Deitado no quarto, a olhar para o escuro à minha frente, eu tentava assimilar o que se passara, de modo a resolver, aceitar ou mesmo livrar-me daquela situação a que fora envolvido, mas não via como chegar a nenhuma saída. Eu estava aborrecido e intrigado com os estranhos incidentes da noite anterior. Meu peito ainda ardia bastante. Os músculos do pescoço estavam rijos e formigavam, numa sensação muitíssimo desconfortável, quase a queimar.
Passei a mão no rosto e senti, ainda a latejar, o calor da bofetada merecida que levei e aquilo me fez sentir vergonha, muita raiva e, por incrível que pudesse parecer, uma vontade de rir daquilo tudo, numa mistura de sentimentos que se contradiziam naquele momento.
Um pensamento bizarro passou-me pela mente e eu não cheguei a estranhar tê-lo deixado formar-se completamente. Estaria eu a gostar do inusitado encontro com aquela estranha mulher que, surgindo do nada, resolvera seduzir-me, saciar-me e, ao mesmo tempo, assustar-me com uma ameaça à minha liberdade de escolha?
‘Não. Não podia ser.’
Sacudi a cabeça, como se aquela atitude pudesse desfazer o pensamento amalucadamente conclusivo que acabara de ter.
‘Estava realmente esgotado. Devia ser isso’.
Ainda tentei organizar as ideias, procurar uma explicação, uma forma de enfrentar minha desvairada aparição, mas o cansaço venceu-me o propósito e acabei adormecendo em pouco tempo, sem que alguma resolução acendesse uma luz à qual pudesse me apegar.
Ao acordar, na manhã seguinte, se não fossem as marcas dos arranhões ainda a decorar a pele do meu peito e tórax, teria deixado o incidente passar em branco. Acreditava que os afazeres do dia ocupariam minha cabeça e em pouco tempo tudo seria esquecido. A realidade e a rotina quase me enganaram.
À noite, já recostado confortavelmente em grandes travesseiros, na cama king size, eu folheava uma revista, pois não tivera paciência para assistir TV e não conseguia concentrar-me suficientemente para ler algum livro. Estava praticamente preparado para dormir o sono dos justos. O ‘abat-jour’ sobre o criado mudo ainda estava aceso, mas as demais luzes do apartamento estavam apagadas e a música no computador devidamente desligada.
Por algum inexplicável motivo, meu olhar desviou-se para o espelho. A cena era, de uma maneira única, completamente fascinante. Como numa janela para outro mundo, eu via a mim próprio recostado na cama, mas não estava só. Uma mulher morena, bela como somente ela podia ser, entrava em cena e aproximava-se, aconchegando-se ao meu lado. Vi-a abrir um sorriso, naquela sua maneira encantadora e, achegando-se mais, beijar-me a face. Seu beijo era suave como um leve sopro sobre a minha pele. Não escondi o prazer que senti, com um baixo gemido e fechei os olhos, por um momento.
Ela, então, tomou as rédeas do meu controlo, meu desejo e minha vontade. Percebia que eu gostava do que me fazia, mesmo que eu o quisesse negar. O espelho dava-lhe vida e minha aceitação estimulava-lhe a ousadia. Ela foi paciente, atrevida e uma verdadeira mestra na arte da sedução... até além do que eu podia esperar.
Admiti secretamente que aquela novidade me atraía e ela aproveitou-se da nem-tão-pequena brecha que abria em minha sanidade. Parecia ler minha mente com precisão e sua arte garantia um crescendo de sensações no meu corpo.
Eu sabia, com certeza, que aquela aparição estranha, que me visitava e, sem pedir permissão, tomava posse do meu prazer e da minha vontade, desmantelando - entretanto -completamente a minha coerência, fazia-me um certo bem e trazia-me um invulgar conforto.
Não sabia, entretanto, se era a aventura, o gosto pelo desconhecido, o inusitado da situação ou a loucura que se apossava de mim, que a fazia sentir-se bem-vinda para invadir minha noite, uma vez mais e para bagunçar, completamente, minha parca, mas ainda resguardada, saúde mental.
