terça-feira, 31 de maio de 2011

Simbiose (Versão Oficial)

Às vezes, ele me olha fixamente, me abraça, me beija e conversa longamente comigo, mesmo sabendo que a minha mente funciona muito diferente da dele.

Nossa relação é de cumplicidade, quase uma simbiose. Ele depende da minha companhia, eu dependo dele para sobreviver, embora creia que em estado selvagem - eu nasci em África, afinal - eu possa me virar bem. Ele cuida de mim e eu velo por ele. Faço-lhe companhia sempre. Dou-lhe atenção quando quero ou quando vejo que está precisando. Ele sempre está pronto para me dar atenção, mesmo quando quero ficar sozinho, mas tento ser condescendente e paciente com este homem, para receber minhas compensações mais tarde.

Eu sei quando ele está para chegar em casa. Sinto a sua presença, apenas por instinto, mesmo antes de ouvi-lo ou vê-lo entrar pela porta. Ele conhece meus passos, percebe quando estou por perto e, além de me fazer carinho, com frequência, ainda me faz as vontades. Sabe, também, quando eu entro no quarto, à noite, para pedir um “cheiro”na cabeça e deitar-me ao seu lado. Claro que só faço isso depois de dar uma boa vistoria na casa, pois ele se limita a fechar as portas e apagar as luzes. Alguém tem que cuidar de tudo por aqui, com mais responsabilidade, afinal não é somente a segurança dele que está em jogo.

Sou curioso e diligente. Minhas extravagâncias e rotinas são evidentes e as dele também. Pela manhã, assim que saímos da cama, vamos directos ao banheiro. Gosto de deitar-me no tapete fofo, enquanto ouço a água do chuveiro a escorrer, um som que me fascina. Depois é hora do “desjejum” – do dele e do meu. Nos fins-de-semana, esta sequência muda, estrategicamente, para que eu perceba que vamos ter mais tempo juntos.

Não mexo em nada que não seja meu. Não toco em comida, a não ser que me seja dada, mesmo que eu esteja próximo de um prato feito... para ele. A minha dose vem num pratinho exclusivo ou na minha tigela de ração – também exclusiva.

Não gosto de ver as coisas fora do lugar e me acostumei com aquela sua mania de organização. Roupa suja tem que ser colocada no cesto. Se alguma coisa aparece fora do seu devido lugar, eu paro e fico olhando para ele até que conserte o erro. Minha caixa de areia tem que estar sempre limpinha. Eu aviso assim que acabo de usá-la e, assim que ele a deixa limpa e disponível, vou lá verificar se não ficou com resquícios de cheiros inconvenientes.

Não costumo procurá-lo pela casa, apenas o chamo (ele conhece meu miado especial para isso!) e sigo o som de sua voz, assim que me responde. Assim poupa-me o trabalho de ficar entrando em cada aposento, para ver se o encontro. Faço isto para garantir que não vou ficar só, desavisadamente. Aliás, ele sempre me deixa saber quando vai sair, de todo jeito. Por outro lado, também preciso de sossego e ele respeita estas minhas necessidades de silêncio e tranquilidade. Portanto, se eu colocar meu “manto da invisibilidade” e desaparecer das vistas, é porque não estou disponível. Se ele ficar me chamando, só vou me revelar novamente - se e quando - eu quiser e tiver vontade. No caso, eu chego bem quietinho e fico olhando, só para ver quão ridículo ele parece, a ponto de quase desesperar, por não me ver por perto. Imagino que ele tenha medo de me perder…

Ele pensa que pertenço a ele, mas no fundo, sabe que é o contrário. Quem dita e conduz todos os horários aqui dentro de casa sou eu mesmo. Luzes acesas depois das onze da noite, TV com o som alto, ficar na cama depois das sete da manhã ou dormir no sofá até tarde, são coisas intoleráveis, que eu trato de garantir que não me escapem ao controlo. Refeições nos horários certos, especialmente nos fins-de-semana, são essenciais e eu cuido bem para que esta regra seja cumprida. Minhas horas de sono são sagradas, por isso quando estou a lamber o pêlo, estou-me preparando para uma boa e revigorante soneca. Se me atrapalhar ou me despentear por algum motivo, tenho que recomeçar o trabalho desde o início… Claro que eu deixo evidente que isso me incomoda e… bufo, pois goste ou não, é a forma de manifestar meu descontentamento. Ele sabe que levo horas a me embelezar, afinal…

Quando quero algo, sou insistente. Na maioria das vezes ele cede, depois de algum tempo. Se encostar meu focinho na perna dele e empurrá-lo, significa que estou com fome. Se fico de barriga para cima, quero massagem. Se vou cutucá-lo no sofá, está na hora de me recolher e ir para a cama. Não gosto de portas dos guarda-roupas fechadas, nem das dos quartos e banheiros, por isto faço questão de pedir para abri-las. Quando fico sentado perto da porta de saída, quero dar uma voltinha lá fora. Ele sabe disso. Só me faz restrições ao tempo que fico no corredor e escadas e, também, ao barulho na frente das portas dos vizinhos.

