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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Da Imagem No Espelho (Parte 1)


Parado no hall, em frente à porta dupla de metal cinzento, eu tinha os pensamentos tão longe quanto pudessem estar, enquanto acompanhava distraidamente, com os olhos, o display a mostrar a contagem regressiva dos andares por onde o elevador passava.

Em dias normais evitava usar aquela caixa, que eu considerava minúscula, fria e claustrofóbica, puxada apenas por alguns cabos de aço, num sombrio fosso rectangular, para subir até o escritório em que trabalhava. Costumava subir os quatro andares a pé, para garantir o mínimo de exercício diário, além de me sentir bem mais à vontade ao utilizar as escadas.

Os últimos dias vinham transcorrendo extremamente corridos no escritório e eu já demonstrava visíveis sinais de cansaço. Começara a reconhecer que estava à beira de um colapso físico e mental, quando os sinais de uma conhecida enxaqueca começaram a se manifestar. Não por preguiça, mas por conveniência, decidira, desta vez, usar o meio mais fácil, apesar de sentir-me bastante inseguro e desconfortável dentro dele.

Com um som característico, a porta abriu-se à minha frente. A parede do fundo, oposta à entrada do elevador era coberta por um espelho que ia do teto à meia parede, em oposição ao restante do compartimento, de aço inoxidável escovado - moderno, fácil de limpar, mas completamente impessoal.

Minha primeira reacção, antes de entrar, foi de olhar ao espelho, instintivamente, como se verificasse se estava apresentável. Mas, para minha surpresa, outra visão chamou-me a atenção, quando meus olhos fixaram-se na imagem reflectida.

Parada em pé, por trás de mim, havia uma mulher morena, trajando um vestido negro muito justo ao corpo bem formado. Os cabelos negros, presos em um coque ao alto da cabeça, por dois palitos laqueados em preto, decorados com pequenos detalhes coloridos, salpicados em branco, vermelho e dourado, em estilo japonês, fulgiam à luz que entrava pela janela acima da parede do hall de entrada.

Até aquele momento, talvez por estar absorvido demais em meu pequeno mundo e em meus próprios problemas, não havia sequer tomado consciência de que não estava só. Com um passar rápido de olhos avaliei a imagem reflectida ante meus olhos. A mulher era bela e extremamente sensual à primeira vista. Tentei não fixar o olhar, por tempo demasiado longo, para não parecer pouco polido, mas notei que ela me observava com atenção, como se eu fosse um produto exposto numa vitrina. O tecido do vestido acentuava suas curvas e um generoso decote atraía meu olhar, magneticamente e sem decoro nenhum. Apesar daquela análise preliminar acontecer em nada mais que umas poucas fracções de segundos, o tempo registado em minha mente pareceu-me longo suficiente para captar aquela série de pequenos detalhes. Senti-me como naquelas cenas em câmara lenta dos filmes românticos de décadas passadas. Adiantei-me e entrei, sem hesitar, como já era costume, esperando cumprimentá-la assim que estivéssemos a sós.

A porta, porém, logo fechou-se às minhas costas, deixando-me um pouco decepcionado por ter ficado sozinho, já que ela não fez menção de entrar. Talvez o tempo em que fiquei hesitante em entrar tenha sido longo demais, afinal. De uma coisa eu estava absolutamente certo: nunca antes a havia visto por ali, pois uma mulher daquelas não era de passar despercebida. Num gesto de gentileza estudada e com uma pontinha de esperança a cobrir minha decepção, apertei o botão para abrir a porta, pois achei que a mesma fechara rapidamente demais e a deixara sem tempo para entrar.

Ao abrir-se vi que já não havia mais ninguém no hall, onde antes ela estivera. Comecei a desconfiar que o tempo estava contra mim.

Um homem de meia-idade, trajando um distinto e impecável blazer em tweed cinza escuro sobre as calças em tecido liso, no mesmo tom formal, entrou às pressas, enquanto eu escondia meu desapontamento, como um adolescente contrariado, olhando para minhas próprias mãos.

