Eu conversava animadamente com Adrian, o acrobata, que havia acabado de apresentar sua performance da noite. Dizia-lhe, entusiasmada, como admirava seu show. Eu e alguns convidados estávamos, naquele momento, numa ampla sala de espectáculos, juntamente com os atletas e os promotores do grupo de circo búlgaro. Não percebi, porém, que estava exposta de maneira um tanto peculiar ao ambiente em que me encontrava.
James me observava em silêncio, de certa distância, sem que eu desse conta de sua presença. Aproximou-se, cumprimentou o artista, elogiando sua actuação e se dirigiu a mim, como se me conhecesse, assumindo que partilhávamos interesses comuns naquele lugar.
A princípio tentei-me desviar, para não constranger a atracção principal da noite, mas aquele jovem homem não tirava os olhos de mim e insistia em monopolizar minha atenção. Adrian percebeu logo e piscou-me o olho, em cumplicidade. Desculpei-me ao meu bem-educado interlocutor, desvencilhei-me do pequeno grupo, cautelosamente, com um leve aceno de cabeça e fui para o lado de fora, na pequena varanda que tinha vista para o mar, fingindo precisar de ar puro.
O acrobata se entreteve com os outros convidados, mostrando sua cordialidade e gentileza e seu comprometimento com o espectáculo que havia acabado de dar.
James seguiu-me, depois de algum tempo, para minha não total surpresa… Virei-me, ao ouvi-lo chamar meu nome e olhei-o directamente no rosto, sorrindo. Seus olhos azuis traziam uma tristeza misteriosamente profunda, como as águas de um imenso oceano. Fiquei imediatamente intrigada com aquela característica de seu olhar.
Por sermos desconhecidos um do outro, “small talk” começou sobre o assunto comum entre nós: a apreciação pelo espectáculo de acrobacia que acabáramos de assistir e nossa admiração pelo atleta principal.
Aparentemente não era a única coisa que tínhamos em comum, como pudemos perceber através do curso que nosso diálogo seguiu. Em poucos minutos já conversávamos animadamente como dois amigos de longa data, dada a facilidade e velocidade com que nos tornamos afins. Descobrimos que partilhávamos não somente interesses, mas também histórias similares. Dei-me conta que nossos pensamentos alinhavam-se quase automaticamente, como se fôssemos conhecidos desde há muito tempo. Ao me contar alguns detalhes de sua caminhada, percebi que aquele homem tinha um grande problema pendente com seu passado recente, que precisava resolver logo, antes que fosse demasiadamente tarde.
Intoxicado por um relacionamento drenante, onde dava mais que recebia e que o tornava vulnerável, não parecia perceber o perigo que corria. Vendo friamente do lado de fora, eu tentei mostrar-lhe os riscos e para onde aquela relação o levaria, se ele não colocasse um ponto final o quanto antes. Já havia passado por situações semelhantes, mais que uma vez, por isso sentia-me confortável em dizer-lhe o que pensava.
Eu sou perita em relacionamentos que não deram certo.
Ele pareceu compreender minhas palavras e minha apreensão. Dei-lhe o que pensar, tinha certeza. Sugeri nos encontrarmos novamente, no dia seguinte, para um café. James era cultor do corpo e mente sãos e dispensava cafeína de sua dieta. Sua recusa me fez enrubescer, mas ele sorriu e disse que me acompanhava, de qualquer jeito. Não o condenei, pois há não muito atrás, eu tinha a mesma atitude com meu corpo.
Sugeri, então, uma boa taça de vinho tinto, que se mostrou ser uma decisão mais acertada e conveniente – talvez até mais elegante.
Ao invés do dia seguinte, acabamos por seguir nossos instintos e descer até um pequeno restaurante, não longe dali. Não vimos o tempo passar, enquanto a conversa aprofundava o conhecimento entre nós e somente fomos chamados à vida, quando o garção trouxe a conta, para poder fechar o recinto.
Já na rua, caminhando lado a lado, perguntei-lhe sem levantar os olhos do passeio, como se fosse a coisa mais natural do mundo:
“Onde estiveste minha vida toda?”
“Envolvido com pessoas erradas… esperando por ti”, foi a rápida resposta dele, parando em minha frente e olhando-me fixamente nos olhos.
Fingindo não perceber o gesto espontâneo dele, nem as prováveis intenções e sentindo meus músculos do pescoço ficarem subitamente tensos, dei uma risadinha nervosa e continuei a caminhar. Ele não se deu por vencido.
“Eu quero te ver – completamente e por inteiro. Tu te mostras a mim, por inteiro? Por Favor...”