Quase não brigamos, mas quando eu estou de mau humor e o ataco, ele fica chateado e me dá broncas, mas estas não são muito sérias. Somente quando eu fujo pela varanda e entro, pela janela, na casa do vizinho, é que ele fica, mesmo, muito irritado e me põe de castigo. O castigo é uma greve de fala e de atenção. Fico incomodado quando ele faz estas greves. Tento de tudo para que ele me desculpe e para que aquilo dure pouco tempo, mas ele é turrão, quase tão teimoso quanto eu. Eu sei que ele sofre com isso, também, porque me diz, quando pede desculpas e fazemos as pazes.

Aprendi a lidar com ele e ele aprendeu a ler minha linguagem e compreender minhas vocalizações, quase sem erro. Associo palavras que ele usa, com minhas atitudes. Sei responder ao meu nome, reconheço quando menciona a palavra comida, associei o convite ”vamos tomar café?” a ganhar uma colherada de iogurte e sei quando me chama para deitar e dormir. Gosto de tomar água directamente da torneira, mas ensinei-o que puxar-lhe a mão lamber-lhe as gotículas na sua pele molhada, mostra que quero que me sirva da mão em concha. E ele compreende perfeitamente. Algumas vezes tenho que ser mais óbvio ou não consigo passar minha mensagem, mas isso acontece somente quando ele está distraído.

Tenho meus dentes escovados duas vezes por dia. Pode parecer estranho, mas eu gosto – não somente do sabor da pasta de dentes, mas de ter alguns momentos dedicados só a mim. Na maioria das vezes, obedeço ao pedido dele para sentar-me, pois do contrário posso cair de cima do móvel da pia do banheiro. Eu o deixo fazer a operação com calma, sabendo que no fim vou ganhar mais um pouquinho daquela delícia. Depois, ele verifica e limpa meus olhos e nariz com o cotonete, me dá um cheiro na cabeça, um abraço e diz-me, logo em seguida, que estou lindo. É bom ouvir isso de vez em quando… Sei que sou simpático, mas ouvir que sou lindo é muito melhor…

Não tenho aversão a banho, desde que a água esteja na temperatura certa e que venha em chuveiradas gostosas nas minhas costas e barriga. Até gosto. Ele me esfrega o corpo com shampoo e com delicadeza, do contrário eu reclamo. Não fujo do banho, mas não suporto ser enxuto com a toalha. Gosto é de ficar ao sol, secando ao natural, usando meus próprios recursos, mas quero que me escove, de tempos em tempos. Aliás, a escova é um prazer ao qual não abro mão. Se ele esquecer, vou atrás e protesto. Ele acaba se divertindo com isso. Meu pêlo ganha um brilho extra e cheirinho de limpeza. Mais uma razão para ser chamado de bonitão.

Gosto bastante de música, mas nem de tudo que se ouve nesta casa. Ele conhece minhas preferências e fez uma selecção especial de canções com melodias mais harmoniosas, que eu reconheço assim que começam a tocar. Costumamos ter nosso espaço e tempo exclusivos para curtir. Aos domingos à noite, especialmente, enquanto ele passa as roupas a ferro, deito-me por perto, ouvindo àquela sequência, em silêncio, até que termine sua tarefa e chegue a hora de nos recolhermos.

Desconfio logo quando percebo certos movimentos estranhos. Se o vejo com a mala nas mãos, deito-me por perto, quieto e triste, deixando evidente que não aprecio o facto de ele viajar. Quando vai trabalhar é uma coisa muito diferente, pois eu sei que à noite, quando chega, mesmo que seja tarde, vou ter toda a atenção que mereço. Mas quando viaja, nunca sei se aquela situação vai me deixar sozinho por dois dias ou três semanas a fio... e isto me deixa desconsolado. Claro que quando ele volta, eu fico contente, mas deixo sempre manifesto meu desagrado. Faço meu teatrinho particular, que ele já conhece e aceita, dedicando-me tempo e carinho extra. É isto mesmo que quero… Ele tem que pensar que, se me acontece algo, tenho que ter quem me socorra, imediatamente. Será que ele percebe que eu preciso dele, cada vez mais, por perto?

