sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os Oito Guerreiros (Parte 1)

Gabriel

 - Gabriel? Gabriel? Sabes onde estás?

O jovem olhou em volta, mas não pareceu reconhecer o lugar. A sala era comum, com uma grande janela voltada para a cidade. Apesar de estarem apenas no 4º andar, não era possível ouvir os sons que passavam lá fora. As vedações eram quase perfeitas, o que era excelente para um consultório como aquele.

O homem balançou a cabeça. Seus olhos pareciam vazios, como se estivesse num estado de confusão mental bastante grande. Não dava nenhuma demonstração de saber onde estava.

- Foste encontrado na rua, aparentemente sem saber quem eras ou onde estavas e foste trazido para cá. Vimos teu nome na documentação na tua carteira. Consegues entender o que eu digo?

Ele fitou a pequena mulher com um ar entre o confuso e o hostil. A psicóloga já estava acostumada, em seus muitos anos de experiência, a lidar com pacientes hostis, em confusão mental ou, mesmo, com amnésia. Não mostrou-se intimidada. Voltou a perguntar ao rapaz de pálidos olhos azuis:

- Gabriel? Consegues compreender o que falo?

O rapaz olhou a mulher, agora com uma certa irritação, franziu no cenho e grunhiu, entre dentes.

- Meu nome não é Gabriel.

A mulherzinha observou-o com outros olhos. Ele parecia estar realmente indignado ao ser chamado pelo nome que ela usara. Seus olhos revelaram um pouco mais que irritação. Havia algo mais selvagem e agressivo neles.

Ela percebeu que estava diante de um caso mais complicado que contava. Não parecia ser apenas um problema de confusão mental ou amnésia. Ela viu que podia ser muito mais que aquilo. Se não tivesse passado por um grande trauma, poderia ser...

... Não ... não podia ser...

Há muito que não via um paciente com aquelas características, mas ela própria duvidava que suas suspeitas tivessem fundamento. Tentou escrutinar as reações do homem, ao aproximar-se dele, para ver como reagia, mas foi interrompida.

- Ele tinha sangue nas mãos e na camisa… o rosto estava machucado e estava completamente desorientado. Quase nem ofereceu resistência a ser trazido para cá. Talvez tenha sido assaltado, levado uma surra, batido com a cabeça, ou algo assim.

O policial parecia perturbado. Havia recolhido o jovem na rua e pelo estado em que se encontrava, parecia haver sido vítima de agressão ou, talvez, pelo contrário, ter agredido alguém. Como a carteira ainda estava no bolso, a hipótese de assalto era menor. A não ser que tivesse reagido e dado luta...

- Tenha calma. Vamos ter que desvendar este mistério. Primeiro tenho que fazê-lo falar. Talvez seja melhor investigar a área onde foi encontrado, para ver se há alguém ferido. Melhor chamar a emergência para verificar seu estado de saúde física. Enquanto isso, eu tento descobrir algo, embora pense que não seja tão fácil.

O policial puxou-a para o lado e disse-lhe que não seria aconselhável deixá-la sozinha com o homem. Ela concordou, mas pediu-lhe para esperar na saleta contígua ao consultório, ao que ele acedeu, meio a contragosto. A especialista era ela, afinal.

A mulher voltou, então, sua atenção ao jovem homem, sentado numa confortável poltrona revestida com couro castanho-escuro. Ele tinha o olhar perdido para além da janela, num ponto muito distante dali.

- O que é que o preocupa? Já não pareces perdido ou confuso. Podes contar-me o que aconteceu?

A mulher usava de cautela, ao falar. Sabia que o documento que o policial havia-lhe entregue era original e que era daquele homem. Na carteira de identidade, o nome era Gabriel.

- Fale comigo, Gabriel, por favor.

- Já disse que meu nome não é Gabriel. Gabriel é um tolo. Eu sou Lucius.

- Lucius?

Ele assentiu e sorriu... e seu sorriso tinha um ar beirando o perverso. A mulher sentiu que suas suspeitas pareciam estar certas, mas precisava de mais convicção. Precisava fazê-lo falar, mas tinha que ter cautela. Uma profissional como ela não podia confiar em suspeitas.

- OK, Lucius. Fala-me de ti, por favor. Preciso tentar compreender o que aconteceu.

