Mostrar mensagens com a etiqueta personalidades múltiplas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta personalidades múltiplas. Mostrar todas as mensagens

domingo, 1 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 2)

Phil


Quando as duas mulheres entraram no pub, após um longo dia no consultório, pretendiam simplesmente relaxar um pouco, tomar uma bebida qualquer e fugir do frio lá fora. O bar estava bastante movimentado àquela hora, apesar de já ser tarde para o happy hour.

Na parede oposta à entrada havia um  pequeno palco. O clima era agradável e a música, acústica e de muito boa qualidade. O volume do som era audível, mas discreto o suficiente para manter o público confortável, sem perturbar a conversa. Os músicos poderiam passar quase despercebidos, se tocassem com aquela intenção.

Iluminado apenas por dois pequenos holofotes, direcionados para sua cabeça e mãos, o músico que lá se apresentava no momento era realmente bom, tanto a cantar, quanto a acompanhar-se no violoncelo. Sua voz era harmoniosa e sua performance, estava sendo bastante apreciada pelo público frequentador do local, que mantinha um silêncio quase absoluto, a ouvi-lo atentamente e com extremo deleite. Aquele homem não devia ser apenas um músico de bar.

Os olhos das duas pousaram, curiosos e atónitos, sobre o jovem homem, vestido com uma impecável camisa branca, com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos cotovelos e modernas calças jeans de marca, quando ele levantou a cabeça e teve o rosto completamente iluminado.

- Aquele não é o Gabriel?

- Eu ia perguntar o mesmo. Parece ser ele, sim. Não sabia que ele podia cantar e tocar violoncelo.

- Nem eu. Cada dia, uma surpresa, sim senhora... Vamos lá falar com ele?

- Vamos esperar fazer um intervalo e, então, falamos com ele. O homem é mesmo bom!

A outra olhou-a, com um ar entre o surpreso e o maroto e deu uma risadinha. Ambas aproximaram-se do balcão para pedir um bebida e esperar, enquanto apreciavam o show e mantinham interesse no clima dentro do recinto.

Algumas canções eximiamente bem tocadas após, o músico anunciou que iria parar por uns instantes, levantou-se e dirigiu-se ao bar, perto do palco, na ponta oposta onde as mulheres estavam a observá-lo. Elas abriram caminho entre as pessoas e aproximaram-se. Ele estava de costas. A terapeuta tocou-lhe no ombro e falou:

- Nossa, Gabriel. Que performance linda! Não sabíamos que tocavas assim tão bem. Nem sabíamos que eras um músico, menos ainda que fosses tão bom. Meus parabéns!

O rapaz virou-se. Seus olhos pousaram sobre as duas mulheres e ele sorriu, de uma maneira bastante cordial, mas um tanto estranha.

- Obrigado pelo elogio. Aprecio mesmo a vossa opinião e não sei se mereço tudo isso, mas devem estar a confundir-me com outra pessoa. O meu nome é Filipe, mas artisticamente assino como Phil, que é mais fácil e conveniente.

As duas mulheres entreolharam-se, estupefatas e incrédulas. Tinham certeza que estavam diante do mesmo homem que conheceram há dias e que já havia-lhes causado uma impressão bastante incomum, por ser um raro caso de estudo psicológico.

Ou será que estavam, assim, tão enganadas? Como aquilo podia ser possível? Quem diabos era aquele homem, afinal?

***

A terapeuta ficou às voltas com uma pesquisa por longas horas, noite adentro. Sua cabeça andava aos turbilhões. Vários filmes haviam passado em sua mente, enquanto estudava caso após caso, tentando compreender se estava diante de uma personalidade fragmentada, ou se estava mesmo errada em relação ao homem que tocava, tão perfeitamente, no bar, horas antes. A coisa ficava mais complicada à medida que avançava no que pensava ser o conhecimento de seu paciente, na terapia.