Eu sou um sénior agora (somos, ambos, para falar a verdade). Tenho necessidades diferentes e careço de mais cuidado. Meu tempo com ele é precioso. Ele parece ter-se dado conta disso, quando conversou comigo hoje. Eu o vi lendo algo a este respeito recentemente. Não sei se ele está, de alguma forma, preparado para quaisquer eventualidades. Sei que faz pouco sentido ter expectativas que vou viver tanto quanto ele, mas percebi que chorou quando falou sobre isto. Aliás, tem chorado bastante ultimamente. Quando chora, este lugar me parece tão imenso, tão desolado… Quando ele parece desabar, eu tento permanecer firme como rocha. Então me aproximo, olho nos seus olhos e espero até que a coerência volte, que se recomponha e me diga que está bem. Às vezes até me pede desculpas, por parecer estúpido. Não sei se compreendo o que se passa, mas mesmo assim, mostro que estou ali para o que der e vier, se for necessário. E ele parece contentar-se com isso.

Eu gosto quando me olha com afeição, o que acontece quase sempre. Me faz sentir amado, mimado e especial. Eu sei que ele estima a minha presença, a forma com que eu o saúdo - com uma leve cabeçada - e minhas demonstrações de carinho, porque me dá indicações de que se regozija com isso.

Ele ri. Ele sempre ri. Às vezes apronto alguma, só para ouvir a gargalhada dele. Quem o ouve,  deve pensar que é louco, mas não o vejo muito preocupado com isso. Acho que isso o diverte, ao invés de incomodar.

Somos independentes em termos de relacionamentos com outros, mas somos muito apegados entre nós. Sei que ele fala muito a meu respeito. Deve ser por gostar tanto de mim. Gosto quando ele me escova a cabeça e o corpo, me faz massagens, deita sua cabeça sobre a minha ou quando me pega no colo e me abraça ao chegar em casa. Às vezes dança comigo de rosto colado. Gosto de acomodar-me sobre a sua barriga, enquanto ouvimos música ou assistimos à TV, deitados no sofá. No inverno, é mais agradável ainda, pois usufruo do calor de seu corpo. Ele, então, diz que me ama. Eu, em resposta, recito meu “mantra” - um ronronar contínuo - que lhe abranda as preocupações e o faz adormecer. Isto também acalma e atenua minhas tensões. Chego a cochilar ali, bem confortável e aquecido, sabendo que sou bem-vindo e tenho um lugar sempre disponível junto a ele. Só não gosto quando fica várias horas na frente do computador e me dá menos atenção que estou habituado a receber, mas na maioria das vezes ele pára e me dá alguma. Se não, eu sento-me sobre o teclado. Não há como não perceber que já passou tempo demais sem me dedicar algum…

Em termos gerais, minha vida é bem tranquila e sou bem tratado e respeitado. Não tenho acessos de ciúme, pois não tenho motivos para isso, por enquanto. Minha veia possessiva é, porém, bem acentuada e lembro bem que já mostrei quem pertence a quem, quando tive que o fazer. Ele está dentro do meu domínio, portanto me pertence... e ponto final! Nem que eu o tenha que "marcar" como parte do meu território!!!

Bom, agora que já me penteei, vou deitar-me sobre o meu tapete favorito. Minha barriga está cheia e vejo que ele está ocupado com alguém no computador. Minhas músicas favoritas estão tocando e vou relaxar um pouco, até a hora de ser chamado para escovar os dentes e ir para a cama, nossa rotina nocturna, que eu controlo com maestria. Amanhã sei que vou ganhar meu carinho habitual e minha porção de atum, que eu adoro comer quando ele está em casa, na hora do jantar… a não ser que faça um bom peixinho assado e divida comigo… Hummm… O amanhã promete!

Ah, antes que esqueça: meu nome é Tiger…

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 2

Um fim-de-semana fora da cidade deixaria os amigos distantes de olhares curiosos e de interferências indesejadas. Joe parecia querer manter as expectativas baixas, mas no fundo sabia que era-lhe praticamente impossível. Ela vinha sendo adorável naqueles dias e era-lhe difícil mostrar indiferença ou pouco interesse, apesar dos esforços em parecer casual. Já começava a perceber uma sensação conhecida invadir-lhe a alma. As borboletas que esvoaçavam em seu estômago eram apenas um prémio extra – uma compensação.

Como era a primeira vez que teriam dois dias completos somente para eles, saíram cedo, antes de o sol nascer. Não tinham de ir muito longe, mas não conseguiam controlar a ansiedade. Desejavam aproveitar tudo que aqueles dias pudessem lhes oferecer e os momentos que passariam juntos. O sol começava a tingir o céu em tons de vermelho e alaranjado quando eles chegaram ao lago – uma visão de encher os olhos, a aquecer-lhes a alma, apesar do ar frio da manhã.

