- Diga-me, falando seriamente: de onde é que tu vieste, afinal?
- Do Céu...
- Mesmo? Tu poderias ter vindo do inferno e eu nunca ia ter
certeza, de facto. Eu não sei como e por quê, mas tu estás preso em minha mente
como uma daquelas canções que ficam repetindo sem parar... Eu não consigo tirar-te
dos meus pensamentos! O que tu estás fazendo comigo? Isto é tão estranho…
Ele riu. Seus olhos eram
como duas estrelas e eu podia vê-los cintilando na escuridão ou melhor dizendo,
eu os estava mais sentindo do que realmente vendo. Suas mãos estenderam-se para
me tocar, e eu aceitei aquele seu terno toque na minha pele, tão leve e agradável
como uma pena que flutuava na morna brisa de verão e aterrissava suavemente no
meu corpo.
- É um segredo.
- E suponho que tu não me vais dizer...
- Não, mas tu sempre me podes manter em tua mente. Assim podes
levar-me contigo, onde quer que tu vás... e sempre que quiseres...
- Esperto... Muito esperto.
***
Ele era um homem diferente. Muito peculiar. Eu percebi aquilo desde que deitei meus
olhos sobre ele pela primeira vez. Suas feições não eram de um deus grego, mas tinha seu encanto próprio. Sua pele era pálida, mas não rosada, seus olhos
escuros eram como pérolas negras, brilhando em suas profundas órbitas. Embora mantivesse seus cabelos pretos aparados e limpos, era quase calvo. Ele era
atraente, sem ser arrojado ou arrogante.
Eu era uma turista
viajando sozinha e ele estava trabalhando como gondoleiro no Grande Canal. Ele
nos disse que trabalhava durante o verão para ganhar algum dinheiro, de modo a cobrir
seus estudos. Queria ser um mestre em Artes e a taxa de matrícula era
bastante dispendiosa. Quando estava trabalhando como um guia nas gôndolas, era muito educado e bem-humorado, mas quando a situação era mais tranquila,
seus olhos, de alguma forma, perdiam-se na distância, como se o seu espírito viajasse
para fora do corpo, por algum tempo.
Quando deixamos o Canal,
ele acenou com um adeus educado e voltou sua atenção para o novo grupo de turistas,
que já aguardavam na fila. Eu ainda caminhei um par de horas e então decidi
encontrar um restaurante onde pudesse comer alguma coisa, já que a hora de
almoço havia passado há muito e eu estava morrendo de fome. Decidi pela trattoria e tentei encontrar um local
mais silencioso perto da janela, para que pudesse observar as pessoas entrando
e saindo pelas portas pintadas de verde-escuro. Era tarde e poucos lugares ainda
serviam almoço como em um dia normal. A pequena e aconchegante trattoria estava silenciosa, mas não
vazia, apesar de já ser a meio da tarde.
Coincidência, ou não,
reconheci-o quando ele entrou no mesmo restaurante, caminhando de cabeça
erguida e com firmeza, mostrando confiança e conforto em ser quem era. Ele então
sentou-se sozinho, pediu a refeição e esperou. Não olhou para o celular, nem
mostrou nenhum interesse pelas pessoas ao seu redor. Seus olhos estavam, de uma
certa forma, perdidos na distância, para além da janela. Ao observar seus
movimentos, pensei que era uma pessoa tão incomum e decidi que queria saber
mais sobre ele.
Eu tentei fazê-lo olhar
para mim, mentalmente, fazendo o máximo esforço que pude para chamá-lo em minha
mente. Ele franziu a testa, como se algo o estivesse perturbando e, então,
olhou em volta, como se estivesse procurando por alguém. Foi então que nossos
olhos se encontraram.
Senti vontade de cair em
um imenso buraco, que pareceu-me abrir por debaixo dos meus pés. Senti uma
ligeira tontura. Ele estava lá, olhando para mim com aquela expressão impossível
de decifrar estampada no rosto. Aquele momento não durou mais de um ou dois
segundos, mas foi tão intenso como se houvesse durado a eternidade de cem anos.
Eu tentei-me levantar, mas minhas pernas falharam e ele percebeu.
- ‘Tás bem?
"Ora essa! ‘Tás bem??? Que tipo de Português é esse?”
- Sim. Eu estou bem. Obrigada.
Ele estava de pé junto à
minha mesa e parecia preocupado. Eu pensei que ia desmaiar.
Meu coração estava batendo
muito rápido e tão alto, que era difícil ouvir qualquer outra coisa.
"Que diabos é isso?"
- Estás muito pálida. Talvez devesses beber um pouco de água.
- Eu estou bem. Obrigada.
