Às vezes, ele me olha fixamente, me abraça, me beija e conversa comigo, mesmo sabendo que a minha mente funciona muito diferente da dele.
Nossa relação é de cumplicidade, quase uma simbiose. Ele depende da minha companhia, eu dependo dele para sobreviver, embora creia que em estado selvagem - eu nasci em África, afinal - eu possa me virar bem. Ele cuida de mim e eu velo por ele. Eu sei quando ele está para chegar em casa. Sinto a sua presença, apenas por instinto. Ele conhece meus passos, sente quando estou por perto e me faz as vontades. Sabe quando eu entro no quarto, à noite, para pedir um “cheiro”na cabeça e deitar-me ao seu lado. Só faço isso depois de dar uma boa vistoria na casa, pois ele só fecha as portas e apaga as luzes. Alguém tem que cuidar de tudo por aqui, com mais responsabilidade.
Aprendi a lidar com ele e ele aprendeu a ler minha linguagem. Eu tenho necessidade de saber onde se encontra, para garantir que não vou ficar só, mas também tenho necessidade de sossego, no que sou respeitado, normalmente.
Gosto de música, mas nem de tudo que se ouve nesta casa. Ele conhece meu gosto e fez uma selecção especial para me tranquilizar. Costumamos ter nosso espaço e tempo exclusivos para isso, de vez em quando. Aos domingos à noite, especialmente, enquanto ele passa as roupas a ferro, deito-me por perto, ouvindo aquelas músicas mais calmas, em silêncio, até que termine sua tarefa e chegue a hora de nos recolhermos.
Ele pensa que eu pertenço a ele, mas no fundo, sabe que é o contrário. Quando me chama pelo nome, eu venho correndo em resposta, porque sei que, de alguma forma, ou precisa de mim ou vai dar-me algo para comer. Às vezes é puro “dengo”, mas eu gosto. Quando me despenteia, estragando o trabalhão que levei horas fazendo, eu me irrito e volto a me pentear.
Quase não brigamos, mas quando eu estou de mau humor e o ataco, ele fica chateado e me dá broncas, mas estas não são muito sérias. Somente quando eu fujo pela varanda e entro na casa do vizinho é que ele fica, mesmo, muito irritado e me põe de castigo. O castigo é greve de fala e de atenção. Fico incomodado quando ele faz estas greves. Tento de tudo para que ele me desculpe e para que aquilo dure pouco tempo, mas ele é turrão, quase tão teimoso quanto eu. Eu sei que ele sofre com isso, também, porque me diz, quando pede desculpas e fazemos as pazes.
Quando quero algo, sou insistente. A maioria das vezes percebo que ele cede, depois de algum tempo. As restrições estão relacionadas com minhas idas ao corredor e escadas e, também, ao barulho na frente das portas dos vizinhos.
Ele reconhece minhas vocalizações, quase sempre, sem erro. Algumas vezes tenho que ser mais óbvio, pois ele anda meio distraído.
Não gosto quando fica horas na frente do computador e me dá menos atenção que estou habituado a receber, mas na maioria das vezes ele pára e me dá alguma.
Somos independentes em termos de relacionamentos com outros, mas somos muito apegados entre nós. Sei que ele fala muito a meu respeito. Deve ser por gostar tanto de mim. Eu dou-lhe atenção quando quero ou quando vejo que está precisando. Ele sempre está pronto para me dar atenção, mesmo quando quero ficar sozinho. Gosto quando ele me escova a cabeça e o corpo, deita sua cabeça sobre a minha, ou quando me pega no colo e me abraça ao chegar em casa. Gosto de deitar sobre a sua barriga, enquanto ouvimos música, deitados no sofá. Eu, então, recito meu “mantra”, num ronronar contínuo, que lhe abranda as preocupações e o faz cochilar. Isto também me acalma e atenua minhas tensões.
Eu associo palavras que ele usa, com minhas atitudes. Sei quando me chama pelo nome, quando menciona a palavra comida, associei o convite ”vamos tomar café?” a ganhar uma colherada de iogurte, e sei quando me chama para deitar e dormir. Meus horários e minhas rotinas são evidentes e as dele também. Eu não gosto de ver as coisas fora do lugar e me acostumei com aquela sua mania de organização.
Eu sou um sénior agora. Ele se deu conta disso, quando conversou comigo hoje. Sei que faz pouco sentido ter expectativas que vou viver tanto quanto ele, mas percebi que chorou quando falou sobre isto. Aliás, tem chorado bastante ultimamente. Às vezes me pede desculpas, por parecer estúpido. Eu olho nos seus olhos e espero até que a coerência volte e ele me diga que está bem. Não sei se compreendo o que se passa, mas mesmo assim, mostro que estou ali para o que der e vier, se for necessário. E ele parece contentar-se com isso. Eu gosto quando me olha com afecto, o que é quase sempre. Me faz sentir amado, mimado e especial. Eu sei que ele gosta da minha atenção e minhas demonstrações de carinho, porque se diverte com isso.
Ele ri. Ele sempre ri. Às vezes apronto alguma, só para ouvir a gargalhada dele. Os vizinhos devem pensar que é louco, mas não o vejo muito preocupado com isso.
Minha vida é bem tranquila. Não tenho acessos de ciúme, pois não tenho motivos para isso, por enquanto. Mas minha veia possessiva é bem acentuada e lembro bem que já mostrei quem pertence a quem, quando tive que o fazer. Ele está dentro do meu domínio, portanto me pertence... e ponto final! Nem que eu o tenha que "marcar" como parte do meu território!!!
Bom, agora que já lambi meu pelo todo, vou-me deitar e tirar uma soneca sobre o meu tapete favorito. Minha barriga está cheia e vejo que ele está ocupado no computador. Minhas músicas favoritas estão tocando e vou relaxar um pouco, até a hora de ser chamado para escovar os dentes e ir para a cama, nossa rotina nocturna, que eu controlo com maestria. Amanhã sei que vou ganhar meu carinho habitual e minha dose de atum, que eu adoro comer quando ele está em casa, na hora do jantar… a não ser que faça um bom peixinho assado e divida comigo… Hummm… O amanhã promete!
Ah, antes que esqueça: meu nome é Tiger…