 O tempo não parou. Passou rápido demais, na verdade. Eles estiveram unidos, mais que apenas fisicamente, por um laço que parecia inquebrável. A jovem mulher sentia-se especial nos braços do amante. Joe deixava-se perder no olhar cristalino e no corpo deliciosamente morno e esbelto dela. Por alguns momentos a vida pareceu assustadoramente perfeita…

Já de volta à cidade, no domingo à noite, decidiram parar no Café, para fechar o fim-de-semana da maneira mais perfeita possível, na concepção deles. Estavam ambos com o astral alto, rindo com espontaneidade e sem vontade de esconder quão bem se sentiam naquele momento. Não perceberam o par de olhos que os vigiava ao entrarem e sentarem no lugar usual. Ela fez um sinal ao rapaz do balcão, para que tocasse sua música favorita. Ele sorriu, diante da subtileza do gesto, quando os primeiros acordes da canção começaram a preencher o ar do Café.

A voz levemente rouca e sedosa da vocalista repetia: …”let me do the ‘B’ part, please… oh! Please”…* (Hess is More - Yes, Boss)

Joe pensava que talvez fosse, mesmo, tempo de passar para uma fase mais adiante no relacionamento deles e olhou-a directa e profundamente nos olhos. Ela não conseguiu deixar de enrubescer, ante o olhar magnético dele e estendeu-lhe a mão, nervosamente, enquanto um arrepio lhe passava pela coluna. A sensação era estranha e não combinou com o momento, mas ela deixou-a passar.

Aquele homem observava-os, com cuidado de não ser notado, por detrás do copo de água tónica, temperado com rodelas de limão. Levantou-se, foi até o caixa e pagou a conta, saindo logo em seguida. Os dois amigos estavam fechando a conta com a garçonete, quando ele cruzou a porta e mergulhou na rua escura.

Lá fora, o ar frio da noite de Outono obrigou-o a levantar a gola do casaco. Conhecia-lhes os hábitos suficientemente bem para saber que caminho tomariam. Embrenhou-se no beco e esperou. Sabia que se separariam quase que imediatamente após chegarem perto de onde espreitava. O jogo corpo a corpo seria mais fácil quando a vítima fosse pega de surpresa, pois não teria tanto tempo de reagir ou de se defender. Ele sentia-se como um predador. Assim como os animais, estudara os hábitos de sua presa e sabia qual a melhor estratégia de ataque, para ser mais eficiente.

A hora chegava devagar, mas ele não tinha pressa nenhuma. Saboreava os segundos que antecediam o ataque, sentindo um crescendo de emoções. Quase já nem precisava pensar. Era uma máquina que atingia o momento certo de operar – no ponto da melhor eficiência. O botão de partida havia sido accionado. Era chegada a sua grande oportunidade. Pobre vítima…

***

Joe caminhava sozinho, com seus passos ligeiros. Acabara de se despedir da amiga e sentia-se satisfeito e um pouco ansioso, até. Desta vez, queria que fosse diferente. Seguia pelo caminho que fazia automática e rotineiramente. Não precisava pensar muito, para chegar em casa - bastava seguir seus pés. Seus pensamentos estavam, na realidade, em outro lugar, em outra situação. Ele sorria, quase que secretamente. Era evidente que sua mente estava bem distante dali. Seus pensamentos iam soltos, carregados pelo vento da noite.

***

A jovem mulher seguia a rota conhecida, rumo ao seu apartamento. Seus pés moviam-se leves por sobre as pedras duras e frias das calçadas. Naquela noite pareceu-lhe que podia ser feliz. Apesar de sempre ter sido cautelosa em seus relacionamentos anteriores, a vida parecia que lhe dava novas chances, que ela valorizava, agora, de uma maneira peculiar. O homem com quem passara o fim-de-semana era especial e ímpar. Ela experimentava uma sensação distinta. Sentia-se, depois de muito tempo, amada. Era como se aquela menina, que lutava por sobreviver em seu peito - depois de sufocada por algum tempo - rejuvenescesse.

***

O vento soprava as folhas secas pela ruela semi-iluminada do beco. Quando passou pela face mais escura, não percebeu que estava sendo vigiado. Não percebeu um homem de casaco cinza se aproximar por trás de si. Não conseguiu reagir ao ser puxado pelo ombro com violência estudada. Não viu que a caneta em seu bolso fora arrancada com precisão e, num golpe certeiro, a tampa removida e a ponta de Irídio transformada em arma letal, cravada em sua jugular.

Só percebeu mesmo, antes de cair, que o homem sorriu e disse, com um certo sarcasmo na voz grave e rouca: “Adeus, Joe Hardy… Nos vemos no inferno”.

