobre os poderes das bruxas, como voar nas vassouras e coisas do género, eram alucinações provocados por um fungo que crescia no centeio e que, mais tarde seria usado para sintetizar o LSD? O centeio era armazenado por muito tempo e os fungos cresciam livremente. Quando faziam o pão, nunca se preocupavam em verificar nada. Era uma época difícil e eles não iam jogar o cereal fora, a custo de não terem o que comer.

- A sério?

- Podes imaginar as coisas que as mentes deturpadas e ignorantes podiam fazer, dizer, acusar, sob o efeito de alucinogénos?

- Mas nem todas as bruxas eram más. Havia aquelas que eram também parteiras, especialistas em ervas, em rezas… Algumas das nossas ancestrais devem ter vindo para cá, com estas "especialidades", fugidas das perseguições na Europa.

- Não sei dizer, ao certo, se a maioria era boa ou má, mas sei que, ainda hoje, pessoas inseguras, invejosas, maldosas e ignorantes levantam calúnias umas contra as outras e as pessoas tomam aquilo com verdades, sem nem ao menos verificar a origem das acusações. Basta ires às redes sociais e tens um milhão e meio de exemplos… e já não precisamos de fogueiras para queimar as bruxas modernas.

- Basta um ‘click’, um ‘like’, um ‘share’ ou um comentário…

- Estás a ver? Isso é pior que fogo em palha seca. E vira um incêndio em muito pouco tempo, pois todos têm, sempre, uma opinião sobre aquilo que, na verdade, nem conhecem.

- Pois. É pior que histeria em massa. Eu li sobre a lenda de uma mulher muito bonita que foi acusada de bruxaria na ilha, porque enfeitiçava os homens e dava nós nas roupas penduradas a secar e cortava e emaranhava as tarrafas e redes dos pescadores...

- Uma mulher bonita “enfeitiça” os homens… Na verdade, são eles que se enfeitiçam, mas sabes muito bem como uma mulher determinada pode causar muitos “danos”, por assim dizer.

Riu-se. Sabia muito bem do que eu falava.

- E também como mulheres invejosas podem difamar uma boa moça, por puro despeito… ou os homens, por rejeição. Não há limites para a maldade humana…

***

- Foi tão gentil da parte dela me dar este amuleto. Sorte é sempre bom.

- Cuidado com as coisas em que acreditas.

- Não tem a ver com o que eu acredito e, sim, com gentileza.

- Mesmo assim. Cuidado.

- Vou ter… Será que traz sorte no amor, também?

Olhou para mim com um sorriso. Eu só levantei o sobrolho, em sinal de desconfiança e desaprovação. Deu uma gargalhada.

- Eu sabia que ias fazer esta cara.

Saiu, na direcção da praia, a passos apressados. Não ia esperar por uma resposta, de todo jeito.

Fiquei a olhar, da varanda, enquanto caminhava pela praia, com os pés na água do mar. Parecia uma criança. Parou perto das grandes pedras e ficou a olhar, como se as examinasse. Aquelas histórias de bruxas pareciam ser a fascinação do momento e, as grandes rochas, o ponto de maior interesse.

Eu ri. É bom que tenha interesses por coisas menos corriqueiras e consiga pensar e tirar, por si, conclusões sobre o que lê.

***

Estávamos sentados na varanda, a olhar as luzes reflectidas no mar, à noite, como costumávamos fazer, quando o tempo estava bom. As canecas de café jaziam vazias sobre a mesinha. Estávamos perdidos em pensamentos, sem necessariamente falar. Cada qual ocupava-se com seus próprios pensamentos, …ou quase…, tendo as grandes rochas como pano de fundo. 

- Lembras da primeira coisa que ela disse?

- Não. Tu lembras?

- Claro. Ela disse: “Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.”

- Ah. Ela estava assustada, como sabes.

- Eu me referia ao “eu tinha esperança que vocês viessem”. Como ela podia ter esperança que NÓS viéssemos? Como poderia saber?