Eu caía num abismo perigosamente sombrio, voluntariamente. Aquela demência parecia competir bravamente contra minha razão, levando já uma vantagem de mais de um corpo inteiro e tomava conta, a largos passos, da minha tão preservada sobriedade…
A partir dali, deixei-me levar pelas visitas nocturnas da mulher morena. Passei a ter duas vidas separadas. Uma no silêncio do apartamento, em que apreciava a dilecta companhia de minha linda, trigueira e sensual abantesma e outra, da porta para fora, quando enfrentava um mundo real, sem muita graça e sem coloração definida, além de uma tonalidade levemente desbotada e monocromática de luz e sombra sépia... e pelo meu entendimento, pouca luz e muita sombra…
Eu já havia vivido sozinho por demasiado tempo, com minhas – não poucas - manias e neuras, algumas vezes criando novas e outras aferrando-me às antigas, transformando minha tranquila vida de outrora num exercício de puro distúrbio obsessivo compulsivo. Havia experimentado, até então, uma vida comum e sem grandes emoções. Minha rotina era absolutamente previsível. Por trás daquela aparente insipidez, entretanto, tinha um extremo cuidado com meu corpo e havia assumido atitudes cada dia mais hedonistas, narcisistas e egocêntricas, que alguma vez havia tido. Do lado de fora, o que fazia era vestir uma couraça protectora, afastando influências não desejadas à minha existência, sabendo que era o único a prezar pelo meu próprio bem e pela minha privacidade.
Dei-me conta que não tinha com quem dividisse minhas preocupações, caso algo ruim me acontecesse, mas também não tinha com quem celebrar minhas vitórias e alegrias, se eu porventura as tivesse.
A concha onde me refugiava era bastante sólida e resistente e, embora não fosse desmedida, tinha um enorme espelho pendurado numa parede vazia, numa ampla sala de estar, onde me examinava com cuidado e com olhos excessivamente perfeccionistas.
O espelho, todavia, tinha seu próprio segredo… vivo e vívido demais para ser ignorado. Era como um universo separado, uma outra dimensão, um filme que desenrolava-se lá dentro, no qual eu era um dos dois - únicos - personagens. Da minha parte, eu, com certeza, não estava determinado a colocar rédeas naquele mundo secreto de prazeres.
Passadas algumas semanas daquela loucura, minha obsessão estava cada vez mais acentuada e eu deixava os dias passarem quase em branco, rotineira e desinteressadamente. Recebi uma reprimenda do chefe pela pouca consistência e capricho no trabalho que fazia e pela falta de comprometimento que eu passara a ter nos últimos tempos. Fingi ficar aborrecido com aquilo e prometi ser mais cuidadoso.
Mentia para ele e, para mim, fazia de conta que acreditava no que dizia, mas resolvi tomar mais cuidado, para não perder o emprego, que era o único que eu tinha e que ainda sustentava minha vidinha insossa.
Minhas noites, entretanto, passaram a ser cada vez mais quentes e já não havia mais censura para o meu desejo, que assumia proporções nunca dantes atingidas. Eu me deixava levar pela sensualidade impudente de uma personagem que tomava cada vez mais tempo e espaço dentro da minha vida. Algumas vezes, nem me preocupava em alimentar-me direito, pela urgência que sentia em buscar aquele prazer libertino. Estava, irremediável e decididamente, viciado….
Certo dia, como passara a ser rotina aos funcionários de mais de quarenta anos de idade, fui chamado ao consultório do médico que atendia a empresa. Eu sabia que aquele tipo de consultas não levava à muita coisa, pelo tipo de Plano de Saúde que tinha. Fui tranquilo ao apontamento marcado para o final do expediente. Ao chamar-me, o médico levantou uma sobrancelha, como quem desconfia de algo. Não me intimidei e entrei no consultório, respondi às perguntas regulares, sobrevivi bem aos exames habituais e saí com uma lista de outros a fazer, para apresentar os resultados uma semana depois.
Passado aquele tempo e já com os papéis em mãos, voltei a sentar-me em frente ao homem vestido de branco, que trazia um auscultador sempre pendurado no pescoço, como se fosse uma medalha de honra ao mérito. Ele examinou cuidadosamente os documentos mais que uma vez. Levantando o sobrolho - um tique que eu aprendera a perceber, como sinal de desaprovação - ele pigarreou e disse-me que, sinceramente, esperava um resultado diferente.