“Então me prometa que o passado fica no passado.” Ele sorriu, meio sem jeito.
O que eu lhe pedia era um grande sacrifício e ambos sabíamos disto. Seguimos meio sérios demais, a caminho de casa, evitando olharmos um para o outro, durante o resto do trajecto.
A pouca luz que entrava no aposento não me permitia ver aqueles olhos azuis, que eu passara a admirar, tão logo os vira pela primeira vez. Sabia que ele me estudava em silêncio e tentei esconder o sorriso, achando que passaria despercebido. Ele então segurou-me a mão e sussurrou:
“Tudo em ti é perfeito para mim... teus cabelos, teus olhos, teu nariz, tua boca... ah, tua boca… teus seios, tua barriga, tua... mmmmmm... tuas nádegas, tuas pernas... tudo, Cass.”
Ele, ao contrário de mim, evitava usar palavrões quando falava, até mesmo quando se irritava com alguma coisa, como somente fui perceber bem mais tarde. Naquele momento, ele se referia ao cuidado que eu vinha tendo com minha aparência física, nos últimos tempos. Depois de haver perdido algum peso, me recusava a aceitar a idade que se apoderava de mim, em velocidade intolerável e desenfreada. Ele sabia e por isto mesmo costumava dizer o quanto gostava de ver meu corpo, alimentando minha vaidade, para meu deleite.
Nos poucos dias que se seguiram, inventamos uma rotina nova, que ia evoluindo em intimidade. Muitas vezes não precisávamos falar mais que umas poucas palavras, para nos entender, preferindo usufruir o silêncio dos olhares e a nossa companhia mútua. Outras vezes falávamos sem parar, por horas, compartilhando pequenos segredos que iam nos aproximando cada vez mais.
Eu chegara do trabalho e via uma mensagem recebida enquanto eu estava fora, a piscar na tela do computador. Sorri para mim mesma, pensando com meus botões, que James devia querer dizer-me algo interessante ou importante.
A mensagem era directa, quase seca. Ao ler, fiquei sem saber o que dizer, absolutamente sem reacção... apenas com uma vontade enorme de chorar. Li e reli… uma, duas, três vezes…
“Cass... Eu tenho que me afastar daqui por uns tempos... Tenho uns amigos fora do país que sempre me convidam para visitá-los e agora é a ocasião perfeita para ir. Vou aproveitar esta oportunidade para ficar sozinho e me centrar, num ambiente diferente deste em que me encontro. Se não fosse por ti, nunca teria tido coragem suficiente para enfrentar meus medos. Eu preciso destes momentos sozinho, mais do que nunca... Te digo isto agora, para que possas ter tempo de ler e tentar entender, antes que nos falemos outra vez.”
Desaparecer por uns tempos - mudar de ambiente, para poder aclarar sua mente… Minha razão temeu que houvesse mais coisas a ter que ficar em suspenso – por prazo indeterminado.
Ele, afinal, havia ouvido com atenção os conselhos que lhe dera, sobre colocar um ponto final na situação que o deixava vulnerável ao extremo. Eu deveria ficar contente com aquela decisão, mas ao contrário, entristecera, por ter que deixá-lo afastar-se de mim, por um tempo que não sabia precisar. Embora já me sentisse envolvida demais, decidi manter as expectativas baixas, para evitar embarcar em uma viagem perigosa, para quem já tivera tantos dissabores.
Era a vida repetindo seu drama continuamente. Já passara por aquilo, não somente uma, mas, pelo menos, três vezes. E em todas as vezes anteriores em que fora necessário esperar, as perdas haviam sido inevitavelmente evidentes.
Quem volta, volta sempre diferente… e meu coração sabia quem perdia… sempre.
Quando nos encontramos novamente, ele me disse que não fugia de mim, mas daquilo que o fazia sentir-se usado.
"Eu não estou fugindo, nem me afastando de ti... mas eu preciso me encontrar, antes de me envolver completamente, outra vez, com alguém. Eu não quero sofrer uma recaída, nem te fazer sofrer por minha causa, por não estar totalmente preparado”.
Eu compreendia que se não lavasse a “alma”, não poderia voltar apto para enfrentar novos desafios. A decisão que ele tomava era séria demais. Talvez tivesse sido levado a aquilo, por querer que o relacionamento desse muito certo entre nós… por me levar mais a sério que outras anteriormente. E eu não podia fazer nada para impedir… tinha mais é que incentivá-lo, ou jamais o teria plenamente livre para fazer parte de minha vida.
