Gahiin
- Doutora, melhor vir até a recepção… com
urgência…
A
mulher levantou os olhos do computador, onde trabalhava, a fazer anotações
sobre o paciente mais complexo que já havia passado por aquele consultório e
fixou-os na jovem que entrara, com uma expressão preocupada.
Naquele
dia, a psicóloga vestia um blazer
azul-marinho, com saia reta até a altura dos joelhos, no mesmo tom. Uma blusa
branca de algodão, simples, com gola arredondada, fazia conjunto sóbrio com o
terninho e com os sapatos pretos de saltos altos. Tinhas pernas esbeltas e bem
proporcionadas. O cabelo estava preso atrás com grampos, num coque, deixando o
rosto já maduro, bastante encantador, à mostra, evidenciando-lhe as belas maçãs
do rosto. Dir-se-ia que estava quase a chegar à casa dos quarenta, mas a idade
caia-lhe muito bem. Era uma mulher bastante atraente.
Ela já
havia-se habituado com as mensagens subliminares no discurso da estagiária. Quando
falava daquele jeito, estava com alguma situação difícil de lidar. Ela sabia
que estava no horário reservado a Gabriel e que ele já deveria estar sentado à
sala de espera. Pousou os óculos de leitura em cima da escrivaninha,
levantou-se, aprumou a roupa e seguiu a moça.
Gabriel
estava sentado na poltrona, de costas para a janela virada para o centro da
cidade. Tinha os olhos um tanto perdidos e assustados e um grande corte, a
sangrar, na face esquerda. A mulher aproximou-se, rápida. Não era a primeira
vez que aquele homem chegava ao consultório em tal estado de confusão e a sangrar.
O ferimento parecia um tanto profundo e requeria cuidado imediato. Ela pediu a
caixa de primeiros socorros à secretária e voltou sua atenção ao homem, aflita
por saber o que havia acontecido daquela vez.
- Gabriel? O que houve? Foste atacado na
rua?
Ele
pareceu mais confuso. Olhou-a com aquela expressão estranha, a qual ela já deparara
em outras ocasiões. Aquele não era o Gabriel que ela conhecia. Pela expressão
vazia no olhar e na face, poderia ser qualquer outro, ainda a tentar
manifestar-se. Ela tinha que ir com calma. Limpou o corte, passou um
antisséptico e decidiu deixar assim, para que a ferida respirasse um pouco,
antes de ser coberta com um curativo. O sangue já havia estancado. Era uma
ferida muito precisa, como o corte de uma lâmina. Pela profundidade, havia
apenas atingido sua face de raspão, senão era caso para a Emergência de
hospital.
- Vamos entrar. Conversamos lá dentro.
Uma vez
acomodado confortavelmente na usual poltrona de couro castanho, o homem olhou-a
com outros olhos. Ela teve a impressão que mudaram de cor. Aquele pálido azul
tinha uns tons cinzentos, naquele momento. Sentiu-se perturbada, mas bem
poderia ter sido, apenas, impressão sua, mesmo. Ele pareceu-lhe um completo desconhecido,
a tentar compreender como chegara ali. Ela tomou coragem e perguntou.
- Gabriel? Está tudo bem agora? Como foi
que te cortaste deste jeito?
Ele não
sorriu. Permaneceu muito sério e com voz muito grave, falou.
- Eu não sei ao certo. Lembro muito pouco
de como cheguei cá.
- Feche os olhos, então, e relaxe. Tente recordar
o que aconteceu.
O homem
fechou os olhos. Por uns instantes manteve o cenho franzido, depois, como se uma
porta abrisse em sua memória, mudou a expressão do rosto e começou a falar.
- Sei que venho de muito distante, de além-mar,
onde os campos são tão vastos quanto a coragem dos guerreiros que derrotei. Eu
nasci um lutador e, as coisas que aprendi no meu percurso de vida, sempre
levaram-me a batalhar pela sobrevivência. Não sei porque vim parar nesta terra,
mas é a terceira vez que lembro-me de aqui estar. O nome, pelo qual me
conhecem, nesta dimensão, é Gahiin. Sou filho da Terra e à ela tenho dedicado
minha luta. Sou amante do vento e das tempestades e, por isto, viver ao extremo
e em estado de constante risco, é uma das muitas particularidades, exclusivamente
minhas. Sou muito aficionado de desportos radicais e altas velocidades, que
nunca me assustaram. Ao contrário, sou viciado em adrenalina. Muitas vezes
costumo partir em aventuras de preparação, por dias a fio, no meio do mato, no
rio, no mar ou nas montanhas. Minha força, resistência e coragem serão
características extremamente úteis, quando a grande hora chegar.
A
mulher quase não conseguiu fechar a boca, de tão surpresa. Fora pega
desprevenida.
(Mais um personagem? Como era, de alguma
maneira, possível? Já eram sete e pouca luz ainda via, no grande mistério, que
era aquele homem.)