Desci no quarto andar, onde fui logo engolido pelo stress do quotidiano, pois antes de chegar ao meu posto de trabalho, meu chefe já me aguardava com uma série de planilhas a revisar, com uma sequência adicional de colunas de cálculo estatístico. O dia correu normalmente e sem grandes surpresas, no escritório de Contabilidade, onde o trabalho era basicamente previsível e repetitivo, como os minutos que somam-se para completar as horas. Uma rotina bicromática e monótona, como se fosse uma frase sem graça, escrita a giz branco num quadro negro na parede de uma escola de subúrbio.

O incidente do elevador fora totalmente esquecido, em meio aos números e fórmulas das planilhas de cálculos, no decorrer das longas e extenuantes horas do expediente no escritório. O único acontecimento diferente naquele dia fora um breve telefonema de uma amiga, convidando-me a sair e tomar um café, logo depois de sair do trabalho.




A pequena mulher de cabelos loiros, em corte curto, cuidadosa e propositadamente desalinhado, sentada a fumar tranquila e confortavelmente à minha frente, na esplanada do Café, não muito longe de onde trabalhava, sorria naturalmente enquanto contava acontecimentos corriqueiros de seu dia. Seus inquisidores olhos, de um tom interessante de azul-cobalto, pousavam sobre mim de uma maneira divertida, com um interesse dissimulado, que eu fingia não perceber.

Éramos algo próximo a bons parceiros, que desfrutávamos de uma intimidade natural. Nos bons tempos, costumávamos ir ao cinema, teatro, jantar juntos. Nossos encontros eram mais ou menos frequentes, mas careciam do calor de um relacionamento feito para aprofundar-se em alguma raia de romance – mais por minha culpa que dela. Fazíamos boa companhia um ao outro - na pior das hipóteses – o que nos bastava naquele momento... ou, pelo menos, era o que eu considerava.

O agradável aroma do café espresso, denso e forte, preenchia o ar, enquanto discorríamos em um pouco de conversa fútil, comum e sem qualquer profundidade, contando nossos problemas do dia-a-dia, naquele nosso breve encontro de fim de tarde de Outono. Marcamos outro contacto, para uma próxima ocasião e nos despedimos, como de costume e sem demonstração de excessivo calor. Eu voltava à realidade. Preocupei-me com o pão e o café com leite “nosso de cada dia” e fui-me pela vida afora, de volta à casa e à proteção reclusa da minha pequena concha.



Sonhos sempre constituíram materiais de interesse para mim, pois os considerava, na melhor vertente Jungiana, que traziam importantes mensagens do meu subconsciente. Por um bom tempo estudei-os, lendo as teorias dos meus autores favoritos, em vários livros especializados.

Alguns dias haviam passado e, numa certa madrugada, tive a sensação que algo tocou-me, de leve, a pele do pescoço. Acordei meio em sobressalto, crendo ter sido tocado por algum insecto, já que não havia outra criatura viva no apartamento. Acendi as luzes e procurei, em vão, a fonte do incómodo. ‘Devo ter sonhado’, pensei, ao voltar para a cama, adormecendo logo em seguida. Se fora um sonho, não consegui lembrar-me de muitos detalhes do mesmo mais tarde.

Algumas semanas depois, sentindo já o frio de inverno e devidamente aconchegados do lado de dentro do Café onde costumávamos nos encontrar, decidimos ir à casa, preparar algo mais substancioso para comer. Uma garrafa de vinho tinto foi aberta, para bebericarmos enquanto eu preparava uma pizza, a solução mais rápida, aceite de comum acordo, naquele momento.

Por algum motivo inexplicável, deixei-me levar por uma demonstração de afecto que recebi, enquanto aguardávamos a refeição ficar devidamente assada. Talvez o álcool tenha contribuído para baixar minhas guardas e a ocasião fora devidamente aproveitada pela mulher de olhos azuis e face francamente harmoniosa, parada de pé ao meu lado. Um olhar lânguido dirigido a mim, seguido por um sorriso meio matreiro em resposta, de minha parte, foram suficientes...