- Foi força de expressão.

- Será?

- Não queres que eu pense que ela sabia, queres? Essa história já deu o que tinha que dar. Não te impressiones mais que o necessário.

- E se ela, realmente, sabia?

- Como poderia saber? Mandaste alguma mensagem por e-mail ou chat? Nem imagino aquela mulher, tão velha, com um computador nas mãos… nem com as mãos em um computador.

Percebi que não achou graça da minha piada, por isso, não continuei a conversa. Passados uns minutos, em que parecia estar com os pensamentos muito longe dali, voltou a comentar.

- Esta história ainda não me deixa dormir.

Lembrei do meu sonho e questionei.

- Tens sonhado? Algum sonho incómodo?

- Mais ou menos.

- Tens sonhado ou não?

Voltou-se e olhou-me directa e seriamente.

- Tenho.

Ouvi, com atenção, o sonho, que era idêntico ao que eu havia tido. Impressionante como as histórias eram tão iguais, até mesmo nos pequenos detalhes. Devia haver alguma explicação plausível para aquilo.

Estávamos, ambos, impressionados pela conversa que havíamos tido, conhecíamos o lugar, havíamos discutido detalhes… mas por qual razão os sonhos eram idênticos nos mínimos detalhes, eu ainda não sabia dizer.

Fiquei em silêncio e aquilo foi suficiente para lançar um pouco mais de lenha à fogueira da dúvida e da imaginação. Aquele sorrisinho era um sinal de vitória, mas eu fiz de conta que não o percebi.

- Não achas melhor irmos ao Ribeirão da Ilha, fazer uma pequena pesquisa?

- Subtil… muito subtil… mas acho que devemos, sim.

***

- Ó de casa!

Riu-se de mim, ante a minha demonstração de conhecimento da cultura local.

- O quê? Não é assim?

- É sim.

A porta azul abriu-se e uma moça muito bonita apareceu na soleira da mesma. Reconheci-a no momento que ela sorriu. Pelo jeito, tivemos o mesmo pensamento, pois ambos sorrimos com satisfação. A casa era aquela mesma… e a moça também.

Tínhamos tantas perguntas a fazer, mas mesmo antes que abríssemos a boca para dizer qualquer coisa, vimos o vulto vestido de negro aparecer por detrás da mocinha.

- Entrem. Já esperávamos por vocês.

***

domingo, 2 de setembro de 2018

The Big Rocks (Part 1)



- What do you mean, big rocks?

- Itá, in Tupi-Guarani, means rock and gûasu, means big...

- Was it named by the Indians then?

- I'm not sure, but it makes sense. But my favourite thing about the place is the funny local legend.

- What legend?

- About the witches...

Her interest increased.

- Oh, tell me, please. I want to know everything about the legend.

- It is said that the witches of the island wanted to have a big party and they chose that beach because it was the most beautiful in the area. They invited all the fantastic beings...

- Who were those?

- The werewolves, the vampires, the headless mule and even the Curupira, Boitatá and all the other beings of the local folklore...

- Wow!

- But they did not invite the devil deliberately.

- Why?

- Because the devil smelled of sulphur, and because, in his arrogance of superiority, he always made the witches kiss his tail to show submission to him.

- Ugh! Disgusting!

- Yeah.

I laughed and continued. I loved that audience of one person only.

- When the party was at its best and everyone was enjoying themselves, guess who shows up, very angry, and thundering his disapproving resentment...?

- The devil?

- Exactly. He was very enraged indeed, and to punish the witches, for having left his majestic person aside, he cast a curse and turned them into rocks... big ones... that have been stuck there ever since. Those are the ones you still see today…

- Oh!

- That is why the place was named Itaguasu, or big rocks.

- That's not true, is it?

- It's a legend... It's mythology. Of course you believe what you want, but it's a funny and interesting story anyway.

I heard the sound of thunder. Apparently we would have rain that hot night.

