O vento do sul sopra pelo beco, agitando as folhas secas e revelando um corpo tombado de frente, contra o chão frio e encardido. Um fio do viscoso líquido vermelho escorre pelos espaços entre as pedras gastas.
No bolso do homem caído, um papel com uma mensagem escrita em rubro: “I killed Joe Hardy”, aparentemente recém colocado, mal é percebido. A letra era quase uma garatuja rebuscada, porém bem desenhada e um pouco antiquada, aparentemente pertencendo à uma mão firme e masculina, acostumada com a escrita.
A figura vestida em um casaco cinza escuro olha o corpo caído e recoloca a tampa prateada na caneta, com a ponta manchada de vermelho, sem limpá-la. Com um sorriso de soslaio, coloca a arma cuidadosa, mas ostensivamente, no bolso superior do casaco. As inicias JH, gravadas em relevo no corpo da caneta, desapareciam para dentro do tecido grosso do agasalho. Era provocação, sabia, mas aquilo parecia acender uma veia perversamente sádica em sua mente.
Quem diria que aquele objecto, com uma aparência tão inocente, seria uma arma assim perigosa?
Morto com seu próprio instrumento de trabalho, um pequeno souvenir que o acompanhara por grande parte da sua vida, o pobre homem jazia com o rosto colado à pedra fria e suja do calçamento na viela do beco.
Vendo que sua missão estava terminada, o espectador, então, levanta a gola e sai.
***
Quando viu o corpo caído, uma angústia profunda assolou-lhe o espírito. Correu, já com o telefone em punho, discando o número da emergência, mesmo sabendo que poderia ser tarde demais para socorrer o pobre corpo inerte jogado no paralelepípedo. Virou-o com cuidado e acolheu-o em seus braços, sentindo-se impotente diante da grandiosidade de uma decorrência tão natural e ao mesmo tempo tão incontrolável e inaceitável da vida. Com a mão, tentou limpar, desajeitadamente, um pouco do sangue que manchava o rosto do homem. Abraçou-o, segurando o corpo dele contra o seu, enterrando o rosto em seu ombro e chorou. Chorou como nunca havia chorado antes, diante da morte de alguém. Chorou como se parte dela estivesse morrendo naquele momento, com aquele, cuja vida esvaía-se como o sangue que já começava a secar por entre as pedras do calçamento.
A uma certa distância, dois olhos observavam a figura sentada a chorar, abraçada ao homem estendido no chão gelado …
***
Joe é um escritor. Apesar de uma vida cheia de percalços e pouca sorte em termos sentimentais, seu coração se entrega facilmente. Ele não tem medo de se expor, pois acha que as oportunidades não batem duas vezes na mesma porta. Mas ele nem sempre foi assim. A maturidade ensinou-o a despojar-se de prosaísmos. Como as coisas vieram tardiamente…quase tudo… ao atingir a meia-idade, começou a arriscar mais, com receio que o tempo que lhe restava não fosse suficiente para viver com a intensidade que sempre almejara. Riscos calculados e cuidadosamente planeados começaram a fazer parte de sua vida.
Joe não acredita em Amor - com letra maiúscula -, ou é isso que sempre diz…o que não o impede de estar apaixonado constantemente, como todo escritor e poeta que alguma vez conheceu. Apaixonar-se inspira-lhe e aguça-lhe a imaginação, fazendo-o escrever sem parar, como se fosse acometido de uma febre. Platão morreria de inveja daquele homem, que precisava sentir calor no espírito ou não conseguiria produzir sua literatura. Um solitário, por assim dizer, com uma vida praticamente desconhecida pelas pessoas com as quais convivia.
Ela o viu pela primeira vez num dia em que nada parecia lhe dar satisfação. Tentou parecer indiferente, apesar de não se sentir à vontade naquele ambiente pouco familiar. Era uma desconhecida, trazida por um amigo comum.
Enquanto se entretinha com uma taça da única bebida alcoólica naquele evento, estudava os movimentos do homem de meia-idade - seu sorriso aberto, sua forma ligeira de caminhar, a maneira como tocava de leve nas pessoas, quando passava.
Joe acabara de lançar o seu segundo livro - desta vez eram poemas -, um projecto acarinhado pelo ego e pela paixão, três anos depois do primeiro - um romance policial. Trazia uma taça de vinho branco na mão esquerda e tentava dar atenção a todos que lhe cumprimentavam.
