Tão melancólica melodia, que vinha
daqueles dedos longos e quase tão pálidos quanto o marfim das teclas, a
acariciá-las com atrevida lascívia, ora lenta, outra energicamente.
Tocava, levemente, o velho piano, com a
mesma sensualidade que usava, estrategicamente, no contacto com a pele:
cuidadoso, leve, lento e preciso, em oposição ao vigor daquelas mãos grandes e
fortes.
A partitura estava toda rabiscada, na tentativa
de aperfeiçoar, sempre, a obra inacabada. Aquilo era perfeccionismo, preguiça
ou um não-tão-disfarçado narcisismo?
Quão triste havia-se tornado o outono,
antes de ser anunciado um desolado e sombrio inverno.
- Voltas?
- Um dia.
- Quando?
Como?
- Tu
saberás.
- Mesmo?
- Claro.
Tentou sorrir. Aquele sorriso, sempre
tão triste. Por que razão ele nunca sorria por inteiro, com os olhos, a boca, a
face toda? Aqueles olhos, nem rugas tinham. Será que nunca sorrira, de verdade?
Será que nunca fora feliz, realmente?
Pareceu-lhe mais que um simples ‘até já’… ‘até um dia’…
- Vais
feliz?
- Vou.
Um aperto no coração. Queria tanto abraçar,
de novo, aquele corpo tão desejado. Cedeu ao conflito interno, que discorria
entre o certo e o errado; entre a vontade, a necessidade e o anseio, contra o
que parecia ser ridículo e a coerência.
‘Que se dane
o conflito. É agora ou nunca mais!’
- Posso
dar-te um abraço?
- Claro.
Que triste este abraço, esta angústia,
este momento… Quisera poder odiar. Mas já não conseguia.
Como odiar a quem se
ama tanto?
Desvencilhou-se. Tinha os olhos
húmidos. Era sempre tão difícil.
- Não
chores.
- Não. Não vou
chorar. Eu nunca choro, como sabes.
Riu.
- Claro,
claro.
Olhou, pela derradeira vez, com aquele
olhar triste e distante; quase indecifrável; quase intransponível e prestes a
ausentar-se, assim, tão abruptamente.
E, então, partiu. Partiu a cara. Partiu
o coração. Partiu a louça toda. Até, mesmo, a partitura, que já era uma parte
toda partida, na partida, ficou partida.
Só restou a canção. Fora do tempo. Fora
do ritmo.
Ficaram as notas, todas soltas, numa
pauta envelhecida e carcomida pelo uso e pelos dedos cansados de reescrevê-las,
tantas vezes, sem conseguir finalizar a obra, de uma vez por todas.
Ficaram, também, aquelas palavras,
dispostas uma atrás da outra, sem métrica e sem rimas. Um repente mal
construído. Uma mistura de letras, dispostas nas folhas amareladas, desbotando,
ao tempo… nos olhos da memória…
Um nostálgico, melancólico e inacabado
Nocturno, deixado, intocado, sobre o antigo e, agora, emudecido piano, num ponto
estratégico da sala.
Na sala de estar, aquele som
melancólico ainda parecia preencher os espaços vazios.
No corpo, o vazio ficou preenchendo
todos espaços, antes tão cheios de vida.
Na vida, ficava, apenas, a taciturna
melodia, inacabada, a vibrar nos cantos do ambiente e da memória, como aquele
pseudorelacionamento, que ficou suspenso num ‘até já’… infinitamente…
***