Ela aproximou-se com cautela estudada, cheirou-me a região do pescoço e enlaçou-me o corpo com delicadeza. Movi a cabeça para trás, tocando a dela, de leve, quase de brincadeira e virei-me de frente, devagar. Um segundo depois estávamos a nos olhar no fundo dos olhos, sem dizer nada, mas sentindo que era inevitável o que iria se seguir. O beijo foi morno, suave e sem pressa. Senti meu corpo reagir ao leve toque dos meus lábios nos dela, aumentando a pulsação e a temperatura da pele.

O apito intermitente e quase desesperado do forno, bem na hora em que minhas mãos puxavam o corpo miúdo, quase frágil, de encontro ao meu, interrompeu o curso dos acontecimentos e quebrou um pouco do encanto do ensejo. O jantar estava pronto. Nossos apetites confundiam-se com nossos desejos de outros sentidos, mas o aroma do queijo derretido, gratinado, venceu a batalha, que mal começara.

Mais tarde, sob o efeito desinibidor de mais de uma garrafa inteira de vinho tinto, ficamos abraçados a ouvir música, enrolados num cobertor sobre o sofá da sala. Não foi preciso muito para nos deixarmos levar, como em um barco à deriva, no balanço das ondas da sedução. A face delicada, os lábios rosados, os profundos e grandes olhos azuis, fixos nos meus e o corpo bem proporcionado, iniciaram um processo que não pode ser interrompido, antes de devidamente concluído.

Depois que a nau já estava ancorada em porto seguro, fechei os olhos e respirei fundo, sentindo-me satisfeito com o que tinha naquele momento. Com a cabeça recostada no meu peito e envolta pelos meus braços, a pequena mulher aconchegou-se, passou seu delicado braço pelo meu corpo e adormeceu em seguida. Eu deixara-me levar pela ocasião, impulsionado pelo néctar de Baco e pelo calor sensual do momento. Agora a leve embriaguez e a música suave a tocar, ainda, embalavam-me ao sono, num relaxamento confortavelmente profundo… afundando no sofá, como um corpo que cai no vazio.

Pouquíssimo tempo depois senti que minha face fora tocada por alguma coisa muito suave. Ao passar a mão sobre a pele, não distingui nada que me pudesse dar aquela sensação. Pensando haver adormecido e sonhado, fechei os olhos novamente, confortado e relaxado. Naquele momento eu quase acreditava que podia deixar a relação evoluir a um passo adiante. A mesma estranha e suave sensação a me roçar a face me perturbou, desta vez. Instintivamente passei a mão sobre o rosto, sem tocar em nada, além de minha própria pele.

Intrigado, abri os olhos e, quase por acaso, olhei para o espelho na parede. Sentada acima de nós, sobre o encosto do sofá, sorrindo provocadoramente para mim, havia uma mulher morena. Ela aproximou-se e beijou-me a face ligeiramente. Sua cabeça estava encoberta por um véu negro, muito fino e leve, quase transparente, deixando suficientemente à mostra todos os atributos de sua atraente beleza. Examinei o espaço à minha volta, para certificar-me do que vira, mas não havia nada. Pensei haver delirado. Ao olhar de volta para o espelho, entretanto, percebi que o enredo parecia ser outro, completamente diferente, onde eu a via novamente achegar-se e beijar-me a face, docemente, como se quisesse certificar-se que eu compreendia o que acontecia. A sensação era incrivelmente confortante, delicada, morna e, por incrível que pareça, muito bem-vinda.

A face semi-escondida pelo finíssimo véu negro pareceu-me encantadora, apesar de ter-me sido revelada apenas no reflexo do espelho na parede da sala. Ela então levantou a cobertura da cabeça, com um gesto sensualmente provocante, sem tirar os olhos de mim, revelando de maneira segura, sua face perfeita.

