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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Em Vermelho e Azul


Eu conversava animadamente com Adrian, o acrobata, que havia acabado de apresentar sua performance da noite. Dizia-lhe, entusiasmada, como admirava seu show. Eu e alguns convidados estávamos, naquele momento, numa ampla sala de espectáculos, juntamente com os atletas e os promotores do grupo de circo búlgaro. Não percebi, porém, que estava exposta de maneira um tanto peculiar ao ambiente em que me encontrava. 

James me observava em silêncio, de certa distância, sem que eu desse conta de sua presença. Aproximou-se, cumprimentou o artista, elogiando sua actuação e se dirigiu a mim, como se me conhecesse, assumindo que partilhávamos interesses comuns naquele lugar. 

A princípio tentei-me desviar, para não constranger a atracção principal da noite, mas aquele jovem homem não tirava os olhos de mim e insistia em monopolizar minha atenção. Adrian percebeu logo e piscou-me o olho, em cumplicidade. Desculpei-me ao meu bem-educado interlocutor, desvencilhei-me do pequeno grupo, cautelosamente, com um leve aceno de cabeça e fui para o lado de fora, na pequena varanda que tinha vista para o mar, fingindo precisar de ar puro. 

O acrobata se entreteve com os outros convidados, mostrando sua cordialidade e gentileza e seu comprometimento com o espectáculo que havia acabado de dar. 

James seguiu-me, depois de algum tempo, para minha não total surpresa… Virei-me, ao ouvi-lo chamar meu nome e olhei-o directamente no rosto, sorrindo. Seus olhos azuis traziam uma tristeza misteriosamente profunda, como as águas de um imenso oceano. Fiquei imediatamente intrigada com aquela característica de seu olhar. 

Por sermos desconhecidos um do outro, “small talk” começou sobre o assunto comum entre nós: a apreciação pelo espectáculo de acrobacia que acabáramos de assistir e nossa admiração pelo atleta principal. 

Aparentemente não era a única coisa que tínhamos em comum, como pudemos perceber através do curso que nosso diálogo seguiu. Em poucos minutos já conversávamos animadamente como dois amigos de longa data, dada a facilidade e velocidade com que nos tornamos afins. Descobrimos que partilhávamos não somente interesses, mas também histórias similares. Dei-me conta que nossos pensamentos alinhavam-se quase automaticamente, como se fôssemos conhecidos desde há muito tempo. Ao me contar alguns detalhes de sua caminhada, percebi que aquele homem tinha um grande problema pendente com seu passado recente, que precisava resolver logo, antes que fosse demasiadamente tarde. 

Intoxicado por um relacionamento drenante, onde dava mais que recebia e que o tornava vulnerável, não parecia perceber o perigo que corria. Vendo friamente do lado de fora, eu tentei mostrar-lhe os riscos e para onde aquela relação o levaria, se ele não colocasse um ponto final o quanto antes. Já havia passado por situações semelhantes, mais que uma vez, por isso sentia-me confortável em dizer-lhe o que pensava. 

Eu sou perita em relacionamentos que não deram certo. 

Ele pareceu compreender minhas palavras e minha apreensão. Dei-lhe o que pensar, tinha certeza. Sugeri nos encontrarmos novamente, no dia seguinte, para um café. James era cultor do corpo e mente sãos e dispensava cafeína de sua dieta. Sua recusa me fez enrubescer, mas ele sorriu e disse que me acompanhava, de qualquer jeito. Não o condenei, pois há não muito atrás, eu tinha a mesma atitude com meu corpo. 

Sugeri, então, uma boa taça de vinho tinto, que se mostrou ser uma decisão mais acertada e conveniente – talvez até mais elegante. 

Ao invés do dia seguinte, acabamos por seguir nossos instintos e descer até um pequeno restaurante, não longe dali. Não vimos o tempo passar, enquanto a conversa aprofundava o conhecimento entre nós e somente fomos chamados à vida, quando o garção trouxe a conta, para poder fechar o recinto. 

Já na rua, caminhando lado a lado, perguntei-lhe sem levantar os olhos do passeio, como se fosse a coisa mais natural do mundo: 

“Onde estiveste minha vida toda?” 

“Envolvido com pessoas erradas… esperando por ti”, foi a rápida resposta dele, parando em minha frente e olhando-me fixamente nos olhos. 