With the flash of lightning, her eyes grew wide, half lost, as if she were imagining the story she had just heard in detail. I let her imagination run free.

Another lightning. That one fell closer, for the thunder was louder and the time between lightning and thunder very short. I remembered the science classes at school.

- Let’s go back in. The rain does not take long to fall.

- Yes. Let's go inside.

She hurried in, as if she were afraid. I laughed.

The thunder continued, and in a short time we had a summer storm, one of those powerful ones. I, to say the truth, liked the summer storms, for they cleaned the air and refreshed the earth.

Another lightning was followed by a very loud bang. That one fell very close to us and took the electricity of the whole street off. It had probably hit a utility pole, in the neighbourhood. It was not too early, so I decided I would go to bed, instead of waiting for the electrical energy to come back. Everything would be normal again in the morning after all, so I did not have reason to worry.

I fell asleep almost immediately as soon as I laid my head on the pillow. I did not think I was so tired.

I had a strange dream, about the big rocks on the beach. In my dream, one of the rocks had been struck by a powerful lightning and had opened in two halves. The rock was hollow and shaped like a person had been dug into it. I found that very peculiar. I was still examining the inside of the boulder when I heard someone behind me saying,

- I waited so long for this moment.

I turned around and saw a very thin woman, dressed in black, with her misaligned white hair half hidden by a black headscarf. I thought of one of those figures I had seen, as a child, of a mourner. Her skin was so wrinkled it looked like an old parchment.

- What moment?

- It wasn’t fair. It was not fair at all.

She repeated the sentence, not answering me, but squinted her dark eyes, as if to see me better. She lifted her skinny hand and touched my face. Her fingers were frighteningly cold.

- It was not fair at all. No, it was not.

She shook her head and turned away, walking down the beach in the opposite direction to my house. I could still hear her mutter that strange phrase as she walked away, absorbed in her own world and shaking her head in a disconsolate way, her body slightly bent forward.

- Not fair... not fair at all...

***

- I had a strange dream.

- Me too…

- It must have been that talk last night and the storm.

- Probably…

Her eyes seemed to wander away. She must be remembering her dream.

She picked up the mug with newly-brewed coffee and walked over to the porch, watching the beach from the distance. The water was placidly reflecting the blue sky above. She stared for a few minutes in one direction, as if she were watching closely what was happening. I walked over to her side and looked in the same direction.

A group of men, close to the place where the boulders were, seemed to be busy with something at the water's edge. They were standing in a circle, around what I thought was a dead animal, probably dragged by the sea to the beach after the storm last night.

- It must be some animal brought by the tide.

- Yes. But it's not what I'm looking at. Look a little farther ahead at the figure behind the other rock, as if hiding from the men.

- Where?

She pointed her finger at the area behind one of the immense boulders, the one that looked most like a human shape, with a head, formed by a round stone that lay on top of a larger one, which seemed to be the body. One of the so called Itaguasu witches.

- Over there!

Behind the big rock there was a person, half bent and dressed in dark clothes. The impression we had was that she was hiding from those men for some reason. What impressed me most was the resemblance to the character I had dreamed of the night before. But my surprise was still to become greater, from the moment I heard:

- She looks like the old woman I dreamed of last night...

- What?

How could it be possible that the two of us had dreamed of the same character in the same night?

- Seriously? I also dreamed of a woman like that...

- This is all very strange! Or, it's a big coincidence. Let's go down there!

- OK. Let's go!

***

- Something is not right.

- What?

- I don’t know. I feel such a painful sorrow...

- You still got the amulet?

- Yes, why?

- Throw it away. Throw it into the sea.

- But she said…

- It does not matter what she said. Throw it away. That's what's influencing you. It is the power of suggestion.

- We helped her and she gave it to me as a gift. I cannot do this.

- Then I will. It was a poisoned gift, that’s what it was. She filled your head with her bullshit.