Era uma jovem mulher de lábios sensualmente carnudos e pele morena impecavelmente livre de quaisquer defeitos, com luzentes cabelos negros, lisos e presos em um coque à japonesa, no alto da cabeça, por duas hastes em forma de ‘chopsticks’ negros, decorados com uma delicada sequência abstracta de cores contrastantes, sobre os delgados palitos pintados de um cintilante esmalte escuro.

Desvencilhei-me, com cuidado, da mulher que ainda dormia. Levantei-me, ainda meio incrédulo, ante o surrealismo daquela situação e fui até o espelho, quase que numa espécie de transe, sem tirar os olhos do filme que via passar-se lá dentro.

A mulher morena levantou-se de onde estava e, sorrindo, veio em minha direcção. Ao se aproximar, encostou o corpo morno por trás de mim e passou os braços em volta do meu corpo, enquanto beijava-me o rosto novamente.

Ao meu ouvido, sussurrou:

- Gostas?

Eu suspirei, quase num esforço a resistir e gemi baixinho. Ela passou as delicadas mãos na região do meu peito, acarinhando-me sensualmente. Meu corpo reagiu momentaneamente… Um arrepio me desceu pela espinha. Ela deu uma risadinha e afastou-se um pouco.

Com os olhos ainda fixos no seu rosto perfeito, reflectido à minha frente, foi somente então que reconheci a mulher que havia visto de relance no espelho do elevador semanas atrás. Ela leu o reconhecimento em meus olhos e abriu um largo sorriso, com dentes perfeitos e brancos.

Vi que ela voltou ao sofá, calma e provocantemente. Pousou os olhos em mim, passou os braços em volta do pescoço da mulher que estava ainda deitada a dormitar, sufocando-a devagar e firmemente, fazendo-a engasgar, sentindo falta de ar e arregalando os olhos, sem compreender exactamente o que se passava.

Aflito com o que vi acontecendo, corri para tentar impedir que ela sucedesse em seu plano estranhamente mal-intencionado, mas não consegui tocar o corpo etéreo e invisível da mulher morena, agarrando o ar ao invés de qualquer presença física. Ela riu… uma gargalhada que começara quase normal, mas que inesperadamente tornou-se insana e quase histérica… e, então, falou pausadamente, para ser bem ouvida e deixar claro que tipo de intenções tinha.

- Tu és meu… só meu!!!

Uma sombra de apreensão estampou-se em meu rosto e eu gritei-lhe que parasse.

- Antes, prometa que vais ser só meu… Prometa!

Ela expunha um desequilíbrio que me preocupava, alternado com seu toque provocante de sedução. No tom estranho de sua voz, ela mostrava, além de uma certa demência, também o que era capaz de fazer. Eu via a vida de minha amiga por um fio ante meus olhos, agredida por uma algoz invisível e intocável, à qual eu tinha  que impedir,de alguma forma, que fosse além das medidas, antes que fosse tarde demais.

Olhando de volta ao espelho para tentar perceber a situação por completo, mesmo com muito pouco controlo sobre ela, cedi. 

- Ok. Eu prometo! Eu prometo, mas deixe-a em paz... pelo amor de Deus!

Ela percebeu uma certa impaciência, misturada com alguma preocupação, na minha forma de falar. Então, apertou um pouco mais, até que sentiu a mulher desfalecer e meu desespero manifestar-se em lágrimas de impotência ante aquela situação bizarra. Libertou, então, sua vítima e com seu corpo delgado e sua face extremamente bela, mas com uma expressão de puro e assumido deboche, aproximou-se de minha face e disse, baixinho, com a voz arrastada, mas suficientemente nítida:

- Tens que te convencer que tu és meu… de mais ninguém. Nunca te esqueças disso.

A mensagem havia sido absoluta e perigosamente directa e clara.

Chamei a emergência imediatamente. Quando os paramédicos chegaram, a pobre mulher já estava voltando a si, sem compreender o que havia acontecido. Não havia marcas em seu pescoço ou no corpo, para meu alívio. Aquilo parecia uma perigosa brincadeira em que eu me metera, às cegas.