"Ele é apenas um estranho. Por que ele está preocupado
comigo? Isso não faz sentido…"
Ele estava falando sério.
Muito sério. Os olhos escuros brilhavam à luz da tarde. Não pude deixar de
pensar num enorme farol, erguido na praia.
- Tens certeza de que estás bem? Eu posso pedir ajuda.
"Ajuda? Ajuda-me, Deus! Eu quero esse homem!"
- Estou bem. A água vai-me fazer bem.
- OK, então.
Ele virou-se e deixou-me
ali sozinha, caminhando firme e devagar, para longe de onde eu estava. Ao
chegar ao caixa, tirou a carteira do bolso direito e conferiu a conta. Eu
fiquei ali, a olhar e ainda a me sentir uma sensação muito estranha. Ele pagou
e saiu pela porta de vidro. Eu estava insegura e incerta do que se havia
passado. Queria que ele ficasse, mas não podia fazer nada, além de manter o
desejo bem escondido em minha mente. Eu gritei lá dentro de mim, sabendo que
minha voz nunca seria ouvida, nem por ele, nem por ninguém.
"Oh. Por favor, volte e olhe para mim! "
Meu rosto mostrava
claramente meu desespero e impotência. Por algum motivo estranho, senti o
desejo de olhar para a janela atrás de mim e voltei-me ligeiramente.
Levei um susto. Ele estava-me
olhando com uma expressão engraçada em seu rosto bonito. Tentei sorrir, mas só consegui
esboçar um esgar estranho e torto. Ele riu... para mim... e se afastou, como se
estivesse feliz com o que havia conseguido até ali.
***
- Como tu podes ler minha mente desse jeito? Como podes responder, quando meus lábios ainda nem foram abertos?
- Eu te entendo e te sinto. Eu leio teus pensamentos.
- Isso é assustador. Sabias disso? Eu acho que tu me enfeitiçaste,
desde o primeiro momento.
Ele apenas riu, sem nem ao
menos tentar negar, mas eu sabia que aquilo não era normal.
Para todos os efeitos, meu
coração desejava ele. Meu corpo pedia seu toque. Meus pensamentos estavam voltados
para ele durante todo o dia, inevitavelmente.
Eu certamente havia sido enfeitiçada.
Era difícil concentrar-se, já que minha atenção estava totalmente e
inevitavelmente dirigida a ele. Não que eu quisesse que fosse diferente, mas
sabia que estava sob sua vontade... ou feitiço... completamente... em corpo e
alma...
E ele parecia gostar,
embora nunca tenha dito nada disso em voz alta.
***
- Faz cerca de três meses nos vemos todos os dias. Incrível, não
é mesmo?
- Tanto assim? Eu não diria que se passou tanto tempo...
- Intensidade. A isto eu chamo de intensidade.
- Ótimo. Intensidade é uma coisa boa, acho eu.
- É bom, sim.
***
- Confia em mim.
- Mas eu tenho medo.
- Confia em mim, ok? Tudo ficará bem. Ou tu dás um salto de fé
ou não enfrentas nada. Ademais, nunca saberás, a menos que tentes.
- Mas é como saltar no ar e não saber se há uma rede para me
segurar se eu falhar e cair... E eu não sei voar...
- Pois eu sei. Basta fechar os olhos e, como tu mesma disseste, saltar!
Eu estava tão assustada.
Eu não sabia se eu deveria confiar nele ou não, mas eu queria. Fechei os olhos
e segurei sua mão. Então eu me soltei... e fico feliz por ter feito... agora...
***
- Prova apenas que tu precisas ser mais ousada...
- Ah, tá!
Como de costume, ele
estava brincando com a minha inteligência. Ele costumava dizer que eu tinha uma
mente sexy. Isso era uma coisa incomum para mim, mas aquilo enchia minha vida
de orgulho e alegria.
- Tu conheceste muitas pessoas diferentes em tua vida e essa é
certamente uma declaração muito séria, com base nas tuas experiências.
- É por isso que posso dizer que estou falando sério. Tu és
especial. Muito especial.
Eu corei imediatamente.
Ele simplesmente me segurou em seus braços, beijando o topo da minha cabeça. Eu
passei os braços em volta do seu corpo e me senti totalmente aconchegada e amada.
Que sensação tão boa... Mas por alguma razão incompreensível, meu coração deu
um salto.
Olhei para o seu rosto
bonito e ele parecia distante, como se estivesse em outro lugar... muito longe
dali. Eu conhecia aquele olhar.
Então ele disse, com uma
voz grave e bastante baixa, quase inaudível:
- Eu estou na tua vida por uma razão muito específica.
***