Sentada na praia, observando os movimentos que o jovem homem fazia com a prancha sobre as ondas, deixei meus pensamentos deslizarem soltos, ao som continuado e repetitivo do arrastar das águas do mar sobre as areias.
O corpo firme, sustentado pelas pernas musculosas, das quais tinha enorme orgulho, fazia manobras cuidadosas, arriscando mostrar-se quase desnecessariamente, mesmo sabendo que eu dava menos importância ao facto e mais ao elemento em si. Acenei-lhe. Sabia que fazia por querer que eu o visse melhor, não por ser naturalmente audaz, embora eu já o admirasse, fosse qual fosse a atitude.
Não demorou muito a vir caminhando em minha direcção, ofegante, mas com um sorriso encantador me saudando desde ainda certa distância. Fincou a prancha na areia e estirou-se ao meu lado, exalando um longo suspiro, deitando de costas sobre o chão da praia.
Eu o olhei, sem dizer nada, apenas sorrindo. Muitas vezes preferíamos dividir o silêncio, ao invés de trocar palavras sem objectivo específico. Ele olhou-me nos olhos e disse, baixinho:
“Oh, eu me sinto tão bem”…
Eu sabia o que ele queria dizer com aquela frase. Levantei-me e apanhei a mochila que tinha uma toalha seca, que atirei-lhe, brincando. Ele passou a mesma sobre o rosto e os cabelos, dobrou ao meio e entregou-me, em seguida.
Levantando-se, tomou a prancha sobre o braço e começou a caminhar ao meu lado, sem dizer mais nada. Eu segui chutando a areia, na direcção do carro, sem olhar para o lado, onde ele agora caminhava assobiando uma canção conhecida.
A caminho de casa ele me perguntou:
“Está tudo bem?”
Eu respondi-lhe que garantidamente me sentia muito bem, graças a ele. Ele sorriu e resmungou um “oh…”, sorrindo em seguida, como se fosse um menino que ouvira um segredo que já conhecia… dissimulando surpresa, para não estragar o momento. Soquei-lhe o braço chamando-o de bobo. Ele fingiu que doeu e gritou um “ah”, rindo alto, logo em seguida.
“Tens fome?”
Balancei que sim com a cabeça.
O cd player tocava uma sequência que ambos havíamos escolhido e eu cantarolei junto com a voz ao altifalante, “did you ever know that you’re my hero? You’re everything I would like to be. I can fly higher than an eagle if you are the wind beneath my wings”… (Bette Midler - Wind beneath my wings)
Ele sorriu levemente, sem tirar os olhos da estrada. Era uma de suas canções favoritas.
A garrafa de vinho, meio cheia sobre a mesa da cozinha, testemunhava o olhar que ele me lançava por trás da taça de cristal, enquanto saboreava seu tinto preferido. Havíamos preparado o jantar a quatro mãos, tornando uma tarefa quase banal em um exercício de cumplicidade.
Aqueles olhos procuravam os meus, dizendo-me coisas sem falar e fazendo-me enrubescer ao pensar em indecências detectadas automaticamente pelo homem sentado à minha frente.
O forno apitou, desviando minha atenção e a dele, para o prato que ficava pronto, enquanto Ginger entrava às pressas, esperando ganhar sua porção.
Quase uma hora mais tarde, uma segunda garrafa havia sido aberta e já ia pela metade. Estávamos ambos sentados confortavelmente no sofá da sala, ouvindo música e acariciando as costas e cabeça do mimado felino, que ronronava alto, deleitando-se de satisfação, com tanta atenção que recebia.
O álcool provocara um efeito relaxante em nós, colocando um pouco de cor em nossos rostos e dando-nos uma sensação de serenidade. James olhou-me nos olhos e disse, no seu tom tranquilo de voz:
“Minha cara Cass. Estou tão feliz de estar aqui contigo. Eu me sinto tão afortunado neste momento”…
Olhei-o com autêntica ternura, compreendendo perfeitamente ao que ele se referia e sentindo-me bem, também, como jamais havia-me sentido antes...
O vermelho vivo do vinho e o azul profundo de seus olhos me fizeram pensar em outros tempos, quando estas duas cores mexiam com meu equilíbrio. Ele percebeu a luz de meu olhar se tornar baça e meu semblante entristecer. Sabia ler meus movimentos melhor que ninguém, apesar do pouco tempo que estávamos juntos.
Puxou-me com delicada firmeza e me abraçou com verdadeiro carinho. Movido pela atitude espontânea daquele homem, deixei-me levar pela emoção do momento e chorei em seus braços. Ele apenas sussurrou meu nome, várias vezes, tentando me consolar:
“Cass, Cass… minha tão doce Cassie”…
Senti seu corpo responder ao calor do meu, fechei os olhos e abandonei-me.