Os exames preliminares não detectaram nada que pudesse ter ocasionado o desmaio. Diagnosticaram uma provável queda brusca de pressão e solicitaram observação, uma consulta ao especialista e uma bateria de exames. Ela me olhava incrédula, sem saber o que fazer e sem saber o que dizer.

Eu estava lívido, triste e quase desesperado, temendo que ela me fizesse alguma pergunta que eu não queria nem poderia responder. No reflexo do vidro da porta eu via a face morena, cujos olhos me vigiavam atentamente, fiscalizando meus movimentos e tudo que eu pudesse dizer ou fazer. Eu estava encurralado. Desviei o olhar, envergonhado.

- É melhor descansar. Eu te levo para casa. 



À noite, sozinho no quarto, senti algo tocar-me a pele. Acendi as luzes, mas não via nada. Meio desnorteado pelo cansaço e sono, eu me perguntei: sonhei ou estarei enlouquecendo?

Pelo espelho na parede via que minha opressora se sentava sobre meu corpo, tomando posse do que não era seu por direito e contorcendo-se de prazer, provocadora, ante meus olhos quase cépticos. Ela estava mais ousada, agindo como se tivesse obtido uma vitória. Eu tinha que reconhecer que seu corpo, coberto apenas pelo véu negro e transparente que agora trazia, era belíssimo e sensual – desejavelmente perfeito para os meus padrões. A voz era firme e atraentemente sensual, apresentando um matiz quase rouco e grave, sem ser, de forma alguma, masculinizada. Quase num sussurro, ela disse-me:

- Tu me tens. Não sou suficiente boa para ti? Por que necessitarias de outra? Eu posso te dar tudo o que quiseres… e até mais que isso.

Joguei a cabeça para trás e semi-cerrei os olhos, sentindo o movimento de seus quadris sobre os meus, devagar, ritmado, lascivo… Não resisti. Deixei-me levar lentamente, sem pressa, na volúpia do momento e no prazer que ela me proporcionava. Ela conhecia meus desejos e minhas necessidades físicas. Eu não podia negar que ela havia-me envolvido completamente.

Quando vi um flash de luz violeta iluminar o quarto, como por mágica, explodi em mim mesmo… com um brado abafado pela boca de minha amante. Se aquilo era um delírio, eu estava completamente envolvido na loucura.

O quarto pareceu escurecer repentinamente. Olhei à volta. Devo ter mesmo delirado ou sonhado. Não havia ninguém por perto. Meu corpo, todavia, ainda mostrava as evidências do que havia-me acontecido segundos atrás.

Olhei para o espelho. Sobre meu corpo havia outro, feminino, pálido, coberto com um véu negro. Ela levantou a cabeça, jogou os cabelos negros para trás com um movimento provocante, exibiu um sorriso zombeteiro e esquisito, quase num esgar, passou as unhas vagarosamente sobre o meu peito, levantou-se e deixou-me. Uma estranha sensação de ardência ficou latejando em minha pele. Exausto, cedi ao sono.


Ao acordar-me, já em hora adiantada na manhã, senti que precisava urgentemente de um banho. Ao entrar no banheiro, meu olhar foi atraído pela minha própria imagem reflectida no espelho e pude perceber claramente as profundas marcas vermelhas dos arranhões que ela deixara sobre meu corpo. Lavei-me e enxuguei-me com cautela, evitando piorar o estado dos ferimentos. Vesti a camisa com cuidado, depois de passar uma fina camada de pomada com anti-inflamatório sobre os arranhões. Ao sair, penso ter ouvido o que parecia ser uma risada, mas resolvi não dar atenção. Tinha certeza que havia imaginado aquilo.

- Acho que estou enlouquecendo mesmo, pensei.

Durante o dia não conseguia me concentrar no trabalho, especialmente quando involuntariamente o tecido da camisa roçava a pele tão recentemente ferida.