Fingindo não perceber o gesto espontâneo dele, nem as prováveis intenções e sentindo meus músculos do pescoço ficarem subitamente tensos, dei uma risadinha nervosa e continuei a caminhar. Ele não se deu por vencido. 

“Eu quero te ver – completamente e por inteiro. Tu te mostras a mim, por inteiro? Por Favor...” 

“Então me prometa que o passado fica no passado.” Ele sorriu, meio sem jeito. 

O que eu lhe pedia era um grande sacrifício e ambos sabíamos disto. Seguimos meio sérios demais, a caminho de casa, evitando olharmos um para o outro, durante o resto do trajecto. 


A pouca luz que entrava no aposento não me permitia ver aqueles olhos azuis, que eu passara a admirar, tão logo os vira pela primeira vez. Sabia que ele me estudava em silêncio e tentei esconder o sorriso, achando que passaria despercebido. Ele então segurou-me a mão e sussurrou: 

“Tudo em ti é perfeito para mim... teus cabelos, teus olhos, teu nariz, tua boca... ah, tua boca… teus seios, tua barriga, tua... mmmmmm... tuas nádegas, tuas pernas... tudo, Cass.” 

Ele, ao contrário de mim, evitava usar palavrões quando falava, até mesmo quando se irritava com alguma coisa, como somente fui perceber bem mais tarde. Naquele momento, ele se referia ao cuidado que eu vinha tendo com minha aparência física, nos últimos tempos. Depois de haver perdido algum peso, me recusava a aceitar a idade que se apoderava de mim, em velocidade intolerável e desenfreada. Ele sabia e por isto mesmo costumava dizer o quanto gostava de ver meu corpo, alimentando minha vaidade, para meu deleite. 

Nos poucos dias que se seguiram, inventamos uma rotina nova, que ia evoluindo em intimidade. Muitas vezes não precisávamos falar mais que umas poucas palavras, para nos entender, preferindo usufruir o silêncio dos olhares e a nossa companhia mútua. Outras vezes falávamos sem parar, por horas, compartilhando pequenos segredos que iam nos aproximando cada vez mais


Eu chegara do trabalho e via uma mensagem recebida enquanto eu estava fora, a piscar na tela do computador. Sorri para mim mesma, pensando com meus botões, que James devia querer dizer-me algo interessante ou importante. 

A mensagem era directa, quase seca. Ao ler, fiquei sem saber o que dizer, absolutamente sem reacção... apenas com uma vontade enorme de chorar. Li e reli… uma, duas, três vezes… 

Cass... Eu tenho que me afastar daqui por uns tempos... Tenho uns amigos fora do país que sempre me convidam para visitá-los e agora é a ocasião perfeita para ir. Vou aproveitar esta oportunidade para ficar sozinho e me centrar, num ambiente diferente deste em que me encontro. Se não fosse por ti, nunca teria tido coragem suficiente para enfrentar meus medos. Eu preciso destes momentos sozinho, mais do que nunca... Te digo isto agora, para que possas ter tempo de ler e tentar entender, antes que nos falemos outra vez.” 

Desaparecer por uns tempos - mudar de ambiente, para poder aclarar sua mente… Minha razão temeu que houvesse mais coisas a ter que ficar em suspenso – por prazo indeterminado. 

Ele, afinal, havia ouvido com atenção os conselhos que lhe dera, sobre colocar um ponto final na situação que o deixava vulnerável ao extremo. Eu deveria ficar contente com aquela decisão, mas ao contrário, entristecera, por ter que deixá-lo afastar-se de mim, por um tempo que não sabia precisar. Embora já me sentisse envolvida demais, decidi manter as expectativas baixas, para evitar embarcar em uma viagem perigosa, para quem já tivera tantos dissabores. 

Era a vida repetindo seu drama continuamente. Já passara por aquilo, não somente uma, mas, pelo menos, três vezes. E em todas as vezes anteriores em que fora necessário esperar, as perdas haviam sido inevitavelmente evidentes. 

Quem volta, volta sempre diferente… e meu coração sabia quem perdia… sempre. 

Quando nos encontramos novamente, ele me disse que não fugia de mim, mas daquilo que o fazia sentir-se usado. 

"Eu não estou fugindo, nem me afastando de ti... mas eu preciso me encontrar, antes de me envolver completamente, outra vez, com alguém. Eu não quero sofrer uma recaída, nem te fazer sofrer por minha causa, por não estar totalmente preparado”. 