Sentiu um frio na coluna e uma sensação estranha de enfraquecimento, enquanto o sangue fluía solto de seu pescoço. Colocou a mão sobre o ferimento, mas a luz apagou-se muito rapidamente, enquanto ele caía sobre as pedras frias do calçamento, com uma expressão de assombro estampada no rosto... E não sentiu mais nenhuma dor.

***

Uma ambulância passou em alta velocidade, com as sirenes ligadas, profanando o quase silêncio da noite fresca. Ela sentiu um desconforto no peito. Uma angústia passou-lhe pela alma, o que lhe pareceu estranho, pois estava se sentindo animada, depois do fim-de-semana que passaram juntos. Mas ela confiava na sua intuição. Algo não estava certo…

Para desfazer-se da má impressão e do desconforto que instalou-se em seu peito, resolveu voltar atrás e seguir na direcção da casa de Joe. Precisava ter certeza que tudo estava bem e queria partilhar seu receio com o amigo. Precisava ter convicção que era apenas uma má impressão, nada mais que isso….

Ao reaproximar-se do Café, uma fisgada de dor atingiu-lhe em cheio, como se fosse ferida pela ponta duma lança envenenada. Ela olhou para a parte escura do beco e viu um corpo de homem caído na penumbra. A princípio achou que era um bêbado, mas seus olhos perceberam algo mais. A roupa do homem caído era-lhe familiar...

Não teve dúvida nenhuma ao correr na direcção do homem caído no chão de pedra suja, já puxando do bolso o telefone e sentindo lágrimas de dor brotarem descontroladamente de seus olhos. Mal conseguiu digitar o número da emergência, com seus dedos trémulos e clamar por socorro.

Ajoelhou-se junto ao amigo e, ao virar o corpo, viu um bilhete escrito a sangue, saindo do bolso da camisa do amigo já inconsciente. Abraçou-o, desesperada e, na sua impotência em reparar a situação irremediável, enterrou o rosto no ombro do homem ferido e chorou copiosamente, sem sentir vergonha nenhuma de ser vista naquela posição. Mal percebeu a pequena chave, saindo para fora do bolso da camisa, pendurada num cordão pardo, daqueles que se usa atado ao pescoço…

***

O homem de casaco cinza escuro afastou-se do beco, sentindo uma espécie de onda de calor, já conhecida, percorrer-lhe o corpo. Sirenes, ao longe, anunciavam a vinda da ambulância ao local e pessoas começavam a olhar, curiosas. Seguiu, sem pressa, com naturalidade e sem olhar para trás, para não levantar suspeitas.

Havia-se livrado de um ‘serial killer’ ordinário e sentimental, porém extremamente prudente, que investigava por longo tempo. Muitas mulheres haviam sido suas presas, após serem envolvidas em uma cuidadosa artimanha afectiva. Sua mente era perversa e paciente. Fazia suas - por assim dizer - vítimas, se apaixonarem por ele e depois de muito envolvidas sentimentalmente, escolher um souvenir de cada uma delas, para ser a arma do crime. Após o acto haver sido consumado, o algoz guardava os pequenos objectos, cuidadosamente, ainda manchados do sangue de suas amantes. Sabia-se, também, que as mortes aconteciam durante o acto sexual. Talvez por piedade ou algum sentimento menos pérfido, porém, não parecia haver vestígios de tortura.

O que fazia um homem se envolver com aquelas mulheres e depois matá-las da forma que ele fazia? Seria o assassino movido por algum delírio ou por um surto de esquizofrenia? Porque guardava lembranças de suas vítimas, como se quisesse recordar dos momentos vividos com elas? Estas eram questões que jamais teriam respostas. Ele nunca saberia o que movia a mente daquele homem que acabara de matar.

O que ele tinha, como certo, naquele momento, era que até mesmo os criminosos mais calculistas e frios podiam ser previsíveis. Uma pequena distracção - desatenção, talvez - foi o que bastou para condenar o assassino. Teria ele, finalmente, se apaixonado e se tornado descuidado? Ou teria o excesso de confiança lhe subido à cabeça? Fosse uma ou outra razão, nunca se saberia… e tampouco importava naquele momento. Joe Hardy havia cometido um erro, que lhe custara a vida – nada mais que isso…

Ainda lembrou, com detalhe fotograficamente admirável, como os olhos esverdeados do homem se arregalaram, ao ser surpreendido pelo golpe da ponta metálica de sua própria caneta. Ele havia usado a mesma técnica que sabia que o assassino usava: atacar de surpresa e, depois, guardar um souvenir da vítima consigo. O bilhete, escrito com o sangue da vítima, havia sido o pormenor mais subtil e sádico da história. Era o seu próprio detalhe de “requinte de crueldade”, que aprendera em tantos anos de “serviço à comunidade”, avaliando crimes hediondos. Sentiu orgulho de haver pensado naquilo, no pouco tempo que esteve junto ao corpo. Sorriu para si mesmo, sentindo-se vitorioso…

