domingo, 22 de junho de 2014

A Conjugar o Verbo... (Parte 1)


Fechei os olhos e deixei a textura do tanino amadurecido espalhar-se total e vagarosamente pelas papilas, tentando absorver daquele momento, muito mais que apenas o sabor do vinho recentemente aberto. No prato, a refeição meticulosamente preparada para agradar não somente a mim, fumegava e exalava o perfume suave e atrativo das especiarias e do camarão. O cardápio da noite, criado recentemente pela destreza instintiva do cozinheiro, era um strogonoff de gambas, delicadamente adensado com natas aromatizadas a funghi.

- Sensualista!

Abri os olhos e sorri. O contacto suave de sua pequena mão a tocar na minha, firme, mas delicadamente, era uma demonstração de carinho, que já me era conhecida e que eu, apesar de ainda sentir-me pouco habituado, apreciava grandemente.

Chamava-me de sensualista quando percebia que eu usava - e, por vezes, quase abusava - de todos os sentidos, tanto à mesa, quanto… bem, manifestamente em quase tudo…

Divertia-se, por vezes, a observar em silêncio, a forma como eu apreciava todos os detalhes daqueles momentos raros que partilhávamos a companhia um do outro. 

A ténue luz do crepúsculo de uma amena Primavera já pouco iluminava a copa-cozinha do apartamento. A ampla porta de vidro, voltada para a varanda do segundo andar, acima do pátio da praceta, estava fechada, dando a impressão que os sons da noite, que aproximava-se lentamente, ficavam quase distantes demais, como as nossas vidas individuais e suas consequentes atribulações diárias.

 Uma entrada de queijo cremoso de cabra e as pequenas torradas crocantes e cobertas com azeite virgem e ervas, haviam estimulado o apetite de ambos, que regado ao tinto de qualidade, abria-se agora ao prato principal. Seus olhos pousaram, divertidos, sobre mim, por cima da taça de cristal recentemente servida de uma segunda dose.

Levantei o copo e acedi ao brinde proposto, como de costume, dizendo, com um sorriso maroto:

- Brindar sem beber? Nem pensar!

Era uma de nossas piadas privadas. Rimos, como sempre fazíamos, a sorver o agradável líquido escarlate, que descia, agora, já aerado e mais aveludado, por nossas gargantas.

A refeição era apenas a primeira parte da noitada. Era como se tudo estivesse planejado na dose certa.

- Que tal?

- Está ‘jeitosito’…

Outra piada privada. Quando usava aquela expressão, queria dizer, simplesmente, que havia gostado muito. Isso havia-me ficado evidente, quando repetiu, para meu deleite – e também o seu - a não tão modesta porção servida. A insegurança que eu sempre sentia, antes de experimentar o prato, desaparecera à primeira garfada. Eu não costumava provar o sal ou os temperos, enquanto cozinhava e, muitas vezes, ficava mesmo em dúvida se acertava. Mas aquela refeição estava bastante ao meu agrado…

Da despretensiosa e simples entrada de fatias de pão torrado com queijo, às delicadas trufas de chocolate amargo, com uma leve textura de amêndoas doces, no final, o jantar havia sido extremamente bem apreciado e a conversa fluíra naturalmente, digna do informalismo quase formal do momento.

Levantei-me, recolhi os pratos e os talheres e deitei-os na pia, com cuidado, enchendo os copos com água e deixando-os sobre a parte metálica da mesma, ao lado.

Ainda estava ocupado naquela tarefa, quando senti seus braços passarem à volta da minha cintura e o calor do seu corpo trazer uma sensação de conforto ameno nas minhas costas. Segurei-lhe os braços e movi a cabeça levemente para trás, com os olhos semicerrados. Senti o toque morno de seus lábios no meu pescoço e gemi, baixinho. Movi a cabeça para o lado e senti sua boca procurar a minha.

Aquela era uma prática bastante frequente entre nós. A provocação delicada, a aceleração da pulsação e o calor do sangue a procurar seu caminho pelas veias mais bem direcionadas, provocavam reações físicas visíveis e sensações mais que evidentes nas funções hormónicas. A testosterona agia rápido, acelerada pelo efeito da controlada dose de álcool contida no sangue.

Havia algumas semanas que não nos víamos e minha paranoia já andava a mandar-me mensagens de cautela, às quais eu evitava, a todo custo, dar ouvidos. Embora não fossemos muito eloquentes a respeito do que sentíamos, deixando sempre as palavras em modo Subjuntivo e as ações mais no modo Indicativo, reconheço que aquele abraço bem sabia à uma boa ideia de paraíso. Meu corpo respondia com evidências incontestáveis e eu não fazia nenhuma questão de escondê-las. Ao contrário, só nos dava mais motivos para continuarmos com a brincadeira. O toque da pele morna, o roçar das mãos no meu peito, os lábios a saborearem os meus, delicadamente… tudo aquilo contribuía para estimular a libido e intensificar o desejo.

