domingo, 22 de janeiro de 2017

Revisitando Dragões (Parte 5 - Amuleto)


Nos olhos do rapaz, aquela mistura de ódio e mágoa deixavam claras as suas intenções. Ele tinha uma missão – uma tarefa a cumprir, para concluir seu rito de passagem, que havia iniciado com uma batalha sangrenta, não muito antes de chegar ao seu último destino.

Não era apenas uma transição para a idade adulta. Era mais uma confirmação de que havia passado, definitivamente, para o lado do guerreiro de negro. Uma vez que ele estivesse do lado de lá, não haveria volta e ele sabia. Era com isso que seu mentor e senhor de todo o mal contava.

Avançando contra o velho, que mantinha-se impávido, sem demonstrar nenhuma intenção de mover-se, ainda com o dragão verde-azulado desacordado a seus pés, o jovem guerreiro descarregava seu desgosto contra a injustiça que acreditava ter sido feita, quando seus antigos amigos deixaram de procurá-lo.

Ele havia sacrificado sua infância e boa parte de sua adolescência, para proteger seu pai, sua família e seus amigos que, afinal, deixaram-no à mercê do mal e de seus mais poderosos asseclas. Agora, passado tanto tempo, sentia que o sacrifício havia sido em vão, pois nunca existira uma contrapartida. O mal o havia acolhido e adotado, como quem o faz à uma criança órfã.

Felizmente ele era, agora, um guerreiro bem treinado em batalhas contra grandes e poderosos inimigos, sem medo de nada e dominado pelas forças do mal. Aquelas características tornavam-no, não somente poderoso, mas, também, totalmente temerário por onde passava.

O mais perigoso tipo de guerreiro não é o que sabe melhor empunhar uma espada ou outra arma qualquer nas lutas, mas aquele que não respeita as regras, não teme a morte, nem sente pesar por quem quer que seja. Estes são capazes de tudo, pois não têm nada a perder.

Ele não tinha nada a perder e nem temia a nada… nem a ninguém.

O velho fechou os olhos e esperou. Chegou a sentir a ponta da lâmina a tocar seu peito, no mesmo lugar onde uma antiga cicatriz ainda latejava, por vezes. Mas a espada não penetrou seu corpo. Ele sentiu o frio contacto do metal na pele e esperou pelo golpe fatal. No fundo, quase desejava por aquele destino. Sentia-se culpado por não haver procurado o rapaz, mais insistentemente, até conseguir trazê-lo de volta para o mundo ao qual pertencia. No fundo achava-se merecedor de um castigo e sentia que não devia lutar contra aquela sentença. Era sua conta a pagar…

O homem abriu os olhos e fitou os daquele que outrora havia sido seu protegido, mas que agora agia como seu carrasco. Eles tinham um brilho estranho. A face trazia um misto de rancor e angústia. A boca estava estranhamente contorcida. Mas a mão do guerreiro tremia, como se hesitasse ou fosse impedido de dar o empuxo final. Ele sentia a lâmina a arranhar sua pele e um pequeno corte abrir-se, deixando um estreito fio de sangue quente e viscoso a escorrer-lhe vagarosamente pelo torso abaixo.

Foi então que o mundo pareceu-lhe revirar completamente ante seus olhos. A espada foi atirada para cima com tamanha violência, que o rapaz perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Uma grande e escamosa pata verde-azulada pousou sobre seu peito, imobilizando-o completamente, com um peso descomunal e causando-lhe sufocamento, por falta de ar.

O velho olhou para o lado, já prevendo a reação do grande dragão pardo, mas aquele estava cercado por seis outros dragões, cada um de uma cor distinta. Atrás dos mesmos, uma face conhecida surgia, com armas de combate nas mãos e correndo em sua direção.

O recém-chegado olhou o rapaz caído no chão e perguntou ao velho:

- Quem é este, afinal?

O velho respirou fundo e disse:

- Aquele que pensávamos estar morto, mas que nunca devíamos ter desistido de procurar: teu filho mais novo!

***

Apesar de amarrado e de estar sob cuidadosa vigilância, o rapaz não parecia sentir-se derrotado. Havia nele uma certa arrogância, como se soubesse de algo que os outros não sabiam. Que trunfo ele possuía, era um mistério que os dois homens não conseguiam perceber.

O pai estava com sentimentos divididos entre a culpa e o amor, tentando perdoar a investida do filho e arranjar desculpas para aquela mudança tão radical. Tinha esperança que o amor que o abandonara fosse mais forte que o mal que o acolhera, mas também sabia que teria muito trabalho para convencer o rapaz a entender seus motivos. Os filhos e os pais quase nunca conseguem entender as razões que movem as ações de um e do outro.

O velho estava assustado. Tinha medo que a imprevisibilidade do rapaz colocasse as vidas dos outros dragões em risco. O verde-azulado já havia sofrido seu tanto e não era merecedor daquilo. O pobre animal precisava apenas de alguma paz, naquela fase de sua longa e atribulada vida, não de mais conflitos e sofrimento.

O rapaz havia mudado profundamente e aquela transformação era extremamente perigosa… para todos.