Se Phil e Gabriel fossem o mesmo homem, ela estava diante de um processo muito mais assustador e emaranhado que ela poderia imaginar. Julgava que casos de dupla personalidade eram bastante difíceis de tratar, mas aquele estava começando a ficar assustadoramente denso. E, ainda, havia Lucius a considerar na equação, uma personalidade muito mais intimidante e difícil de conter, que podia, facilmente, dominar as outras, se quisesse... ou pudesse.

Como psicóloga, ela conhecia histórias e relatos científicos, mas, pessoalmente, nunca havia topado com pacientes sofrendo de múltiplas personalidades. Aquele caso era bem mais profundo que isso. Se Gabriel era, por assim dizer, o dono do corpo, como podia ter deixado os outros aparecerem assim?

Ela lembrou que Lucius falara em exteriorização... Ele mostrara saber bem do que falava...

Não vendo nenhuma saída, decidiu que deveria que entrar em contacto com um velho amigo, um professor da faculdade, para trocar informações e tentar perceber melhor como agir, em um caso daqueles. Talvez ele pudesse, com sua experiência, indicar, ou mesmo discutir uma forma de ajudar, antes que...

- Oh, meu Deus! A batalha... Que raios de batalha poderia ser?

***

- Doutora, é a terceira sessão que Gabriel falta. Não consegui contactá-lo pelo telefone. Está desligado.

- Vamos ao pub, hoje, ver se encontramos Phil. Quem sabe ele esteja lá... Começo a ficar muito mais preocupada, agora.

- OK. Vamos ao pub.

O dia arrastou-se, na sua rotina e quando, finalmente, acabou-se, a secretária entrou no consultório, já toda pronta para sair. A psicóloga ainda tomava alguns apontamentos da última sessão, mas levantou-se de pronto e, com uma expressão que não escondia a ansiedade, tomou a bolsa. Deu um longo suspiro.

- Temos que descobrir o que está havendo. Tenho medo do que possa vir por aí...

Quando chegaram ao pub, olharam imediatamente para o pequeno palco, mas o músico que lá estava não era quem esperavam. Ao perguntar por Phil, o barman informou-lhes que só devia aparecer dali há dois dias. Ele havia deixado um número de telefone, mas parecia estar desligado, portanto não tinham como contactá-lo.

As duas mulheres resolveram que deveriam esperar até dali há dois dias e saíram do bar, logo em seguida. Talvez tivessem mais sorte em um par de dias...

Ao cruzar a rua, no fim do quarteirão, esbarraram num jovem que vinha de cabeça baixa a caminhar, meio sem destino. Seus cabelos estavam desalinhados, sua barba por fazer há algum tempo e suas roupas bastante sujas. Era, com certeza, um morador de rua. Pelo jeito que vinha a caminhar, parecia estar drogado. A terapeuta pediu desculpas e atravessou a rua, apressada, acompanhada da secretária. Nenhuma das duas olhou para trás, logo esquecendo o incidente.

O homem, logo que alcançou a calçada, voltou-se e ficou a acompanhar, com o olhar, as duas mulheres a caminhar do outro lado da rua, apressadas, na direção oposta. Esperou um pouco, até que elas virassem na esquina e voltou a cruzar a faixa de pedestres, apressando o passo, para alcançá-las.

Ao chegar à esquina, onde as mulheres viraram, o homem viu que uma delas já estava ao volante de um carro, enquanto a outra entrava pelo outro lado e, antes mesmo que ele chegasse mais perto, arrancaram dali.

Ele seguiu-as com o olhar, pois sabia que não ia conseguir chegar mais perto que já havia... não daquela vez, pelo menos. Mas oportunidades não iriam faltar...

***

Dois dias depois, durante o intervalo do happy hour, no pub do outro lado da rua, a psicóloga conversava com o músico da noite e convenceu-o, depois de muita conversa, a ir vê-la no consultório, mesmo que por uma única vez, conforme ela prometeu. Sabia que precisava de ajuda e, talvez, Phil pudesse apontar-lhe uma saída.