À noite, fui visitado por minha amiga, que veio ver-me em casa. Eu não me senti confortável, mas não quis levantar suspeita. Ela se aproximou e encostou-se no meu peito, na sua maneira carinhosa de saudar-me. Uma espécie de arrepio e uma retracção natural me percorreram a pele. Ela percebeu que minha respiração entrecortou por um breve momento e me perguntou o que havia de errado. Minha resposta não a convenceu, especialmente quando me tocou novamente e sentiu que eu fiquei tenso. Desconfiada, abriu-me rapidamente a camisa e olhou-me com um misto de surpresa e repulsa.

- Mas o quê…

Sem esperar mais resposta, esbofeteou-me com força e saiu porta afora, indignada. Eu não reagi. Não havia o que eu pudesse dizer que a convencesse a me olhar novamente, diante da evidência ostentada em meu corpo.

Fechei a porta, com um empurrão enfurecido. Por trás de mim ouvi o som de uma risada conhecida a fazer pouco caso de mim. Ela vencia a batalha, mas ainda não vencia a guerra.

Atravessei o corredor, sem tirar os olhos do chão. Evitei todos os possíveis reflexos em uma casa cheia de superfícies de vidro e espelhos distribuídos em vários aposentos. Não acendi nenhuma luz, enquanto me dirigia ao quarto.

Eu via somente duas alternativas: ceder ou enfrentá-la.

Era teimoso demais para ceder. Estava cansado demais para lutar.

Atirei-me na cama, profundamente irritado. Meu corpo todo doía, de tensão muscular.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Esquizo-frenesi


- E o que tu pensas que é isso nas tuas mãos?

A pergunta não era somente retórica. Minhas mãos estavam pegajosas, sujas de sangue ainda fresco. Eu me sentia drenado, usado, dolorido. Há dias eu não conseguia me concentrar. Estava sem dormir direito, há algumas noites. A falta de sono já me causava delírios e eu não tinha ideia do que era real e o que era imaginário… ou alucinação.

Ele falava com a naturalidade e com a arrogância de sempre. Eu conhecia aquela ironia e não gostava nada. Estudei o ambiente em que me encontrava e não vi nada anormal, a não ser o rastro, quase invisível, que deixara ao entrar. Algumas gotas vermelhas haviam marcado uma trilha até onde eu me encontrava. Olhei-me no espelho à minha frente e quase não me reconheci. Meus olhos mostravam a loucura que nunca tive e havia profundas olheiras ao redor deles. Eu parecia velho e cansado. Logo eu, que tantas vezes havia proferido o quanto me orgulhava do facto de minha aparência esconder a minha verdadeira idade. Pensei em tomar um banho quente e me barbear. Precisava daquilo…

- Não se faça de santo. Achas que tentar me ignorar vai mudar o que fizeste? Não mesmo!

Será que ele não podia se calar, por uns instantes, somente? Minha cabeça doía. Precisava tomar algum analgésico e um estimulante. Qualquer coisa para me manter acordado por tempo suficiente. Odeio ficar na dependência destes químicos, mas não tenho saída e nem tempo…

- Tente…tente…quero ver se consegues deixar de me ouvir… Achas que podes te livrar de mim, assim tão fácil? Não lembras da outra noite?

Ele ria. E era o riso de um louco. Na outra noite, que mencionava, agora, com sarcasmo, ele havia se deitado na minha cama, perto de mim e me dito para não perturbá-lo, porque eu não ia conseguir vencê-lo. Meu corpo todo tremia, de medo e de frio, mas não tive coragem de enfrentá-lo, nem de puxar a coberta para cima de mim…

Eu só queria voltar a ser aquela criança que ainda tinha um pingo de fé e que acreditava em orações, que rezava quando tinha medo e adormecia tranquilo, livre para sonhar. Tornei-me um adulto amargo, sem fé, sem esperança e sem coragem de enfrentar meus próprios demónios. Mas não sinto saudades do meu tempo de criança. Não quero voltar a ser torturado pelos fantasmas que rondavam a casa, nem pelas vozes dentro do quarto, quando as luzes apagavam. Não gosto de acordar no meio da noite, sem saber onde estou…