- Diferente em quê?
Minha pergunta fora ingénua. Ele deu um longo suspiro.
- Esse seu aspecto físico actual pareceu-me esconder um grave problema a nível glandular ou algo como diabetes, mas os resultados estão perfeitamente normais. Eu estou preocupado…
- Não percebi por que, doutor…
- O senhor está muito magro e pálido. Parece-me bastante adoentado. Vou solicitar uma bateria mais completa…
Eu não o deixei acabar a frase. As suspeitas eram absurdas e somente eu sabia a verdadeira razão. Até então eu não havia me dado conta do que o médico chamara-me à atenção. Muito pálido e magro… logo eu, que sempre fui tão saudável... Do que ele suspeitava, afinal?
- Eu nunca estive melhor! Sinto-me rejuvenescido e bastante activo fisicamente. Nem me questione como me sinto sexualmente, doutor… Nunca estive melhor!
Ele olhou-me meio incrédulo. Acomodando-se melhor na cadeira, colocou as mãos cruzadas sobre a mesa e falou baixo, mas firmemente.
- Não é o que me parece, nem o que seu chefe me disse. O seu trabalho está aquém do esperado e sua apatia cada vez maior. Foi o que me foi pedido que verificasse, pelo menos a nível físico. Se não há um problema físico, existe algo que o incomoda psicologicamente?
E agora? Digo algo... ou mantenho a farsa? Se disser a verdade, ele vai mandar-me ao manicómio, com toda a certeza…
- É somente uma fase, doutor. O stress do trabalho tem-me afectado… e o calor não ajuda, tampouco.
Menti descaradamente. Olhei-o sério e com firmeza, como um grande actor. Queria que ele desistisse, mas o sobrolho continuava levantado. Resolvi que precisava dar uma cartada decisiva.
- Vamos fazer um acordo. Eu prometo que vou alimentar-me melhor, tomar umas vitaminas, andar ao sol e caprichar no trabalho. Em um mês, volto aqui e conversamos sobre minha saúde. Que tal?
Ele desistiu. Colocando as duas mãos abertas sobre a mesa, disse-me, com um tom impaciente o suficiente para me deixar em alerta:
- Feito! Mas não pense que isso vai passar em branco. Vou receitar umas vitaminas e um fortificante…
- Remédio para crianças, doutor?
Ele não sorriu da minha ironia. Apenas rabiscou umas garatujas no bloco próprio, entregou-me a prescrição e levantou-se, adiantando a mão para despedir-se. O apontamento estava terminado, para meu alívio. Saí o mais rápido que pude, sem estender-me mais em qualquer tentativa de conversa.
O consultório ficava no décimo segundo andar. Ao entrar no elevador, olhei-me com atenção no espelho do mesmo. Incrível como a maioria dos elevadores modernos tem um espelho, pelo menos, como parede…
Pela primeira vez em algum tempo e por um momento consideravelmente longo, prestei atenção ao que via em mim. Perguntei-me, silenciosamente, há quanto tempo olhava sem realmente ver… O médico tinha razão. Eu estava pálido e muito emagrecido, parecendo adoentado. Não foi à toa que ele mandou-me fazer tantos exames. Aquele homem que eu via em mim, anteriormente, quando tinha uma preocupação extrema com o corpo, havia-se transformado em uma descorada imagem, com aparência nada saudável. Eu estava drenado de energia, sem o viço de outrora nos cabelos e na pele e apresentando profundas olheiras escuras, para meu próprio assombro…
Minha avaliação e surpresa foram interrompidas pela chegada ao andar térreo, quando a porta abriu-se e algumas pessoas me olharam, esperando que eu saísse, para que pudessem entrar. Ao caminhar para fora, pareceu-me haver ouvido uma risada feminina conhecida…
Não foi preciso uma análise crítica muito detalhada, para dar-me conta que minha vitalidade só podia ser drenada pelas tais visitas nocturnas. Enquanto eu parecia cada vez mais debilitado, ela parecia mais deslumbrante cada vez que a via. Alimentava-se do meu vigor, com certeza – uma energia que eu cedia-lhe gratuita e voluntariamente e, ainda, com o maior prazer.