Eu compreendia que se não lavasse a “alma”, não poderia voltar apto para enfrentar novos desafios. A decisão que ele tomava era séria demais. Talvez tivesse sido levado a aquilo, por querer que o relacionamento desse muito certo entre nós… por me levar mais a sério que outras anteriormente. E eu não podia fazer nada para impedir… tinha mais é que incentivá-lo, ou jamais o teria plenamente livre para fazer parte de minha vida. 


Sentada na praia, observando os movimentos que o jovem homem fazia com a prancha sobre as ondas, deixei meus pensamentos deslizarem soltos, ao som continuado e repetitivo do arrastar das águas do mar sobre as areias. 

O corpo firme, sustentado pelas pernas musculosas, das quais tinha enorme orgulho, fazia manobras cuidadosas, arriscando mostrar-se quase desnecessariamente, mesmo sabendo que eu dava menos importância ao facto e mais ao elemento em si. Acenei-lhe. Sabia que fazia por querer que eu o visse melhor, não por ser naturalmente audaz, embora eu já o admirasse, fosse qual fosse a atitude. 

Não demorou muito a vir caminhando em minha direcção, ofegante, mas com um sorriso encantador me saudando desde ainda certa distância. Fincou a prancha na areia e estirou-se ao meu lado, exalando um longo suspiro, deitando de costas sobre o chão da praia. 

Eu o olhei, sem dizer nada, apenas sorrindo. Muitas vezes preferíamos dividir o silêncio, ao invés de trocar palavras sem objectivo específico. Ele olhou-me nos olhos e disse, baixinho: 

“Oh, eu me sinto tão bem”… 

Eu sabia o que ele queria dizer com aquela frase. Levantei-me e apanhei a mochila que tinha uma toalha seca, que atirei-lhe, brincando. Ele passou a mesma sobre o rosto e os cabelos, dobrou ao meio e entregou-me, em seguida. 

Levantando-se, tomou a prancha sobre o braço e começou a caminhar ao meu lado, sem dizer mais nada. Eu segui chutando a areia, na direcção do carro, sem olhar para o lado, onde ele agora caminhava assobiando uma canção conhecida. 

A caminho de casa ele me perguntou: 

“Está tudo bem?” 

Eu respondi-lhe que garantidamente me sentia muito bem, graças a ele. Ele sorriu e resmungou um “oh…”, sorrindo em seguida, como se fosse um menino que ouvira um segredo que já conhecia… dissimulando surpresa, para não estragar o momento. Soquei-lhe o braço chamando-o de bobo. Ele fingiu que doeu e gritou um “ah”, rindo alto, logo em seguida. 

“Tens fome?” 

Balancei que sim com a cabeça. 

O cd player tocava uma sequência que ambos havíamos escolhido e eu cantarolei junto com a voz ao altifalante, “did you ever know that you’re my hero? You’re everything I would like to be. I can fly higher than an eagle if you are the wind beneath my wings”… (Bette Midler - Wind beneath my wings)

Ele sorriu levemente, sem tirar os olhos da estrada. Era uma de suas canções favoritas. 


A garrafa de vinho, meio cheia sobre a mesa da cozinha, testemunhava o olhar que ele me lançava por trás da taça de cristal, enquanto saboreava seu tinto preferido. Havíamos preparado o jantar a quatro mãos, tornando uma tarefa quase banal em um exercício de cumplicidade. 

Aqueles olhos procuravam os meus, dizendo-me coisas sem falar e fazendo-me enrubescer ao pensar em indecências detectadas automaticamente pelo homem sentado à minha frente. 

O forno apitou, desviando minha atenção e a dele, para o prato que ficava pronto, enquanto Ginger entrava às pressas, esperando ganhar sua porção. 

Quase uma hora mais tarde, uma segunda garrafa havia sido aberta e já ia pela metade. Estávamos ambos sentados confortavelmente no sofá da sala, ouvindo música e acariciando as costas e cabeça do mimado felino, que ronronava alto, deleitando-se de satisfação, com tanta atenção que recebia. 