Os devaneios dos dois homens foram interrompidos por uma grande barulheira do lado de fora. Os dois correram até a clareira, onde o grande dragão pardo havia sido acorrentado firmemente.

Não foi nenhuma surpresa que o dragão aprisionado houvesse escapado e que os outros estivessem tão estupefactos quanto os dois homens. Dois dos dragões, o prateado e o vermelho, haviam sido feridos pela grande fera e estavam a ser acudidos pelos outros, que decidiram ser uma melhor atitude do que perseguir o inimigo, pois sabiam não ter a mínima hipótese de alcançá-lo.

- Isso complica, demasiadamente, as coisas…

- Muito mesmo! Melhor nós verificarmos o nosso ‘prisioneiro’. Eu sabia que algo estava errado.

O rapaz sorria. Era um sorriso estranho. Malicioso. Triunfante.

Embora não tivesse presenciado o que ocorrera lá fora, tinha consciência da fuga do dragão e das consequências que aquele acontecimento teria. Ao chegar sozinho ao seu destino, o animal seria porta-voz das más notícias ao seu senhor. Era de esperar que houvesse uma reação imediata, por parte do guerreiro de negro, um homem extremamente poderoso e vingativo.

Era premente, entretanto, tratar dos animais feridos, antes que o outro voltasse com reforços. Todas as forças do bem tinham que estar preparadas para a retaliação do mal, o que não seria um combate fácil de travar.

***

Não era de estranhar que o rapaz parecesse tão fora de contexto como naquela ocasião. Sabia que estava preso, mas mantinha uma atitude presunçosa e longe de parecer derrotista. Ele tinha uma missão, afinal, que somente ele e seu protetor sabiam. A esperança de ser liberto e salvo pelo guerreiro de negro era grande e quase uma certeza de sua parte. Se ele o fosse, porém, todos sabiam que ele estaria total e definitivamente voltado para o lado do mal.

Para o pai e também para seu velho amigo, ele era instável e perigoso como um animal selvagem, aprisionado e prestes a enfrentar a tudo e a todos para salvar sua pele. Ainda severamente magoado pelos acontecimentos do passado, era capaz de tudo.

Veio a noite e, com ela, a densa e imprevisível escuridão. Toda e cada hora, minuto e segundo, eram preciosos e imponderáveis. Tudo podia acontecer de um momento para o outro, por isso uma cuidadosa vigília era indispensável.

Os dragões tomaram turnos à porta da caverna, onde o rapaz era mantido prisioneiro.

A madrugada demorava a chegar e ele era atormentado por expectativas, como as que tinha quando esteve prisioneiro do senhor de todo o mal. Ele não dormia um sono tranquilo. Era acordado muitas vezes por qualquer ruído mínimo que atingisse seus ouvidos treinados. Ele levantou a cabeça e olhou para fora, tentando focar a vista na entrada da caverna, onde uma silhueta recortou-se contra a faixa muito ténue de luz que subia por trás do laranjal, anunciando a chegada do dia. À aquela, juntaram-se outras duas, muito semelhantes.

Ele sentou-se e ficou quieto a observar. Quando conseguiu acostumar a visão à pouca luz, percebeu que os três dragões mais jovens, encarregados da vigília daquela noite, estavam ocupados a bicar um objeto conhecido dele. O dragão negro, conseguiu quebrar o pequeno lacre de cera que havia na empunhadura da espada que pertencia ao jovem guerreiro, revelando um pequeno objeto oculto por baixo daquele, numa pequena cavidade feita com o propósito de esconder, de tudo e de todos, um amuleto, que eles lhe haviam dado, ao que parecia haver sido há uma eternidade atrás.

Com a ponta da unha, o dragão recolheu o pequeno amuleto e estendeu ao rapaz, através da grade à porta da caverna. O rapaz segurou-o na palma da mão e lembrou, pela primeira vez, desde muito, por qual razão havia escondido o presente recebido para sua proteção. Ele fechou os olhos e ficou em silêncio por uns momentos. Depois abriu os olhos e a mão, novamente, olhou para fora e atirou o minúsculo objeto para longe de si. O dragão recolheu o amuleto do chão e devolveu-o ao seu legítimo dono, mais uma vez. Por mais que tentasse negar ou refutar, aquele pequeno presente era seu. Por mais que ele quisesse acreditar que odiava aqueles personagens e tudo o que vinha deles, não podia negar seu passado.

O jovem guerreiro atirou o objeto mais uma vez para longe e mais vez o dragão recolheu-o e devolveu-o a ele. Ele percebeu que o animal não desistiria enquanto ele não ficasse com o que lhe pertencia. Então, para evitar repetir a ação, pendurou-o no pescoço. O dragão negro acedeu com a cabeça e afastou-se um pouco da porta.

A luz da madrugada já fazia a paisagem mais visível, especialmente o céu. O rapaz olhou para cima e seus olhos avistaram, muito ao longe, uma estranha figura vindo, por detrás das brancas nuvens, pouco iluminadas pelo sol da manhã.  

Ele sorriu. Faltava pouco, agora.


***