Aprumou a gola do casaco surrado, para se proteger do frio e saiu, pensando em como tinha sorte de não se relacionar com ninguém há muito tempo. As emoções deixam as pessoas vulneráveis e à mercê de oportunistas. Ele, porém, tinha que manter o sangue frio a todo custo…

Ainda tocou de leve o bolso, onde a caneta manchada de sangue aparecia ostensiva - embora discretamente - e desceu as escadas que o levariam à estação do metro. Agora, pensou, precisava fazer um relatório aos seus superiores. Havia cumprido a sua parte. Sua promoção estava sobre a mesa do chefe e era garantida, caso conseguisse fechar aquele caso de uma vez por todas…

‘Missão cumprida’, pensou e desapareceu no meio da multidão, que se dirigia aos corredores de acesso às plataformas.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Killing Joe - Parte 1

O vento do sul sopra pelo beco, agitando as folhas secas e revelando um corpo tombado de frente, contra o chão frio e encardido. Um fio do viscoso líquido vermelho escorre pelos espaços entre as pedras gastas. 

No bolso do homem caído, um papel com uma mensagem escrita em rubro: “I killed Joe Hardy”, aparentemente recém colocado, mal é percebido. A letra era quase uma garatuja rebuscada, porém bem desenhada e um pouco antiquada, aparentemente pertencendo à uma mão firme e masculina, acostumada com a escrita. 

A figura vestida em um casaco cinza escuro olha o corpo caído e recoloca a tampa prateada na caneta, com a ponta manchada de vermelho, sem limpá-la. Com um sorriso de soslaio, coloca a arma cuidadosa, mas ostensivamente, no bolso superior do casaco. As inicias JH, gravadas em relevo no corpo da caneta, desapareciam para dentro do tecido grosso do agasalho. Era provocação, sabia, mas aquilo parecia acender uma veia perversamente sádica em sua mente. 

Quem diria que aquele objecto, com uma aparência tão inocente, seria uma arma assim perigosa? 

Morto com seu próprio instrumento de trabalho, um pequeno souvenir que o acompanhara por grande parte da sua vida, o pobre homem jazia com o rosto colado à pedra fria e suja do calçamento na viela do beco. 

Vendo que sua missão estava terminada, o espectador, então, levanta a gola e sai. 

*** 

Quando viu o corpo caído, uma angústia profunda assolou-lhe o espírito. Correu, já com o telefone em punho, discando o número da emergência, mesmo sabendo que poderia ser tarde demais para socorrer o pobre corpo inerte jogado no paralelepípedo. Virou-o com cuidado e acolheu-o em seus braços, sentindo-se impotente diante da grandiosidade de uma decorrência tão natural e ao mesmo tempo tão incontrolável e inaceitável da vida. Com a mão, tentou limpar, desajeitadamente, um pouco do sangue que manchava o rosto do homem. Abraçou-o, segurando o corpo dele contra o seu, enterrando o rosto em seu ombro e chorou. Chorou como nunca havia chorado antes, diante da morte de alguém. Chorou como se parte dela estivesse morrendo naquele momento, com aquele, cuja vida esvaía-se como o sangue que já começava a secar por entre as pedras do calçamento. 

A uma certa distância, dois olhos observavam a figura sentada a chorar, abraçada ao homem estendido no chão gelado … 

*** 

Joe é um escritor. Apesar de uma vida cheia de percalços e pouca sorte em termos sentimentais, seu coração se entrega facilmente. Ele não tem medo de se expor, pois acha que as oportunidades não batem duas vezes na mesma porta. Mas ele nem sempre foi assim. A maturidade ensinou-o a despojar-se de prosaísmos. Como as coisas vieram tardiamente…quase tudo… ao atingir a meia-idade, começou a arriscar mais, com receio que o tempo que lhe restava não fosse suficiente para viver com a intensidade que sempre almejara. Riscos calculados e cuidadosamente planeados começaram a fazer parte de sua vida. 

Joe não acredita em Amor - com letra maiúscula -, ou é isso que sempre diz…o que não o impede de estar apaixonado constantemente, como todo escritor e poeta que alguma vez conheceu. Apaixonar-se inspira-lhe e aguça-lhe a imaginação, fazendo-o escrever sem parar, como se fosse acometido de uma febre. Platão morreria de inveja daquele homem, que precisava sentir calor no espírito ou não conseguiria produzir sua literatura. Um solitário, por assim dizer, com uma vida praticamente desconhecida pelas pessoas com as quais convivia. 