Tomei-lhe a mão e dirigi-me ao quarto, sem acender a luz. A penumbra favorecia o estímulo aos sentidos e aos impulsos conduzidos ora por um, ora por outro de nós. Nosso contato não era somente físico. Havia uma função bastante cerebral, meticulosamente usada, com pouca hesitação, que intensificava desde as mais ténues preliminares até o ato final.

Aprendi a deixar-me tocar e gozar das carícias que recebia; de um simples e leve contacto com as pontas dos dedos, à investida mais lasciva de um abraço apertado, com direito a todas as sensações da pele.

Aprendi a fazer o mesmo e deleitar-me com o prazer que sentia ao perceber as reações daquele corpo. Tive a boa ideia de iniciar um jogo interessante. Tomei um frasco de óleo discretamente perfumado e aqueci uma pequena porção ao esfregá-lo nas mãos e iniciei uma massagem na base da coluna, deslizando os dedos, com vigor, para cima, até a base do pescoço e depois desci novamente até o cóccix. Uns pequenos nódulos de tensão muscular dissolveram-se pela pressão dos meus dedos e mãos e senti seu corpo relaxar aos poucos até que a massagem, por assim dizer, inicialmente terapêutica, tornou-se um jogo mais sensual.

O roçar das mãos na parte interna das coxas encetou uma outra sequência de ousadas carícias. Diminuí a pressão do contacto e comecei a estimular toda a extensão da pele, alternando a forma com que tocava, ora com as pontas dos dedos, ora com as costas das unhas, delicadamente, em sentido contrário, tentando descobrir como seu corpo reagia. O próprio passear dos dedos sobre a epiderme eriçada causava-me interesse maior em explorar pontos mais suscetíveis, no que era prontamente aceite, incentivando-me a continuar. Acreditei que muitas daquelas sensações eram-lhe novas, pela forma como a respiração entrecortava-se, à medida que o jogo evolvia. Perceber aqueles pormenores e sua cadeia de reflexos, divertia-me imensamente.

Deslizei meu corpo sobre o seu, lentamente, fazendo questão de assegurar-me que nossas peles ficavam em suave contato o mais longamente possível. Entrelacei minhas mãos nas suas e mordisquei-lhe, de leve, o lóbulo da orelha. O que seguiu-se foi uma sequência de atos lúbricos, manifestamente sem censura e sem tabus. O limite era o que nos fosse consensual, mesmo que não trocássemos mais do que poucas palavras, quase todas sussurradas, para não quebrar o doce encanto daquele momento lascivo.

Em mim, havia muito mais que um simples prazer sensual. Eu mergulhara, de cabeça e por completo, com corpo e mente, razão e emoção, no erotismo impulsivo daquele momento. E sabia que não estava sozinho…

Nossos corpos ainda quentes e ainda exalando suor, ainda encaixados um no outro, ainda usufruindo daquele momento de relaxamento - em que o mundo começa a voltar ao normal, mas não se quer deixar o fogo extinguir-se, por completo, agarrando-se desesperadamente ao último resquício daquela doce insanidade – pareciam flutuar entre diferentes estados. Por um lado, estavam exauridos, mas fisicamente saciados e, por outro, sentiam-se embriagados pelo conforto do gozo, que somente uma grande compatibilidade emocional proporciona.

- Tu usas todos os sentidos e ainda o cérebro… Acho isto incomum e impressionante…

Eu ri.

- É por conta do sensualista…

Disse-lhe aquilo num sussurro, conhecendo o peso da verdade quase hedonista que aquela expressão carregava e que eu aceitava, espontaneamente, naquele momento.

Tinha plena consciência que somente conseguia contentar-me se tivesse muito mais do que uma simples satisfação física e orgânica. Eu tinha que ter tempo, usufruir lentamente todas as sensações, todas as carícias, todos os sentidos e, ainda, abandonar-me completamente ao momento, por tanto tempo quanto me fosse possível. Era-me também imprescindível que aquele prazer desancorado fosse intuitivo, evidente, compartilhado e reciprocado por quem estivesse comigo…

***

- Minha vida está completamente desconfigurada…

A frase expressava, para mim, a ideia de um anticlímax. Era um balde de água fria, jogada contra minha confortável coerência.

Era a primeira vez que eu ouvia aquela palavra usada para referir-se à vida de alguém. Um verbo extremamente moderno, sendo usado para definir uma evidente e velha situação. Quem poderia ter uma vida normal, integralmente ‘configurada’, por assim dizer, nos loucos dias de hoje?


Um inesperado desconforto, entretanto, instalou-me em alguma parte da minha mente, naquele momento, pela estranha forma com que a frase soou-me. Eu não sabia se estava preparado para ouvir a continuação daquela conversa… 

3 comentários:

  1. Esta é a primeira parte da nova historinha que será publicada em dois posts somente. A segunda parte virá logo.

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  2. Estas palavras fazem-nos participar como actores neste cenário que crias e nos envolve de tal forma que nos leva a senti-lo como real.
    Parabens

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  3. Obrigado pelo incentivo. Tento fazer com que o que eu sinto seja transmitido em palavras, para poder fazer os leitores vivenciarem a ação...

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