Cheguei há pouco, da rua. Ele me perseguiu, por horas, pela cidade. Eu o via em cada esquina, em cada porta de bar de subúrbio que eu entrava. Quanto mais eu o evitava ou me escondia, mais inútil era o esforço. Parece que tinha um localizador posto em algum lugar do meu corpo… em algum lugar em baixo da minha pele. Quando se aproximava de mim, ele ria, saboreando os momentos em que me fazia sentir medo. E aquele riso… maléfico, escarnecedor, enlouquecido… aumentava na minha cabeça, como se ele tivesse o dial de um amplificador.

Peguei o carro e dirigi até a ponte, sobre a estrada. Parei no ponto mais alto e saí, fui até a amurada e não tive dúvida. Ele não ia me vencer. Mergulhei no vazio, mesmo sabendo que me jogava de encontro à morte. Eu via o chão se aproximar de mim e já respirava aliviado. Aquele pesadelo ia acabar ali mesmo…

…Só que não acabou. Ele mergulhou atrás de mim e me segurou pelo tornozelo direito.

- Ainda não. Tu ainda não tens o direito de morrer. A tua hora não chegou.

Ele dizia aquilo como se fosse o senhor da Morte… ou de meus dias.

Ao olhar para além das garras que me seguravam o tornozelo e me traziam de volta ao topo, foi que eu percebi que ele tinha asas. Asas de demónio. Negras. Enormes. Asas que me traziam de volta para a borda da ponte – longe da possibilidade de suicídio. Ele tinha controle completo sobre mim.

O que podia fazer um homem que tentava se suicidar e era trazido de volta à vida por um demónio? Voltei para casa, sem muitas esperanças. Eu só queria poder dormir. Quando entrei pela porta da frente, eu já não tinha mais forças. Ele estava de pé, à minha espera. E riu... Alto… Como um louco ri…

Olhei-o com desprezo. Eu já não sentia medo. Era impaciência que eu sentia. Me joguei no sofá da sala e me entreguei ao cansaço. Fechei os olhos. Já considerava que sonhar seria melhor que aquele pesadelo que eu vivia acordado. Foi então que uma ideia me veio à mente. Eu poderia ter uma saída… mas teria somente uma tentativa.

Levantei-me e fui até a cozinha. Ele não me seguiu. Peguei a maior e mais afiada faca que havia na gaveta e voltei à sala. Ele ainda estava lá, no mesmo lugar. Olhou-me como se uma faca enorme na minha mão fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não pensei duas vezes. Com um movimento rápido, perfurei logo abaixo da linha do esterno, perto da última costela esquerda. Ele apenas riu.

Puxei a faca, com as duas mãos, joguei-a no chão da sala e vim directo para o quarto onde estou agora. Eu ainda o ouço… Ele fala e escarnece de mim.

- O que tu pensas que é isto, nas tuas mãos, afinal?

Ele repetia a frase, no meio daquela confusão toda na minha cabeça.

- Olhe para si mesmo. Tu não passas de um farrapo humano, que nem consegue se livrar de seu demónio. Olhe bem para o que fizeste…

Eu não entendi o que ele queria dizer. Olhei em volta. O rastro vermelho era tão subtil, que parecia nem existir. Minhas pernas fraquejaram. Aquela mancha, sobre o tapete do quarto, aumentava à minha volta... Passei a mão na minha camisa e percebi que estava encharcada e pegajosa. Uma pontada de dor partia de um ponto, abaixo do esterno, um pouco para o lado esquerdo, de onde o sangue escorria sem trégua.

Minha visão começou a ficar turva e a risada dele, ao perceber que eu ia me perdendo, se tornava cada vez mais distante. O que eu sentia, finalmente, era uma paz e um silêncio confortante. Uma sensação que não se parecia nada como o frenesi das noites anteriores. O quarto escureceu, devagar e, então, não o ouvi mais…