Ela o viu pela primeira vez num dia em que nada parecia lhe dar satisfação. Tentou parecer indiferente, apesar de não se sentir à vontade naquele ambiente pouco familiar. Era uma desconhecida, trazida por um amigo comum. 

Enquanto se entretinha com uma taça da única bebida alcoólica naquele evento, estudava os movimentos do homem de meia-idade - seu sorriso aberto, sua forma ligeira de caminhar, a maneira como tocava de leve nas pessoas, quando passava. 

Joe acabara de lançar o seu segundo livro - desta vez eram poemas -, um projecto acarinhado pelo ego e pela paixão, três anos depois do primeiro - um romance policial. Trazia uma taça de vinho branco na mão esquerda e tentava dar atenção a todos que lhe cumprimentavam. 

Quando os olhos cruzaram, o poeta sorriu. Uma sensação insólita mexeu-lhe com as entranhas. O homem trouxe-lhe um livro e comentou, enquanto lhe entregava o mesmo: “vejo que és a única pessoa aqui dentro que não carregas nas mãos a obra recém lançada”. Ela ficou meio sem graça, mas entrou na brincadeira, dando um sorriso timidamente encantador. Joe autografou-lhe o livro, com uma frase que a deixou ligeiramente perturbada. “Aos mistérios de estranhos e à emoção da descoberta. Cheers”. 

Nas horas seguintes, embora procurasse contacto visual, não foi correspondida pelo dono da noite. Ao sair, ainda deixou-se levar pela tentativa frustrada de um olhar, mas não topou com nenhum. Teve vontade de jogar o livro na primeira lixeira que encontrasse, mas acabou por resolver levar o exemplar e deixá-lo na estante. Não era aficionada por poesia, nem gostava muito de ler. Era uma mulher prática, não uma sonhadora. 

Alguns dias depois o telefone tocou. “Olá, estranha”. Ela reconheceu a voz. Teve vontade de desligar imediatamente, mas havia algo naquela saudação que a intrigava. “Olá”, disse, seca. “Não foi muito fácil encontrar o número, mas finalmente meus meios deram resultado. Espero que compreendas que não pude dar atenção durante o lançamento do livro. Não vou pedir desculpas, mas espero que não tenhas ficado chateada comigo”. O que aquele homem queria dela? “Não se preocupe. Eu compreendo. Não fiquei chateada, mesmo porque não podia achar que mereci mais atenção do que tive”… Deixou a frase assim reticente, para ver o efeito que causaria. ‘Eu também sei jogar, Joe’… pensou com um sorrisinho, que jamais seria visto pelo seu interlocutor. “Podemos nos encontrar e tomar um café?” Será que ele quer discutir o livro? Eu nem sei direito onde joguei aquela “coisa”, pensou, enquanto corria os olhos pela estante de livros, não muito recheada com uns exemplares tradicionais e alguns velhos CD’s de rock clássico. Avistou o pequeno livro no canto, provavelmente guardado pela mulher que fazia a limpeza. “OK. Escolha o lugar”. 

A figura sentada à mesa saboreava um café de aroma forte quando ele entrou. Tinha os olhos ocupados sobre as páginas de um livro, que folheava displicentemente. Parecia avaliar o conteúdo daquelas passagens, que talvez nem fizessem verdadeiro efeito em sua vida. Ele observou-a por um curto espaço de tempo e aproximou-se com um sorriso. “Este lugar está ocupado?” A leitora levantou os olhos do livro e sorriu em resposta. Joe sentou-se à frente dela e fixou-lhe o olhar. Sentiu-se enrubescer, mas aceitou o desafio, encarando-o com naturalidade estudada. Gostava daquela jogada… 

*** 

O homem de olhos esverdeados abriu a porta do pequeno aposento, parcamente mobilado com uma escrivaninha com gaveta e espelho, mais uma cadeira giratória de escritório. Não havia janelas, apenas uma espécie de veneziana sobre a porta, por onde o ar circulava. 

Ele costumava abrir a gaveta e apreciar seus troféus, cuidadosamente alinhados em um suporte de madeira, feito à mão. O artesão era cuidadoso. Mantinha assim guardados, os últimos vestígios de suas conquistas. Um souvenir de cada uma, ainda tingidos com o sangue das vítimas. Ele passa os dedos por sobre os objectos, quase acarinhando cada um deles, enquanto fechava os olhos sentindo um prazer incompreensível a quem visse de fora. A mente dele funcionava diferente, sabia muito bem… 

Virou-se, tomou o casaco, que se encontrava pendurado num cabide instalado na parede atrás da porta e saiu, fechando o aposento com uma pequena chave que trazia pendurada, num cordão pardo, ao pescoço. Já à porta do prédio, levanta a gola e sai pela rua fria, encarando o vento de Outono que lhe fustigava o rosto bem barbeado. Tinha um encontro marcado e não queria se atrasar… 

*** 

Joe estava sentado à mesma mesa, no mesmo café onde se encontraram pela primeira vez. Parecia tranquilo e feliz. O poeta deixava-se levar pelo coração. Ela, por sua vez, tecia uma teia intrincada, cautelosamente, em torno do homem mais velho. Portavam-se como amigos de longa data. Joe envolvia-se sem medo. Precisava daquela ilusão. 