Quando o jovem entrou, vestido impecavelmente, como ela o conheceu, na outra noite, ele abriu-lhe um sorriso imenso e estendeu-lhe a mão. A mulher tomou-lhe a mão, educadamente, mas sentiu mais que uma simples simpatia pelo personagem que estava de pé à sua frente.

- Bem vindo, Phil. Fale-me um pouco de si, por favor. Acredito que haja muito a dizer.

Ele sorriu. A conversa começou muito amena, mas depois de alguns pontos, quase sem importância, ele falou:

- Bom, como sabes, meu nome é Phil. Em dias normais, sou um músico reconhecido, mas este é apenas um disfarce.

A mulher levantou a sobrancelha, em estado de alerta. Sabia que havia algo mais, que ele não havia contado. 

- Sei que esconder minhas habilidades aumenta um certo mistério, mas também serve para apanhar o inimigo desprevenido. Apesar da minha aparência calma e da minha muito pouca experiência em lutar, acredito que serei um poderoso 'asset', quando vier a fase de guerra fria. Pode não parecer, mas sou um exímio atleta. Minha maior virtude é a resistência física e à dor. Eu tenho asas às minhas costas, mas estas ainda estão em crescimento. No futuro terei asas enormes – ao menos assim o espero... e poderei voar alto e longe. Até lá tenho que me preparar bem, pois minhas habilidades serão de grande valia. Quando for necessário, porém, saberei usar meus recursos com grande maestria.

Ele chegou-se para frente, como quem está para revelar um grande segredo. A mulher já estava bem mais que assustada.

- Tenha cuidado, porém, com o Rael. Ele é muito perigoso.

- Quem é Rael?

- Tu talvez não saibas quem ele seja, mas podes ter certeza que ele sabe muito bem quem tu és...

***

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 1)

Gabriel

 - Gabriel? Gabriel? Sabes onde estás?

O jovem olhou em volta, mas não pareceu reconhecer o lugar. A sala era comum, com uma grande janela voltada para a cidade. Apesar de estarem apenas no 4º andar, não era possível ouvir os sons que passavam lá fora. As vedações eram quase perfeitas, o que era excelente para um consultório como aquele.

O homem balançou a cabeça. Seus olhos pareciam vazios, como se estivesse num estado de confusão mental bastante grande. Não dava nenhuma demonstração de saber onde estava.

- Foste encontrado na rua, aparentemente sem saber quem eras ou onde estavas e foste trazido para cá. Vimos teu nome na documentação na tua carteira. Consegues entender o que eu digo?

Ele fitou a pequena mulher com um ar entre o confuso e o hostil. A psicóloga já estava acostumada, em seus muitos anos de experiência, a lidar com pacientes hostis, em confusão mental ou, mesmo, com amnésia. Não mostrou-se intimidada. Voltou a perguntar ao rapaz de pálidos olhos azuis:

- Gabriel? Consegues compreender o que falo?

O rapaz olhou a mulher, agora com uma certa irritação, franziu no cenho e grunhiu, entre dentes.

- Meu nome não é Gabriel.

A mulherzinha observou-o com outros olhos. Ele parecia estar realmente indignado ao ser chamado pelo nome que ela usara. Seus olhos revelaram um pouco mais que irritação. Havia algo mais selvagem e agressivo neles.

Ela percebeu que estava diante de um caso mais complicado que contava. Não parecia ser apenas um problema de confusão mental ou amnésia. Ela viu que podia ser muito mais que aquilo. Se não tivesse passado por um grande trauma, poderia ser...

... Não ... não podia ser...

Há muito que não via um paciente com aquelas características, mas ela própria duvidava que suas suspeitas tivessem fundamento. Tentou escrutinar as reações do homem, ao aproximar-se dele, para ver como reagia, mas foi interrompida.