O álcool provocara um efeito relaxante em nós, colocando um pouco de cor em nossos rostos e dando-nos uma sensação de serenidade. James olhou-me nos olhos e disse, no seu tom tranquilo de voz: 

“Minha cara Cass. Estou tão feliz de estar aqui contigo. Eu me sinto tão afortunado neste momento”… 

Olhei-o com autêntica ternura, compreendendo perfeitamente ao que ele se referia e sentindo-me bem, também, como jamais havia-me sentido antes... 

O vermelho vivo do vinho e o azul profundo de seus olhos me fizeram pensar em outros tempos, quando estas duas cores mexiam com meu equilíbrio. Ele percebeu a luz de meu olhar se tornar baça e meu semblante entristecer. Sabia ler meus movimentos melhor que ninguém, apesar do pouco tempo que estávamos juntos. 

Puxou-me com delicada firmeza e me abraçou com verdadeiro carinho. Movido pela atitude espontânea daquele homem, deixei-me levar pela emoção do momento e chorei em seus braços. Ele apenas sussurrou meu nome, várias vezes, tentando me consolar: 

“Cass, Cass… minha tão doce Cassie”… 

Senti seu corpo responder ao calor do meu, fechei os olhos e abandonei-me. 

Ele pousou seus lábios no alto de minha cabeça e suspirou profundamente, enquanto me mantinha aninhada em seu abraço, como se eu fosse uma criança que teme a tempestade e se conforta na força de quem confia. Então me beijou a testa, as pálpebras, o rosto e os lábios, com gentileza, no começo, depois com ardor, quase com desespero, como se aquele fosse o último dia de nossas vidas. Agarrei-me ao desejo de ser feliz e à paixão exacerbada que se apoderou de nós, sem medo e sem preconceitos, seguindo o curso que o momento tomou, em direcção a um ponto de luz que se movia, para além da distância e do tempo, sem piedade de nós. 


E ele me amou como um grande sedutor faz. Usou todos os sentidos, sem pressa, sem medo, sem reservas. À meia-luz da sala eu apreciei todos os detalhes da beleza daquele homem, bebendo amor de sua boca, aspirando o perfume que emanava de seu corpo, ouvindo seus sussurros e seus gemidos a preencher meus ouvidos, sentindo o calor de sua pele a aquecer meu corpo, vibrando com seu toque em cada pedaço buscado em mim, causando-me arrepios de prazer, em contraste com o fervor do momento. 

Uma mulher precisa se sentir segura e amada. Faz parte da natureza feminina. 

Aquele homem sabia como fazer-me sentir admirada, respeitada e especial. Ele me amou não uma, nem duas, mas três vezes seguidas, insaciavelmente… incansavelmente. Cada vez que acabava de me amar, beijava-me com ardor e me olhava com ternura, provando-me sem parar, iniciando um novo processo de exploração que parecia não ter fim… e nem eu queria que tivesse. Meu ser inteiro respondia aos estímulos dele, como se meus sentidos quisessem mais e mais usufruir de cada detalhe do que ele me proporcionava naquela noite, madrugada a dentro. 

Eu já não pensava: eu somente sentia… tudo – intensamente - e com todos os meus sentidos, com todo meu corpo, com todo meu ser. Quando finalmente adormeci em seus braços, encaixada nele – yin e yang: as duas metades de um todo - complementando-me em meu amante, como se fosse parte essencial do que ele era, ali, naquele momento – e como se ele fosse a parte mais fundamental de mim, senti-me acolhida por um anjo, suspensa entre o céu e a terra. 


O orvalho da manhã escorria pela vidraça quando o sol riscou o horizonte com sua faixa achatada de luz colorida e desenhou sombras alongadas no chão da sala. Olhei o homem que me olhava seriamente nos olhos, enlaçando-me ainda em seu abraço confortante, segurando-me com firmeza, como se tivesse receio que eu lhe pudesse fugir. 

Então, como se trespassado pela seta perniciosa e envenenada de algum demónio determinado a nos afastar, aquele azul intransponível em seu olhar pareceu distanciar-se de mim, sem emitir som algum, à velocidade da luz. Um imenso buraco negro de silêncio estabeleceu-se, instantaneamente, entre nós. Era hora da partida…

A caminho do aeroporto, sentia um peso enorme aniquilar-me a alma. O silêncio da viagem esmagava nossos corpos - agora tensos - e sufocava as palavras que não eram proferidas. Quando ele passou pelo controle de bagagem e olhou-me, acenando discretamente, sorri um sorriso triste e acenei-lhe de volta, sabendo de antemão que, naquela despedida, ele levava todas as minhas esperanças consigo e deixava uma sensação de impotência em relação ao nosso futuro juntos. 