Quando os olhos cruzaram, o poeta sorriu. Uma sensação insólita mexeu-lhe com as entranhas. O homem trouxe-lhe um livro e comentou, enquanto lhe entregava o mesmo: “vejo que és a única pessoa aqui dentro que não carregas nas mãos a obra recém lançada”. Ela ficou meio sem graça, mas entrou na brincadeira, dando um sorriso timidamente encantador. Joe autografou-lhe o livro, com uma frase que a deixou ligeiramente perturbada. “Aos mistérios de estranhos e à emoção da descoberta. Cheers”.
Nas horas seguintes, embora procurasse contacto visual, não foi correspondida pelo dono da noite. Ao sair, ainda deixou-se levar pela tentativa frustrada de um olhar, mas não topou com nenhum. Teve vontade de jogar o livro na primeira lixeira que encontrasse, mas acabou por resolver levar o exemplar e deixá-lo na estante. Não era aficionada por poesia, nem gostava muito de ler. Era uma mulher prática, não uma sonhadora.
Alguns dias depois o telefone tocou. “Olá, estranha”. Ela reconheceu a voz. Teve vontade de desligar imediatamente, mas havia algo naquela saudação que a intrigava. “Olá”, disse, seca. “Não foi muito fácil encontrar o número, mas finalmente meus meios deram resultado. Espero que compreendas que não pude dar atenção durante o lançamento do livro. Não vou pedir desculpas, mas espero que não tenhas ficado chateada comigo”. O que aquele homem queria dela? “Não se preocupe. Eu compreendo. Não fiquei chateada, mesmo porque não podia achar que mereci mais atenção do que tive”… Deixou a frase assim reticente, para ver o efeito que causaria. ‘Eu também sei jogar, Joe’… pensou com um sorrisinho, que jamais seria visto pelo seu interlocutor. “Podemos nos encontrar e tomar um café?” Será que ele quer discutir o livro? Eu nem sei direito onde joguei aquela “coisa”, pensou, enquanto corria os olhos pela estante de livros, não muito recheada com uns exemplares tradicionais e alguns velhos CD’s de rock clássico. Avistou o pequeno livro no canto, provavelmente guardado pela mulher que fazia a limpeza. “OK. Escolha o lugar”.
A figura sentada à mesa saboreava um café de aroma forte quando ele entrou. Tinha os olhos ocupados sobre as páginas de um livro, que folheava displicentemente. Parecia avaliar o conteúdo daquelas passagens, que talvez nem fizessem verdadeiro efeito em sua vida. Ele observou-a por um curto espaço de tempo e aproximou-se com um sorriso. “Este lugar está ocupado?” A leitora levantou os olhos do livro e sorriu em resposta. Joe sentou-se à frente dela e fixou-lhe o olhar. Sentiu-se enrubescer, mas aceitou o desafio, encarando-o com naturalidade estudada. Gostava daquela jogada…
***
O homem de olhos esverdeados abriu a porta do pequeno aposento, parcamente mobilado com uma escrivaninha com gaveta e espelho, mais uma cadeira giratória de escritório. Não havia janelas, apenas uma espécie de veneziana sobre a porta, por onde o ar circulava.
Ele costumava abrir a gaveta e apreciar seus troféus, cuidadosamente alinhados em um suporte de madeira, feito à mão. O artesão era cuidadoso. Mantinha assim guardados, os últimos vestígios de suas conquistas. Um souvenir de cada uma, ainda tingidos com o sangue das vítimas. Ele passa os dedos por sobre os objectos, quase acarinhando cada um deles, enquanto fechava os olhos sentindo um prazer incompreensível a quem visse de fora. A mente dele funcionava diferente, sabia muito bem…
Virou-se, tomou o casaco, que se encontrava pendurado num cabide instalado na parede atrás da porta e saiu, fechando o aposento com uma pequena chave que trazia pendurada, num cordão pardo, ao pescoço. Já à porta do prédio, levanta a gola e sai pela rua fria, encarando o vento de Outono que lhe fustigava o rosto bem barbeado. Tinha um encontro marcado e não queria se atrasar…
***
Joe estava sentado à mesma mesa, no mesmo café onde se encontraram pela primeira vez. Parecia tranquilo e feliz. O poeta deixava-se levar pelo coração. Ela, por sua vez, tecia uma teia intrincada, cautelosamente, em torno do homem mais velho. Portavam-se como amigos de longa data. Joe envolvia-se sem medo. Precisava daquela ilusão.