- Ele tinha sangue nas mãos e na camisa… o rosto estava machucado e estava completamente desorientado. Quase nem ofereceu resistência a ser trazido para cá. Talvez tenha sido assaltado, levado uma surra, batido com a cabeça, ou algo assim.

O policial parecia perturbado. Havia recolhido o jovem na rua e pelo estado em que se encontrava, parecia haver sido vítima de agressão ou, talvez, pelo contrário, ter agredido alguém. Como a carteira ainda estava no bolso, a hipótese de assalto era menor. A não ser que tivesse reagido e dado luta...

- Tenha calma. Vamos ter que desvendar este mistério. Primeiro tenho que fazê-lo falar. Talvez seja melhor investigar a área onde foi encontrado, para ver se há alguém ferido. Melhor chamar a emergência para verificar seu estado de saúde física. Enquanto isso, eu tento descobrir algo, embora pense que não seja tão fácil.

O policial puxou-a para o lado e disse-lhe que não seria aconselhável deixá-la sozinha com o homem. Ela concordou, mas pediu-lhe para esperar na saleta contígua ao consultório, ao que ele acedeu, meio a contragosto. A especialista era ela, afinal.

A mulher voltou, então, sua atenção ao jovem homem, sentado numa confortável poltrona revestida com couro castanho-escuro. Ele tinha o olhar perdido para além da janela, num ponto muito distante dali.

- O que é que o preocupa? Já não pareces perdido ou confuso. Podes contar-me o que aconteceu?

A mulher usava de cautela, ao falar. Sabia que o documento que o policial havia-lhe entregue era original e que era daquele homem. Na carteira de identidade, o nome era Gabriel.

- Fale comigo, Gabriel, por favor.

- Já disse que meu nome não é Gabriel. Gabriel é um tolo. Eu sou Lucius.

- Lucius?

Ele assentiu e sorriu... e seu sorriso tinha um ar beirando o perverso. A mulher sentiu que suas suspeitas pareciam estar certas, mas precisava de mais convicção. Precisava fazê-lo falar, mas tinha que ter cautela. Uma profissional como ela não podia confiar em suspeitas.

- OK, Lucius. Fala-me de ti, por favor. Preciso tentar compreender o que aconteceu.

O homem chegou-se um pouco para a frente e começou a falar. A mulher ouvia atentamente, tentando gravar cada palavra que ele dizia, na sua mente treinada para tratar de casos exceptionais como aquele.

Lucius


- O nome, pelo qual eu respondo, é Lucius. Este poderia muito bem ser Lúcifer, que talvez fosse mais apropriado, tendo em vista minha forma, um tanto violenta, de exteriorização.

- Exteriorização?

Ele ignorou-a e continuou.

- Desde muito tenra idade eu tenho sido uma personalidade difícil de lidar e, por isso, muitas vezes perco o controle sobre meus atos e parto para cima de meus contendores, com extrema violência. Tenho muitas passagens pela polícia, mas não é uma coisa que realmente me deixe preocupado. Quando sou preso, meus companheiros de cela não tardam a conhecer o poder da minha força e, mais especificamente, da minha ira. Não foram poucas as vezes em que tive que ser colocado em cela separada, ou levar banhos gelados, para acalmar-me. O que gosto mesmo é de uma boa briga. Eu tomo estas experiências como treino para a grande batalha. Mal sabem eles o que os espera. Pelo menos eu estarei preparado… Quem não estiver, que sofra as consequências…

A mulher olhou o jovem homem, agora tão seguro de si, completamente oposto ao estado em que havia chegado e confirmou, em sua mente, que estava certa. Aquele homem era mais que um caso complexo a estudar. Era uma bomba relógio, pronta a explodir.

- Que grande batalha é esta?

Ele sorriu.

- Pergunte ao Gabriel...

***