Ao chegar em casa, percebi que havia uma mensagem de Adrian, na caixa de entrada… Li, com cuidado e desliguei o computador, sem responder. 

Deitei-me no sofá, na penumbra da sala, onde há poucas horas partilhava meus últimos momentos junto ao homem que havia partido em busca de si mesmo. Meu coração apertou-se, temendo pelo futuro, que tornava-se uma mancha nebulosa em minha cabeça. 

Ginger aproximou-se de mim, pediu permissão - com um leve grunhido - e aninhou-se sobre meu peito a ronronar, como tantas vezes fazia, quando me via quieta demais ou percebia alguma tristeza no ar. Abracei o animalzinho e deixei as lágrimas fluírem espontaneamente face abaixo. 

Ele me olhou fixamente nos olhos e colocou a pata – delicadamente - no meu rosto, como se tentasse me consolar, diante da angústia que sentia vir de mim, em descontroladas torrentes de choro… 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Em Branco...

Dor… Letargia...

Por que não consigo abrir meus olhos. Que zumbido é este na minha cabeça? Onde estou eu?

Meus pulsos doem, meus braços estão imóveis. Com esforço, abro os olhos, devagar. As imagens vão se ajustando, aos poucos, na luz quase ofuscante do quarto onde estou. Este lugar é estranho.

Flash… Branco…

Tudo aqui é branco. As paredes são brancas. A cama e os lençóis são brancos. A camisa deste jovem é branca…

Não…

Ele está todo trajado em branco. Quem é este homem, que me olha com uma expressão engraçada?

“Calma”, ele pede, ao me ver forçar os braços. Sua voz é calma, branda, relaxante, quase me causa mais sonolência. “Não se mexa muito, para não abrir os ferimentos”.

“Que ferimentos?”, pensei eu. Ele toca minha fronte, como se tentasse perceber se tenho febre.

A pele dele é pálida - talvez pálida demais - mas os olhos… os olhos… são azuis… profundamente azuis. Eles me fazem lembrar… Acho que estou enlouquecendo.

Flash… Azul…

Os olhos de outro homem adornam a face deste jovem, que me olha com um misto de compaixão e curiosidade. Ah! Como eu lembro bem… amei o dono daqueles olhos com todo o meu coração…

Ele sorri, ao me ver fixar o olhar no dele e gemer, baixinho, com dificuldade. Um sorriso tão suave e encantador. Aquela curvinha adorável, decorando o canto da boca bem desenhada. Ele se aproxima e acomoda o travesseiro atrás da minha cabeça. Chego a sentir o perfume suave da pele dele. Parece até que conheço este cheiro, de outra época, de outro lugar…

Este homem me traz o passado de volta, tão nitidamente…

Minhas pálpebras pesam. Tenho sede. Peço água. Quase não reconheço minha própria voz. Estou fraca. Fecho os olhos e as lembranças vêm claras na minha mente.

Vejo a figura dele - seu sorriso, seu porte altivo e encantador… e seus olhos. Quando o vi, pela primeira vez, pareceu-me que dois faróis azuis iluminaram a sala de espera próxima ao portão 21, que se tornou vazia, de repente, no meu delírio momentâneo. Ele era magnífico, como uma grande e imponente fortaleza, não necessariamente intransponível.

Na minha cabeça era mais belo que o era, na realidade, mas eu também não via muita diferença na ocasião. Não percebi que não era tão alto quanto a impressão que me causou.

“Beauty is in the eye of the beholder”…

“Cuidado com os movimentos bruscos”- pediu-me o enfermeiro.

Eu ainda não sabia do que ele falava. Tentei me concentrar, para buscar uma memória que fosse, que explicasse os tais ferimentos.

Minha cabeça dói. As luzes enfraquecem… meus olhos pesam… Acho que vou desfalecer.

Outras vozes se aproximam. A única coisa que consigo distinguir, nesta confusão de sons é uma frase solta: …”os pulsos cortados”…

Flash… Vermelho…

Não queria perder os sentidos, mas meus esforços não pareciam surtir efeito.