I plucked the amulet from her hand and, going to the water's edge, I threw it out into the sea. From the strength I used, it would be practically impossible to rescue it if for some reason she wanted to. The waters of the bay were calm and the fact of throwing the object way beyond the zone where the waves formed, would make any search very difficult, if there were any. I went back inside, with an air of satisfaction stamped on my face.

- It wasn’t fair. It was not fair at all.

- What?

She looked at me very strangely, as if her mind was not really there. She shook her head disconsolately, looking through me, her body slightly bent forward.

- Not fair... not fair at all...

***


terça-feira, 28 de agosto de 2018

As Pedras Grandes (Parte 1)



- Como assim, pedras grandes?

- Itá, em Tupi-Guarani, significa pedra e gûasu, significa grande…

- Foram os índios que deram esse nome?

- Não sei ao certo, mas faz sentido. O mais engraçado é a lenda local.

- Que lenda?

- Das bruxas…

Seu interesse aumentou.

- Conta, vai. Quero saber a lenda.

- Diz que as bruxas da ilha queriam fazer uma grande festa e escolheram aquela praia por ser a mais linda da região. Convidaram todos os seres fantásticos…

- Quem eram estes?

- Os lobisomens, os vampiros, a mula sem cabeça e, até, o Curupira, Boitatá e todos os outros seres do folclore local…

- Uau!

- Mas não convidaram, de propósito, o diabo.

- Por quê?

- Porque o diabo cheirava mal, a enxofre e, porque, na sua arrogância de superioridade, o bicho sempre fazia as bruxas lhe beijarem o rabo, para demonstrar submissão a ele.

- Uff! Que nojo!

- Pois é.

Dei uma gargalhada e continuei. Eu adorava a plateia de uma pessoa só.

- Quando a festa estava em alta e todos se divertiam a valer, adivinha quem aparece, de surpresa e muito irritado, a trovejar sua ira desaprovadora…

- O diabo?

- Exatamente. Ele estava muito enfurecido mesmo e, para castigar as bruxas, por terem deixado de lado sua majestosa figura, lançou uma maldição e transformou-as em pedras… grandes… que ficaram presas ao local, desde então.

- Oh!

- Por isso, o nome do lugar é justamente este: Itaguaçu, ou pedras grandes.

- Isso não é verdade, é?

- É uma lenda… É mitologia. Claro que acredita quem quiser, mas é uma história engraçada e interessante.

Ouvi um trovão. Aparentemente teríamos chuva naquela noite quente.

Com o clarão dos raios, seus olhos ficaram meio arregalados, assim meio perdidos, como se estivesse a imaginar a história, em detalhes. Deixei que sua imaginação voasse solta.

Outro raio. Aquele caiu mais perto, pois o estrondo foi maior e o tempo, entre o raio e o trovão, muito curto. Lembrei das aulas de ciências, na escola.

- Vamos entrar. A chuva não tarda.

- Vamos.

Entrou com pressa, como se estivesse com medo. Eu ri.

Os trovões continuaram e em pouco tempo tivemos uma tempestade de verão, daquelas poderosas. Eu, para falar a verdade, gostava das tempestades de verão, pois elas limpavam o ar e refrescavam a terra.

Um clarão, mais forte que os anteriores, foi seguido de um estrondo muito forte. Aquele caiu muito próximo de nós e levou a energia eléctrica da rua inteira. Provavelmente havia atingido um poste, ali na redondeza. Já não era tão cedo, por isso decidi que iria para a cama, ao invés de esperar que a energia voltasse. Pela manhã, já estaria tudo normal.

Adormeci quase de imediato, assim que deitei a cabeça no travesseiro. Não pensava que estivesse com tamanho cansaço.

Tive um sonho estranho, com as pedras grandes da praia. No meu sonho, uma das pedras havia sido atingida por um raio e havia aberto ao meio. A rocha era oca e tinha o formato de uma pessoa escavado por dentro da mesma. Achei aquilo muito peculiar. Eu ainda examinava o interior da pedra, quando alguém, atrás de mim, disse:

- Esperei tanto tempo por este momento.