Mas meu aspecto visual incomodara-me, não somente pelo acordo que fizera com o médico, mas pelo susto que levara ao enxergar-me, como deveria, depois de tanto tempo. Era como se uma venda houvesse sido retirada de meus olhos. Eu reconhecia, naquela hora, que precisava tomar uma atitude séria… e tinha que ser urgentemente.
Naquela mesma noite alguma coisa mudou. Não senti o prazer de sempre em nosso encontro. Pelo espelho pendurado na parede do quarto, vi que ela estava estonteante, linda, viçosa e ousada, mas eu apenas reagi fisicamente – preocupado que ainda estava pelo abrir de olhos que havia tido logo após a consulta médica.
Ela percebeu a diferença no meu comportamento e perguntou-me se havia algo errado. Disse-lhe apenas que estava muito cansado. Adormeci, pesadamente, sem dar-lhe muito mais conta do que se passava.
Sonhei que alimentava, com meu próprio sangue, uma fonte de energia ligada ao corpo de um monstro em forma de mulher. Parecia um filme de horror de terceira categoria, em preto e branco, numa abominável e estranha versão de um Frankenstein feminino. O sonho incomodou-me a noite inteira, especialmente, quando mostrou-me que a tal fonte de energia secava rapidamente, ao alimentar a pujança do monstro, que levantava-se da mesa de experiências e atacava seu criador enfraquecido…
Foi quando ouvi as gargalhadas histéricas dela ecoarem nas paredes da casa, que acordei em alvoroço, suando muito. Confesso, sem vergonha de admiti-lo, que senti medo.
Eu, particularmente, não acredito no poder destrutivo nem torturante dos pesadelos. Todavia, um homem tem que saber perceber seus próprios mecanismos mentais de comunicação subconsciente e os sonhos fazem parte destes. Se era um reflexo do meu desespero, desejo de atenção ou uma latente psicose, eu não tinha certeza, mas aquilo começava a afectar-me o equilíbrio e o controlo.
Tentei voltar a dormir, mas demorei a pegar no sono outra vez, numa madrugada que pareceu interminável e cheia de reflexões preocupantes sobre o meu futuro. Ao desvendar a mensagem, quase por acaso, percebi que aquela havia sido bastante clara…
Na manhã seguinte, ao ficar de frente ao espelho para barbear-me, avaliando meu aspecto cada vez mais decrépito, vi que ela aproximou-se e recostou a cabeça sobre meu ombro, olhando-me com seus olhos de triunfo e desejo. Franzi a testa, mostrando uma certa irritação, ainda pensando no sonho que tivera, mas ela disse, com voz baixa e melosa, muito próxima de meu ouvido:
- Vamos lá. Não fique assim. Nós nos damos tão bem… Tu sabes quem eu sou. Posso não ter um corpo fisicamente palpável e ser somente uma imagem no espelho, mas tu sabes que meu único prazer é te dar prazer… Tu me vês como tu queres. Sou o mais real reflexo de um desejo teu. Eu sou parte de ti…aquela mais obscura e secreta que há… Eu sou totalmente feita de ti… e para ti...
A sintaxe engraçada me fez rir e ela aproveitou-se da deixa.
Passou-me os lábios no pescoço, provocante. Fechei os olhos, sentindo um conhecido calafrio percorrer-me a pele. Ela me controlava e sabia perfeitamente como fazê-lo. Passou o braço pela minha cintura e puxou-me de encontro a ela. Beijou-me com volúpia. Meu corpo respondeu imediatamente ao contacto com o dela. Ela me conduziu ao chuveiro, onde usou todos os seus talentos de sedução, deixando-me quase sem fôlego e sem determinação para sair de onde estávamos. Exercia novamente uma cruel e lúbrica soberania sobre minha vontade e minhas reacções – todas elas, tanto as voluntárias quanto as involuntárias.