Algum deus brincalhão aproximou-o de mim naquele voo. Meu coração deu um salto quando ele se sentou ao meu lado. Surpresa e extasiada pela sua presença, fiz de tudo para que me visse melhor que eu realmente era. Aqueles cativantes olhos de safira mostraram uma certa melancolia que me comoveu de imediato…

- Ah, meu anjo caído! –

… Como eu queria refrescar a sua aflição. Ele mostrou que confiava em mim. E abriu a alma, para que eu pudesse ver que ele era uma pessoa normal, embora não o fosse. Falamos de coisas que outros não falariam, dissemos coisas que o coração queria partilhar - parecíamos grandes amigos, daqueles que a gente não tem vergonha de dizer que ama. E eu percebi que já o amava.

Mais do que deveria… menos que poderia.

Quando ele falava de sofrimento, eu sofria mais que ele. Se ele sorria, eu me alegrava como se fosse a minha própria felicidade. Eu já nem era mais eu. Me tornara confidente e conselheira, mas não era isso que eu queria ser. Eu queria ser mais importante. Queria ser parte da vida dele. Observava-lhe, com cuidado e atenção, os gestos, a forma de falar, a risada dele, solta como de uma criança. Eu me concentrava só nele. Havia sido uma paixão imediata. Justamente eu, que tenho meus pés firmes no chão e que não tenho tendência para obsessão…

Onde está o enfermeiro? Deus me ajude! Não quero deixar aqueles olhos saírem de perto de mim. Não sei se vou suportar isso… outra vez...

Perdi a vergonha de me tornar ridícula, desde que ele soubesse que eu o amava. Ele percebeu, por isso pareceu-me que teve o cuidado de não me dar corda demais. Mas eu já nem tinha mais freio. Deixei-o saber que estava totalmente apaixonada por ele. Ele riu. Eu também. Já ansiava por um reencontro, que ele dizia que também desejava. Por fim, trocamos endereços de e-mail e Messenger. Nossos contactos on-line haveriam de ser frequentes. Pelo menos eu assim pensava.

Como era possível que tanta coisa tenha acontecido em apenas uma viagem com cerca de 10 horas de duração?

Como o mundo parecia pequeno. Como a vida é incrivelmente engraçada e nos dá tanto, em tão pouco tempo. Como aquelas horas passaram rápidas, na viagem que havia sido a maior alegria que eu tivera em muitos anos. A partir daquele dia, passei a amar o Oceano Atlântico e os céus por nos terem aproximado daquela maneira inusitada.

Quando ele partiu, pela mesma porta que eu cruzei, momentos depois, senti meu peito apertar. Ia pegar a conexão para longe e eu ficaria neste lugar. Prometera-me a mim mesma que faria de tudo para diminuir a distância e abreviar o tempo em que ficaríamos afastados um do outro.

Mas não foi tão fácil quanto parecia, a princípio. Ele tinha uma vida toda dele. Eu queria fazer parte dela. A distância lhe dava segurança e mantinha a intimidade debaixo de um chapéu protector, ao qual meu acesso era limitado. Tentei várias vezes programar um reencontro, mas algo sempre se interpunha no meio.

Quando ele estava bem, espaçava os contactos. Quando estava mal e precisava desabafar ou pedir algum favor, ligava-me ou mandava-me mensagens. Eu estava sempre lá. Compreendia as razões dele, mas me martirizava. Para ele, estava sempre pronta, sempre disponível, sempre disposta a ajudar. Em meu coração, cada vez mais, sentia uma insegurança corroer meu espírito, como um veneno, que agia devagar, mas constantemente. Fiz-lhe vários favores, liguei quando teve crises de depressão, incentivei-o a manter-se vivo e ter objectivos palpáveis… enfim, esqueci de mim mesma.

Ele era um sonhador. Eu sonhava com ele. Ele era um deus e, eu, uma simples adoradora. Ele voava. Eu mantinha meus olhos em suas asas e em seu magnífico voo. Ele me inspirava a querer ser melhor… sempre… para impressioná-lo.