Eu virei-me e vi aquela mulher muito magrinha, vestida de negro, com os cabelos brancos desalinhadamente presos por um lenço de cabeça, também negro. Lembrava uma daquelas figuras eu havia visto, quando criança, de uma carpideira. A pele era tão enrugada, que parecia um pergaminho.

- Qual momento?

- Não foi justo. Não foi nada justo.

Ela repetiu a frase, sem me responder, mas apertou os olhinhos escuros, como para ver-me melhor. Ela levantou a esquelética mão e tocou-me a face. Seus dedos eram assustadoramente frios.

- Não foi nada justo. Não foi, não.

Ela balançou a cabeça e virando-se, começou a caminhar pela praia, na direção oposta à minha casa. Eu ainda a ouvia murmurar aquela frase estranha, enquanto ia-se embora, absorta em seu mundo próprio e a balançar a cabeça, de forma desconsolada, com o corpo levemente curvado para a frente.

- …Nada justo… nada justo…

***

- Tive um sonho estranho.

- Eu também…

- Deve ter sido por causa da conversa de ontem e da tempestade.

- Pois…

Seus olhos pareceram viajar. Devia estar a lembrar-se do sonho.

Pegou a caneca de café recém-passado e foi até a varanda, a observar a praia. Ficou por uns minutos a olhar numa única direcção, como se observasse, atentamente, algo que se passava. Eu fui até ao seu lado e olhei na mesma direcção.

Um grupo de homens, ao longe, parecia ocupado com algo na beira da água. Eles estavam de pé, formando um círculo, à volta daquilo que eu julguei ser um animal morto, provavelmente arrastado pelo mar até a praia, depois da tempestade da noite anterior.

- Deve ser algum animal, trazido pela maré.

- Pois. Mas não é para aquilo que eu estou a olhar. Olha mais adiante, um pouco, aquela figura atrás da outra rocha, como se estivesse a esconder-se dos homens.

- Onde?

Apontou o dedo para a área atrás de uma das grandes pedras, justamente aquela que tinha o formato mais humano, com uma cabeça, formada por uma pedra redonda, que jazia em cima daquela maior, que parecia constituir o corpo.

- Lá!

Por detrás da grande rocha, estava uma pessoa, meio encurvada e vestida com roupas escuras. A impressão que tinha era que estava a esconder-se dos homens, por algum motivo. O que tornava a figura mais estranha era a semelhança com a personagem com a qual sonhara na noite anterior. Mas minha surpresa ainda estava por tornar-se maior, a partir do momento em que ouvi:

- Parece com aquela velha que eu sonhei na noite passada…

- O quê?

Como seria possível que nós dois tivéssemos sonhado com a mesma personagem, na mesma noite?

- A sério? Eu também sonhei com uma figura assim…

- Isto é tudo muito estranho! Ou, então, é uma grande coincidência. Vamos até lá!

- Vamos!

***

- Algo não está certo.

- O quê?

- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande…

- Ainda tens o amuleto?

- Sim. Por quê?

- Joga fora. Atira-o ao mar.

- Mas ela disse…

- Não interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está a influenciar. É o poder da sugestão.

- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente. Não posso fazer isso.

- Então eu faço. Foi um presente envenenado, isso sim. Ela encheu tua cabeça de sandices.

Arranquei-lhe o amuleto da mão e, indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro. Pela força que eu usei, ia ser praticamente impossível resgatá-lo, se por algum motivo quisesse. As águas da baía estavam calmas e o facto de atirar o objeto para além da zona de formação das ondas, iria dificultar qualquer busca, se houvesse, mais ainda. Voltei para dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.

- Não foi justo. Não foi nada justo…

- O quê?

Olhou-me de uma maneira muito estranha, como se uma possessão tivesse tomado conta de seu corpo. Balançou a cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente encurvado para a frente.

- Nada justo… nada justo…

***