Ela
olhou aquele que era o dono do corpo, Gabriel, com uma alguma piedade. Gahiin
parecia ser um homem vigoroso, dominador e independente. Não tinha aquele
charme imediato de Phil, mas era um homem muito forte, com certeza. O rapaz
percebeu que ela tentava absorver aquela informação, com certa dificuldade. Ao
invés de tentar acalmá-la, como se lesse seus pensamentos, apenas resolveu
dizer o que sabia ser de alguma importância, naquele momento.
- Quantos de nós já conheces? Sete? Então
falta-te apenas conhecer Joe. Talvez ele te entregue a chave daquilo que
procuras. Ele, na verdade, é a própria chave. A chave do mistério é Joe. Não é Gabriel,
como tu poderias pensar…
Os
olhos da mulher arregalaram-se quando o homem levantou-se, estendeu-lhe a mão,
e saiu do consultório, sem dizer mais nada.
Mesmo
sendo uma pessoa bastante estável, ela sentiu uma espécie de vertigem. Teve que
apoiar-se na secretária, para não perder o equilíbrio e cair ali mesmo.
Como
iria encontrar o tal Joe? Se até aquele momento ainda não havia-se manifestado,
quando iria, finalmente, fazê-lo?
(Oito personalidades? Oito tipos
diferentes? Oito guerreiros, na verdade! E, pelo jeito, oito grandes lutadores…
Aquilo era, realmente, muito assustador!)
Joe
- Doutora, Gabriel já não vem à consulta há
mais de duas semanas. Será que aconteceu algo?
- Vamos ver Phil, assim que acabarmos aqui,
hoje. Depois daquele encontro com Gahiin, uma coisa ficou muito clara. É bem
provável que tenhamos problema... e logo. Ele é a única pessoa que pode nos
dizer algo, já que tem um programa de manifestação mais ou menos previsível. Se
não fosse ele...
A frase
ficou assim, meio dita, meio pensada. Os pensamentos da psicóloga foram além do
profissional. Ela queria desvendar o grande mistério. Queria curar o paciente,
por quem tinha grande consideração. Precisava da ajuda de Phil, para chegar a
Gabriel, mas havia mais. Muito mais. Ela tentava não pensar muito em outra
coisa, mas sentia uma atração muito forte por Phil. Por que sentia aquilo por
aquele personagem específico e não por outra pessoa, ou mesmo por Gabriel, a
personalidade oficial, ela não conseguiria dizer, mas sabia que sentia. E não
era um simples interesse.
A
mulher balançou a cabeça, como se recusasse pensar mais naquilo. Precisava
manter o profissionalismo, a qualquer preço. Havia um perigo iminente para seu
paciente e ela tinha responsabilidade sobre o que poderia acontecer-lhe. Aquela
história já era complicada demais e intrincada demais, para que ela perdesse
tempo precioso a pensar nela, ou na sua tola atração.
Ela
tinha que concentrar-se nas prioridades. Gabriel era a prioridade, mas, segundo
Gahiin, Joe era a chave.
(Por onde andaria o tal Joe?)
***
- Já faz algum tempo que Phil não aparece.
Ele cancelou algumas apresentações. Disse que precisava viajar por uns dias e
quando estivesse de volta, avisava. A voz parecia diferente, mas devia ser
porque ele disse também que não estava muito bem.
- Quanto tempo faz isto?
- Um pouco mais de duas semanas... talvez
três.
- Se o vires, ou se ele entrar em contacto,
por favor, peça-lhe para ligar-me. É muito importante.
O rapaz
já havia visto as duas por lá, bem mais que algumas vezes e também sabia que
eram conhecidas de Phil. Acenou a cabeça, em sinal positivo e voltou a atender
os outros clientes. O bar estava em ritmo acelerado, como usualmente, naquele
horário.
Duas,
talvez três semanas... deve ter sido desde que o paciente estivera no
consultório com um ferimento na face. Talvez por aquele motivo não havia
aparecido. Não queria ser visto com um corte daqueles na face, assim à mostra.
Poderia levantar suspeitas e uma série de perguntas muito difíceis de responder.
(Quem poderia ter feito aquilo? Quem
poderia fazer mal a um homem tão doce, como Gabriel, ou tão atraente como
Phil?)
***
Algumas
noites depois, na quarta-feira, a psicóloga estava ainda no consultório,
tentando juntar todas as peças do puzzle que tinha em mãos. Era tarde, a
secretária já havia saído e ela tinha tudo fechado e as luzes apagadas, exceto
a de sua escrivaninha, onde procurava, no meio das anotações, descobrir alguma
luz, algum detalhe deixado nas conversas entre ela e os personagens, mas não conseguira
muita coisa.
O
segurança já havia passado e perguntado se ela precisava de alguma coisa. Ela
havia dito que ia sair em poucos minutos, por isso não precisava de mais nada. Ele
verificou as portas e janelas e despediu-se. Ela ouviu-o sair e o barulho do
elevador a movimentar-se. Estava sozinha. Precisava concentrar-se. Talvez
houvesse mais algo que ela não estivesse percebendo na história.