Me mordia de ciúmes, quando falava de outras mulheres em sua vida, mas dizia que tudo ia ficar bem, que ele merecia ser feliz, da forma e com quem escolhesse. Era mentira, claro, mas ele tinha que pensar que eu era a rocha onde ele poderia se apoiar. O que eu queria, na realidade, era que ele fosse meu, só meu. E eu estava disposta a fazer qualquer coisa para que isso acontecesse…

Eu nunca perdia a esperança de revê-lo e comecei a insistir sem parar. Ele cedeu aos meus muitos apelos, depois de algum tempo. Me aventurei numa despretensiosa viagem de cerca de três horas, por uma estrada cheia de desvios, até a cidadezinha onde se encontrava, num morno e nublado domingo de verão.

Ele me esperava, sentado num banco da pracinha, em frente à igreja. Veio e sentou-se ao meu lado. Olhei aqueles vívidos olhos azuis e aquela boca magnífica dele. Ele sorriu e eu derreti, ali mesmo, na sua frente… Que sorriso esplêndido ele me presenteava. Toda aquela ansiedade havia valido a pena. Tentei parecer natural, apesar de completamente extasiada pela sua presença. Ele me estendeu a pequena - mas não exactamente delicada - mão e eu apertei-a. Mas não me contentei somente com aquilo. Abracei-o como se fossemos velhos amigos. Minha vontade era bem outra, mas eu não podia ultrapassar nenhuma fronteira, antes do tempo. Almoçamos juntos e, depois, andamos sem destino certo pelas ruas.

(Ah! Como eu fazia questão de caminhar devagar e esbarrar despropositada - mas, ao mesmo tempo, propositadamente - nele, só para sentir o contacto com seu corpo, que eu já desejava loucamente).

Paramos para tomar sorvete e ele disse, então, que tinha que ir para a casa da namorada. Fingi que não percebi a subtileza da saída e dei-lhe mais um abraço, despedindo-me. Desta vez meu coração apertou-se mais que o abraço que lhe dei. Eu queria que ele me tomasse nos braços, que me dissesse que ia sentir minha falta e que me amava. Talvez me amasse… mas somente como um amigo. Aquilo não era justo, depois de tudo que eu havia passado por aquele encontro.

(You´re so fucking special… I wish I was special…)*

A caminho de casa, estava feliz, por havê-lo reencontrado… e tragicamente triste, ao mesmo tempo, lutando para aceitar a minha condição de amiga, somente. Eu não podia deixar a magia quebrar. Não ia desistir assim tão facilmente. Tentei, desesperadamente, manter a comunicação activa. Vigiava o Messenger o tempo todo, iniciando conversa assim que ele entrava. Pedi-lhe que não desistisse de mim. Ele prometeu que isso não iria acontecer, mas não cumpriu a promessa e eu sabia porque. Escrevi-lhe muitas mensagens, fingindo que estava tudo bem. Por fim, disse-lhe que sentia a distância aumentar entre nós. Ele, porém, não se deu ao trabalho de responder. Nossos contactos cessaram, assim, abruptamente.

Eu entrei em depressão profunda. Sofri muito com aquele silêncio, pois não estava preparada para o fim de uma relação que eu considerava tão importante e que me havia feito feliz por tanto tempo. Me sentia triste, decepcionada e rejeitada. Eu tinha que fazer alguma coisa, urgentemente, antes que perdesse, por completo, a vontade de viver.

Foi então que decidi reprimir, bloqueando de vez, tudo que eu pudesse sentir por alguém – tanto as coisas boas quanto as más. Para evitar sentir a dor da solidão e a sensação de abandono, endureci meu coração e passei a não sentir mais nada por ninguém. Mergulhei de cabeça no trabalho e somente nele… No começo foi difícil me concentrar, mas acabei me adaptando.

Um dia, quando menos esperava, voltou a contactar-me, brevemente… laconicamente. Apesar de uma sensação estranha manifestar-se em meu peito, tentei parecer natural. Perguntei-lhe como se sentia. Me disse que estava tranquilo. Não me disse que estava feliz. Mas percebi que eu já não me impressionava tanto com a sua sorte. A vida brincava comigo.

Aquilo me fez pensar na forma que estava me conduzindo. Eu não sabia se sentia necessidade de alguém ou saudade de mim mesma - daquela que havia sido. Havia-me transformado numa mulher amarga e sem consideração pelas pessoas. No meu peito havia, apenas, um bloco de gelo, envolto numa capa de aço. Eu não era triste, nem feliz – era indiferente.