Fechei os olhos e passei apenas a usufruir das sensações que meu corpo enviava ao cérebro que, por sua vez, passava a um estranho estado de consciência, entre delírio e realidade e que culminava em um prazer espasmódico e fisicamente descontrolado.
Fechei os olhos e passei apenas a usufruir das sensações que meu corpo enviava ao cérebro que, por sua vez, passava a um estranho estado de consciência, entre delírio e realidade e que culminava em um prazer espasmódico e fisicamente descontrolado.
Atrasei-me, obviamente, para o trabalho, o que colocou-me em situação bastante delicada novamente. Ao invés de uma de suas costumeiras broncas, o chefe perguntou-me o que estava acontecendo comigo, dizendo-se preocupado com a conversa que tivera com o médico a meu respeito.
‘Aquele dedo-duro’, pensei comigo mesmo. Aleguei-lhe, então, que precisava de descanso e que seria adequado tirar uns dias de folga. Sob o pretexto que precisava mesmo cuidar da saúde, pedi férias ao meu superior hierárquico. Ele concordou que era a melhor solução por ora.
Na visita daquela noite, eu disse-lhe que não a queria. Menti-lhe que não estava disposto. Estava cansado, preocupado e um tanto irritado. Lutei contra meus próprios desejos e minha total ausência de controlo. Senti que suas mãos estavam-se bastante frias, enquanto brincavam em meu corpo. Embora estivesse decidido a resistir… pelo menos o máximo que eu pudesse ou conseguisse, meu corpo traiu-me, com uma clara evidência a olhos... e todo o resto... nus.
Aquela mulher não era nada tola e sabia quando tinha uma disputa vencida. Com as pernas abertas e ajoelhando-se à minha volta, alojou-se sobre meu corpo, provocantemente. Pelo reflexo, vi sua belíssima face transmutar-se com uma expressão de puro deboche, que exibiu, por sentir-se senhora absoluta da ocasião. Então, deu uma gargalhada estranhamente insana.
Foi aquele toque de crueldade pouco subtil que me fez comportar contrariamente às reacções evidentes de meu corpo. A batalha não estava perdida… ainda…
Daquela vez, ao invés de sentir prazer, eu senti um misto de pânico e repulsa… e ela notou imediatamente, quando evitei sua tentativa de beijo.
Quando sentiu que eu manifestara uma pouco disfarçada ojeriza pela sua presença, seu toque frio e sua estranha performance, sua cólera aflorou e ela transformou-se num animal ferido e portanto, fustigado e perigoso. Ainda visualizei, pela imagem no espelho, a mulher levantar a mão direita, com suas unhas afiadas em riste…
Ao vê-la preparar-se para atacar-me, saltei da cama e, com um gesto rápido e ao mesmo tempo desesperado, passei a mão no ‘abat-jour’ ainda aceso e joguei-o contra o espelho. O candeeiro soltou-se da tomada, atingiu e partiu o alvo em muitas dezenas de pedaços. O som do vidro a espatifar-se contra o piso do quarto não me deteve. Instintivamente, mesmo envolto em quase completa escuridão, corri para o único cómodo onde não havia espelhos na casa: a cozinha.
Ofegante e ainda sem acender a luz, fiquei a ouvir, atento e com os nervos à flor da pele, os estranhos sons na casa.
Outra gargalhada histérica ecoou em alto e bom som pelas paredes. Passos, sons de unhas a arranhar o vidro, respiração arquejante, risadinhas intimidadoras… a casa parecia ter ganho vida contra mim.
Empurrei a porta da cozinha e tranquei-me lá dentro. Ela deu um grito esquisito e então tudo ficou em silêncio… um silêncio torturante e ameaçador, ao mesmo tempo.
Acocorado a um canto, alojei-me no escuro aposento - atormentado e assustado demais que estava, para sair dali. Meu cansaço, entretanto, abria brechas em minha vigília, de vez em quando e eu cochilava, para em seguida acordar-me em sobressalto, com a impressão de estar sendo atacado. Esperava que o amanhecer trouxesse um pouco mais de segurança, de modo que pudesse sair da minha reclusa cela.
Eu estava sitiado em meu próprio território – minha valiosa zona de conforto – ou o que meu apartamento havia sido até então…