Ela tinha olhos de um azul quase transparente de água marinha, um tanto puxados e cabelos castanhos, cortados curtos e cuidadosamente arrumados em um penteado para o lado direito, por sobre a pele perfeita da larga e pálida testa. Tinha um sorriso encantador, que nem sempre se abria, nos lábios bem desenhados. Era esbelta e longilínea. Tinha mãos brancas, com dedos finos e compridos. Seu aperto de mão era forte e firme, entretanto. O nariz era recto e delicado, condizendo com a face ovalada, tão agradável de se olhar. Movia-se com harmonia e andar suave e erecto. Parecia ter gostos extravagantes, pela forma como se vestia e pelo carro que conduzia. Joe não pode deixar de notar o relógio caro e ostensivo que carregava ao pulso esquerdo, embora não se impressionasse com aquele tipo de coisas.
Aquela jovem sabia seduzir como profissional. Observava os movimentos do homem mais velho, quase a não querer ser percebida, mas Joe já sabia como fazer para espreitá-la, sem ter que cruzar os olhares, pois sentia-se constrangido de fazê-lo, com medo de afugentá-la.
Ao passar por trás da cadeira, roçou de leve o ombro do homem, com os dedos. Aquele toque causava um efeito estranho no corpo do homem sentado. Ele sentia-se arrepiar, como se um frio estivesse preparando para congelar-lhe a alma. Ao se virar, borboletas voaram-lhe das entranhas. Sabia que era um sinal conhecido, mas decidira ignorar. Estava envolvendo-se demais pela mulher que acabara de chegar e gostava de sentir aquele desconforto estranhamente bem-vindo. Jogava alto, sabendo que as perdas poderiam não compensar, no final, mas já não se importava com aquilo. Ele sabia que o tempo não era um amigo fiável, por isso tinha pressa em aproveitar a oportunidade.
Joe tinha medo de envelhecer, mas não desesperava com a vida e com a velocidade com que as coisas aconteciam à sua volta.
Aquela canção começou a tocar ao mesmo tempo em que ela sentou-se à frente do homem. Ambos sorriram, ao reconhecer a melodia e as palavras cantadas pela voz aveludada da vocalista. Daquele momento em diante, tornou-se como se fosse o tema deles. Quando tinha oportunidade, murmurava os acordes, cantarolava ou colocava a tocar para os dois.
"Yes, Boss, I'm on the mike... I'll try to give you what you like... I can be soft, I can be hot"... * (Hess is More - Yes, Boss)
"Yes, Boss, I'm on the mike... I'll try to give you what you like... I can be soft, I can be hot"... * (Hess is More - Yes, Boss)
Embora parecesse casual, Joe tinha esperança que ela o estivesse provocando, de uma maneira que achava estimulante e até se divertia com aquilo. Os olhos o seguiam, mesmo quando fingia não o fazer. Mas o homem mais experiente já conhecia aquele comportamento. Ele sabia jogar e, jogar com uma pessoa tão bonita, como aquela sentada à sua frente, causava-lhe uma satisfação enorme…
Mais tarde, na mesma noite, sentiu-se bem diferente de como vinha se sentindo ultimamente: desejado, atraente, sedutor… Pensou na frase que havia usado, não muito antes e que cabia, como uma luva, naquela ocasião: o homem que tem um passado como o dele, não tem porque temer o futuro… e sorriu secretamente, virado para o lado oposto, fechando os olhos e adormecendo em seguida.
***
O homem observava, de longe, a pequena e quase íntima reunião. Parecia que os dois se davam bastante bem, pela forma como se olhavam, os sorrisos que trocavam e as risadas tão soltas. Vez ou outra tocavam um no braço do outro, furtivamente – numa forma quase desintencional. Percebia uma evolução no comportamento dos dois, desde que começara a observá-los juntos. Agora encontravam-se com frequência, passando vários momentos juntos, contando histórias, rindo de quase tudo. Logo chegaria a hora certa, ele sabia. Já sentia uma certa excitação crescer dentro de si, enquanto pensava no que fazer. Ele tinha certeza que teria de usar o “elemento surpresa”, se quisesse ser bem sucedido em seu intento…… Era imprescindível que agisse no momento certo, ou perderia aquela oportunidade, que poderia nunca se repetir outra vez.
Não podia, nem queria, perder aquela chance - única - ou esta iria-lhe sair muito cara... muito cara mesmo.
Não podia, nem queria, perder aquela chance - única - ou esta iria-lhe sair muito cara... muito cara mesmo.