Ele pousou seus lábios no alto de minha cabeça e suspirou profundamente, enquanto me mantinha aninhada em seu abraço, como se eu fosse uma criança que teme a tempestade e se conforta na força de quem confia. Então me beijou a testa, as pálpebras, o rosto e os lábios, com gentileza, no começo, depois com ardor, quase com desespero, como se aquele fosse o último dia de nossas vidas. Agarrei-me ao desejo de ser feliz e à paixão exacerbada que se apoderou de nós, sem medo e sem preconceitos, seguindo o curso que o momento tomou, em direcção a um ponto de luz que se movia, para além da distância e do tempo, sem piedade de nós.
E ele me amou como um grande sedutor faz. Usou todos os sentidos, sem pressa, sem medo, sem reservas. À meia-luz da sala eu apreciei todos os detalhes da beleza daquele homem, bebendo amor de sua boca, aspirando o perfume que emanava de seu corpo, ouvindo seus sussurros e seus gemidos a preencher meus ouvidos, sentindo o calor de sua pele a aquecer meu corpo, vibrando com seu toque em cada pedaço buscado em mim, causando-me arrepios de prazer, em contraste com o fervor do momento.
Uma mulher precisa se sentir segura e amada. Faz parte da natureza feminina.
Aquele homem sabia como fazer-me sentir admirada, respeitada e especial. Ele me amou não uma, nem duas, mas três vezes seguidas, insaciavelmente… incansavelmente. Cada vez que acabava de me amar, beijava-me com ardor e me olhava com ternura, provando-me sem parar, iniciando um novo processo de exploração que parecia não ter fim… e nem eu queria que tivesse. Meu ser inteiro respondia aos estímulos dele, como se meus sentidos quisessem mais e mais usufruir de cada detalhe do que ele me proporcionava naquela noite, madrugada a dentro.
Eu já não pensava: eu somente sentia… tudo – intensamente - e com todos os meus sentidos, com todo meu corpo, com todo meu ser. Quando finalmente adormeci em seus braços, encaixada nele – yin e yang: as duas metades de um todo - complementando-me em meu amante, como se fosse parte essencial do que ele era, ali, naquele momento – e como se ele fosse a parte mais fundamental de mim, senti-me acolhida por um anjo, suspensa entre o céu e a terra.
O orvalho da manhã escorria pela vidraça quando o sol riscou o horizonte com sua faixa achatada de luz colorida e desenhou sombras alongadas no chão da sala. Olhei o homem que me olhava seriamente nos olhos, enlaçando-me ainda em seu abraço confortante, segurando-me com firmeza, como se tivesse receio que eu lhe pudesse fugir.
Então, como se trespassado pela seta perniciosa e envenenada de algum demónio determinado a nos afastar, aquele azul intransponível em seu olhar pareceu distanciar-se de mim, sem emitir som algum, à velocidade da luz. Um imenso buraco negro de silêncio estabeleceu-se, instantaneamente, entre nós. Era hora da partida…
A caminho do aeroporto, sentia um peso enorme aniquilar-me a alma. O silêncio da viagem esmagava nossos corpos - agora tensos - e sufocava as palavras que não eram proferidas. Quando ele passou pelo controle de bagagem e olhou-me, acenando discretamente, sorri um sorriso triste e acenei-lhe de volta, sabendo de antemão que, naquela despedida, ele levava todas as minhas esperanças consigo e deixava uma sensação de impotência em relação ao nosso futuro juntos.
Ao chegar em casa, percebi que havia uma mensagem de Adrian, na caixa de entrada… Li, com cuidado e desliguei o computador, sem responder.
Deitei-me no sofá, na penumbra da sala, onde há poucas horas partilhava meus últimos momentos junto ao homem que havia partido em busca de si mesmo. Meu coração apertou-se, temendo pelo futuro, que tornava-se uma mancha nebulosa em minha cabeça.
Ginger aproximou-se de mim, pediu permissão - com um leve grunhido - e aninhou-se sobre meu peito a ronronar, como tantas vezes fazia, quando me via quieta demais ou percebia alguma tristeza no ar. Abracei o animalzinho e deixei as lágrimas fluírem espontaneamente face abaixo.
Ele me olhou fixamente nos olhos e colocou a pata – delicadamente - no meu rosto, como se tentasse me consolar, diante da angústia que sentia vir de mim, em descontroladas torrentes de choro…