Meu coração estava calejado, machucado e frio… mas havia algo vivo, ainda pulsando, lá no fundo… Senti, então, que aquela circunstância me fazia envergonhada do que havia-me tornado. Aquela sensação estranha, que se manifestara no meu peito, me fizera sentir a vontade de experimentar, novamente, alguma sensação real… Nem que fosse alguma dor…

A dor física, na verdade, não me incomodava… Ela não chegava nem perto da outra, que afligia meu espírito…

Flash… Vermelho…

Ao abrir a porta, chegando em casa, há poucos dias, meus olhos captaram o brilho do aço inoxidável, no instrumento em cima da mesa…

… Os ferimentos nos meus braços… Agora lembro... Cortei-me, para ter certeza que ainda sentia alguma coisa… Uma atitude desesperada e radical, para garantir-me que ainda estava viva por dentro.

Já sei como devo ter vindo parar neste lugar…

O enfermeiro se aproxima, provavelmente ao perceber que meu semblante mudou. Agora que vejo estes seus “faróis azuis” assim tão perto, iluminando minha alma alquebrada, quase esqueço o que passei, por um homem que não mereceu meu amor. Apesar de muitas semelhanças, este outro mostra uma dedicação diferenciada pela pobre mulher deitada, com os braços atados e pulsos envoltos em uma longa faixa de gaze. Eu até consigo perceber quão especialmente ele me vê, somente pela forma com que me olha e me trata nesta cama de hospital.

Minha alma está atraída como magneto, por estes olhos. A roda-viva recomeçou seu movimento contínuo, dentro da minha cabeça. Sinto uma chama reacender-se em meu peito e borboletas voarem no meu estômago.

Um simples olhar pode mudar o rumo dos acontecimentos e da minha história? Já sonho em estar em seus braços, em fazer aquilo que não fiz anteriormente…

Não hesitarei em fazê-lo ver-me por uma lente mais especial ainda. Nem que para isto tenha que voltar cá… de alguma maneira.

Flash…. Branco…

Tenho notado aqueles mesmos olhos a me observarem, quase acidentalmente, de uma mesa à frente da minha, no restaurante em que almoço. Procuro sempre avistá-los, para ter certeza que, mesmo disfarçadamente ou fingindo desinteresse, há a curiosidade de saber onde eu estou. Eu sei que ele tem interesse em mim, sem dúvida nenhuma. Não o perco de vista, do momento em que entra, até a hora em que sai do meu campo de visão. O destino quer, definitivamente, brincar mais um pouco com meu coração.

Ele sempre veste branco. Descobri seu nome recentemente. Fiz umas pequenas investigações, por conta própria. Uma mulher tem que saber usar seus recursos para obter informações. E eu, diga-se de passagem, sei muito bem como fazer isto, já que frequentamos o mesmo local, todos os dias de semana, no mesmo horário. Já sei que este jovem homem de lindos olhos azuis faz plantão esta noite.

A tentação tem sido impossível de resistir. Tive uma ideia que me aproximaria dele, de maneira casualmente premeditada... Planeei a estratégia cuidadosamente, para parecer aquilo que não é, na realidade…

Quanto tempo leva o tempo a fechar os sulcos abertos pela dor da saudade ou da indiferença, afinal?

*

Ainda tive uma última visão do fio da tesoura, sujo de sangue, quando fui socorrida pelos homens da emergência, antes de perder os sentidos, momentaneamente, em meio à grande poça de líquido vermelho, formada no chão, à minha volta…

Ele sorri subtilmente ao me ver entrar. Não me pareceu surpreso, quando a ambulância me trouxe, deitada na maca, entrando às pressas pela emergência a dentro, com os pulsos vertendo sangue. Mal sabe ele que eu faria de tudo para voltar a ter a sua atenção, só para mim, outra vez…

Ainda ouço, antes de desfalecer de fraqueza, vozes que não sei se são reais ou não.

“Déja-vu?”

“Pois é. Parecem mais profundos, desta vez.”

“Por que ainda não internaram esta maluca num manicómio? Preparo os instrumentos de cirurgia?”

“Sim, claro…. Como de costume! Deixe-os perto da mesa, na sala, ao alcance da mão.”

“Depois, colocamos no mesmo quarto? A Administração vai ter que saber disso…”

“Tenho certeza que sim. Certifique-se somente que não haja nenhum instrumento cortante por perto! Mande trazer talheres de plástico, por via das dúvidas.”