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sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Noturno


Tão melancólica melodia, que vinha daqueles dedos longos e quase tão pálidos quanto o marfim das teclas, a acariciá-las com atrevida lascívia, ora lenta, outra energicamente.

Tocava, levemente, o velho piano, com a mesma sensualidade que usava, estrategicamente, no contacto com a pele: cuidadoso, leve, lento e preciso, em oposição ao vigor daquelas mãos grandes e fortes.

A partitura estava toda rabiscada, na tentativa de aperfeiçoar, sempre, a obra inacabada. Aquilo era perfeccionismo, preguiça ou um não-tão-disfarçado narcisismo?

Quão triste havia-se tornado o outono, antes de ser anunciado um desolado e sombrio inverno.

- Voltas?

- Um dia.

- Quando? Como?

- Tu saberás.

- Mesmo?

- Claro.


Tentou sorrir. Aquele sorriso, sempre tão triste. Por que razão ele nunca sorria por inteiro, com os olhos, a boca, a face toda? Aqueles olhos, nem rugas tinham. Será que nunca sorrira, de verdade? Será que nunca fora feliz, realmente?

Pareceu-lhe mais que um simples ‘até já’‘até um dia’

- Vais feliz?

- Vou.

Um aperto no coração. Queria tanto abraçar, de novo, aquele corpo tão desejado. Cedeu ao conflito interno, que discorria entre o certo e o errado; entre a vontade, a necessidade e o anseio, contra o que parecia ser ridículo e a coerência.

‘Que se dane o conflito. É agora ou nunca mais!’

- Posso dar-te um abraço?

- Claro.

Que triste este abraço, esta angústia, este momento… Quisera poder odiar. Mas já não conseguia. 

Como odiar a quem se ama tanto?

Desvencilhou-se. Tinha os olhos húmidos. Era sempre tão difícil.

- Não chores.

- Não. Não vou chorar. Eu nunca choro, como sabes.

Riu.

- Claro, claro.

Olhou, pela derradeira vez, com aquele olhar triste e distante; quase indecifrável; quase intransponível e prestes a ausentar-se, assim, tão abruptamente.

E, então, partiu. Partiu a cara. Partiu o coração. Partiu a louça toda. Até, mesmo, a partitura, que já era uma parte toda partida, na partida, ficou partida.

Só restou a canção. Fora do tempo. Fora do ritmo.

Ficaram as notas, todas soltas, numa pauta envelhecida e carcomida pelo uso e pelos dedos cansados de reescrevê-las, tantas vezes, sem conseguir finalizar a obra, de uma vez por todas.

Ficaram, também, aquelas palavras, dispostas uma atrás da outra, sem métrica e sem rimas. Um repente mal construído. Uma mistura de letras, dispostas nas folhas amareladas, desbotando, ao tempo… nos olhos da memória…

Um nostálgico, melancólico e inacabado Nocturno, deixado, intocado, sobre o antigo e, agora, emudecido piano, num ponto estratégico da sala.

Na sala de estar, aquele som melancólico ainda parecia preencher os espaços vazios.

No corpo, o vazio ficou preenchendo todos espaços, antes tão cheios de vida.

Na vida, ficava, apenas, a taciturna melodia, inacabada, a vibrar nos cantos do ambiente e da memória, como aquele pseudorelacionamento, que ficou suspenso num ‘até já’… infinitamente…

***