Ela tinha olhos de um azul quase transparente de água marinha, um tanto puxados e cabelos castanhos, cortados curtos e cuidadosamente arrumados em um penteado para o lado direito, por sobre a pele perfeita da larga e pálida testa. Tinha um sorriso encantador, que nem sempre se abria, nos lábios bem desenhados. Era esbelta e longilínea. Tinha mãos brancas, com dedos finos e compridos. Seu aperto de mão era forte e firme, entretanto. O nariz era recto e delicado, condizendo com a face ovalada, tão agradável de se olhar. Movia-se com harmonia e andar suave e erecto. Parecia ter gostos extravagantes, pela forma como se vestia e pelo carro que conduzia. Joe não pode deixar de notar o relógio caro e ostensivo que carregava ao pulso esquerdo, embora não se impressionasse com aquele tipo de coisas. 

Aquela jovem sabia seduzir como profissional. Observava os movimentos do homem mais velho, quase a não querer ser percebida, mas Joe já sabia como fazer para espreitá-la, sem ter que cruzar os olhares, pois sentia-se constrangido de fazê-lo, com medo de afugentá-la. 

Ao passar por trás da cadeira, roçou de leve o ombro do homem, com os dedos. Aquele toque causava um efeito estranho no corpo do homem sentado. Ele sentia-se arrepiar, como se um frio estivesse preparando para congelar-lhe a alma. Ao se virar, borboletas voaram-lhe das entranhas. Sabia que era um sinal conhecido, mas decidira ignorar. Estava envolvendo-se demais pela mulher que acabara de chegar e gostava de sentir aquele desconforto estranhamente bem-vindo. Jogava alto, sabendo que as perdas poderiam não compensar, no final, mas já não se importava com aquilo. Ele sabia que o tempo não era um amigo fiável, por isso tinha pressa em aproveitar a oportunidade. 

Joe tinha medo de envelhecer, mas não desesperava com a vida e com a velocidade com que as coisas aconteciam à sua volta. 

Aquela canção começou a tocar ao mesmo tempo em que ela sentou-se à frente do homem. Ambos sorriram, ao reconhecer a melodia e as palavras cantadas pela voz aveludada da vocalista. Daquele momento em diante, tornou-se como se fosse o tema deles. Quando tinha oportunidade, murmurava os acordes, cantarolava ou colocava a tocar para os dois.

"Yes, Boss, I'm on the mike... I'll try to give you what you like... I can be soft, I can be hot"... * (Hess is More - Yes, Boss)

Embora parecesse casual, Joe tinha esperança que ela o estivesse provocando, de uma maneira que achava estimulante e até se divertia com aquilo. Os olhos o seguiam, mesmo quando fingia não o fazer. Mas o homem mais experiente já conhecia aquele comportamento. Ele sabia jogar e, jogar com uma pessoa tão bonita, como aquela sentada à sua frente, causava-lhe uma satisfação enorme… 

Mais tarde, na mesma noite, sentiu-se bem diferente de como vinha se sentindo ultimamente: desejado, atraente, sedutor… Pensou na frase que havia usado, não muito antes e que cabia, como uma luva, naquela ocasião: o homem que tem um passado como o dele, não tem porque temer o futuro… e sorriu secretamente, virado para o lado oposto, fechando os olhos e adormecendo em seguida. 

*** 

O homem observava, de longe, a pequena e quase íntima reunião. Parecia que os dois se davam bastante bem, pela forma como se olhavam, os sorrisos que trocavam e as risadas tão soltas. Vez ou outra tocavam um no braço do outro, furtivamente – numa forma quase desintencional. Percebia uma evolução no comportamento dos dois, desde que começara a observá-los juntos. Agora encontravam-se com frequência, passando vários momentos juntos, contando histórias, rindo de quase tudo. Logo chegaria a hora certa, ele sabia. Já sentia uma certa excitação crescer dentro de si, enquanto pensava no que fazer. Ele tinha certeza que teria de usar o “elemento surpresa”, se quisesse ser bem sucedido em seu intento…… Era imprescindível que agisse no momento certo, ou perderia aquela oportunidade, que poderia nunca se repetir outra vez.

Não podia, nem queria, perder aquela chance - única - ou esta iria-lhe sair muito cara... muito cara mesmo.