(Batalhas. Grandes batalhas. Que diabos de batalhas? E Joe... Onde estava
Joe?)
Ouviu
novamente o barulho do elevador. A porta abriu-se. Passos. O segurança, um
homem que tinha um apreço muito grande por ela, devia estar preocupado. Sem
levantar a cabeça, ela falou.
- Já disse que estou bem. Não se preocupe,
pois vou sair em minutos. Podes fechar tudo. Boa noite.
- Ok. Boa noite.
O homem
saiu, usando o elevador. Ela respirou aliviada. Precisava mesmo terminar
aquilo.
Pouquíssimos
minutos depois, ouviu a porta do elevador novamente. Ela sorriu, vencida. O
segurança mesmo estava preocupado com ela e, talvez, tivesse razão. Considerou
que, provavelmente, fosse mesmo melhor que acabasse o trabalho em casa. Assim
teria mais tranquilidade e não precisava preocupar o pobre homem. Além do mais
estaria em sua própria casa, segura e confortável, sem os sapatos e a roupa de
trabalho... Àquela hora já estaria de pantufas e pijamas...
- Ok. Ok. Já vou sair...
A
mulher desligou o computador, marcou as anotações que tinha num pequeno caderno
de apontamentos, fechou-o, guardou-o e levantou-se, pronta para sair.
- Vamos. Já vi que não ficas em paz, se eu
estiver sozinha aqui, assim tão tarde.
- Não fico mesmo. A sua segurança é muito
importante para mim.
- Obrigada. Às vezes penso que sou mimada
demais, sem achar que mereço toda essa atenção. Mas, não precisava subir três
vezes para verificar se eu estava bem.
- Merece sim. Mas eu só subi duas vezes...
- Devo mesmo estar cansada. Tive a
impressão que foram três, mas devo ter-me enganado.
Ele não
sorriu. Acompanhou-a até o carro, esperou que ela partisse e, só então, tomou
seu caminho, a pé, para casa. Manter a doutora a salvo, era responsabilidade
sua. Não podia deixar de sentir-se incomodado em deixá-la trabalhar sozinha,
sem que ele tivesse a certeza que estava bem. Mas foi para casa intrigado com a
confusão que ela fez...
Não
percebeu, porém, que a poucos metros dali, um carro partiu, saindo na mesma
direção que o outro.
***
Deitada,
com os pés esticados sobre a cama e com o computador no colo, a mulher lia as
notas tiradas nas avaliações sobre seus pacientes. Estava mais concentrada em um,
especificamente, tentando juntar os detalhes de cada personalidade com a qual
já havia cruzado até ali. Já passava das onze da noite, por isso decidiu que ia
parar e dormir, finalmente. Seu dia havido sido bem longo e ela desejava uma merecida
noite de sono. Arrumou as coisas e deitou-se.
Embora
tentasse relaxar e adormecer, seus pensamentos voltavam sempre para o mesmo
ponto: Joe. A chave...
Foi então
que a campainha tocou.
- Não é possível! À esta hora. Quem poderá
ser?
Mesmo
sabendo que não era a hora mais adequada, foi até a porta. Às vezes as
emergências aparecem nas horas mais impróprias. Ela, sendo a doutora, sabia
bem... Levantou-se e foi até a porta. Espiou pelo olho mágico e quase não
acreditou no que viu. Abriu a porta, com um puxão forte, tamanha a surpresa que
teve.
***
- Soube que andavas à minha procura, mas
não pude aparecer logo. Tive que segui-la, depois que saiu do consultório, mas
não queria ser visto por ninguém, por isso demorei a subir. Precisamos mesmo
conversar. É mais que hora...
- Mas, como...?
- Calma, doutora. Não vou fazer-lhe mal. Todos
sabem quem eu sou. Eu sou um pacifista e não lhe represento nenhum perigo. Eu
apareço quando os guerreiros estão em conflito ou cansados demais para lutarem.
Chamam-me Joe – um nome comum para um homem comum.
- Finalmente, Joe. Tenho ouvido falar muito
de ti, ultimamente. Preciso de sua ajuda, ou teremos um grande problema num
futuro muito próximo. Todos anunciam-me que está por advir uma grande batalha.
É sobre ela que devemos conversar. Como ninguém quis antecipar-me detalhes, tenho
estado cada vez mais apreensiva.
- OK. Vou dar-lhe todos os pormenores do
que eu sei e da grande batalha. Também de como podemos enfrentar o conflito, mas
é melhor sentar-se...
A
psicóloga olhou o homem que acabara de entrar com um misto de curiosidade,
apreensão e uma grande ansiedade. Ele tinha uma cicatriz na face esquerda, visível
a quem olhasse com cuidado, mas nada assustador. Sua expressão passava-lhe uma
tranquilidade inexplicável.
Ela
suspirou e sentou-se. Era a hora da verdade... finalmente!
***