O homem chegou-se um pouco para a frente e começou a falar. A mulher ouvia atentamente, tentando gravar cada palavra que ele dizia, na sua mente treinada para tratar de casos exceptionais como aquele.

Lucius


- O nome, pelo qual eu respondo, é Lucius. Este poderia muito bem ser Lúcifer, que talvez fosse mais apropriado, tendo em vista minha forma, um tanto violenta, de exteriorização.

- Exteriorização?

Ele ignorou-a e continuou.

- Desde muito tenra idade eu tenho sido uma personalidade difícil de lidar e, por isso, muitas vezes perco o controle sobre meus atos e parto para cima de meus contendores, com extrema violência. Tenho muitas passagens pela polícia, mas não é uma coisa que realmente me deixe preocupado. Quando sou preso, meus companheiros de cela não tardam a conhecer o poder da minha força e, mais especificamente, da minha ira. Não foram poucas as vezes em que tive que ser colocado em cela separada, ou levar banhos gelados, para acalmar-me. O que gosto mesmo é de uma boa briga. Eu tomo estas experiências como treino para a grande batalha. Mal sabem eles o que os espera. Pelo menos eu estarei preparado… Quem não estiver, que sofra as consequências…

A mulher olhou o jovem homem, agora tão seguro de si, completamente oposto ao estado em que havia chegado e confirmou, em sua mente, que estava certa. Aquele homem era mais que um caso complexo a estudar. Era uma bomba relógio, pronta a explodir.

- Que grande batalha é esta?

Ele sorriu.

- Pergunte ao Gabriel...

***

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Anjo Caído (Parte 2 de 2)


O anjo ficou muito sério, pois não esperava que uma proposta daquelas fosse possível de ser concebida, menos ainda de ser proferida em voz alta. O preço era mesmo muito alto, pensou. Ele sabia, todavia, que tinha que tomar uma decisão rápida.

- Minhas asas? Eu não posso…

- Podes, se quiseres. Afinal, para que elas servem aqui, neste limbo, neste lugar abandonado, onde estarás em castigo por muitos milênios?

O demónio era mestre na arte da persuasão e sabia usar, e muito bem, as suas artimanhas para convencer o outro.

- Olha…

E virou-se, mostrando suas costas, onde duas cicatrizes, do tamanho de uma mão, cada uma em um lado, na altura dos ombros, marcavam os lugares onde antes haviam estado suas próprias asas.

O anjo sentiu-se perdido, completamente sem palavras, ao ver o que havia acontecido ao outro.

- Eu também fui um anjo e também tinha minhas próprias asas. Mas fui destituído delas pela ira do todo-poderoso. No entanto, eu sobrevivi…

- Eu pago o preço. Mas deixa-me ver a minha amada, pelo menos uma vez mais.

O demónio sorriu e estendeu a mão ao anjo...

- Chega disto!

Bem naquele momento, em que uma grande negociação fechava-se, entre os dois seres imortais, a voz do todo-poderoso, forte e dramática como um trovão, causava duas fortes emoções no limbo. Ao demónio, causou terror e medo. Ao anjo, sentimentos que pouco conhecia: ódio e rancor!

- Eu te preveni. Cuidado com o que desejas… e a ti, avisei-te para ficar longe daqui, mas nenhum dos dois importou-se. Agora vão ambos conhecer o peso da minha mão.

E o todo-poderoso baniu o demónio para todo o sempre, jogando-o nas profundezas de um inferno, do qual jamais sairia. Em seguida, dirigiu-se ao anjo.

- Tu escolheste teu destino. Agora vais poder ver a tua tão amada, como querias. O preço que ias pagar ao demónio pagas a mim, só que com altos juros. Agora sairás da minha presença, para todo o sempre... ou pelo tempo que conseguires existir…

E, ao arrancar-lhe as asas, lançou-o fora do limbo, destituindo-o de todos os seus poderes angelicais. Deu-lhe um corpo físico e uma vida tão imprevista quanto a dos homens... assim como uma maldição...

- Quanto mais conviveres entre os homens, mais vais esquecer a tua vida de anjo, até que, se tiveres sorte para viver o bastante, esquecerás completamente quem eras.

***

Na noite chuvosa, em meio ao fulgor momentâneo dos relâmpagos e ao repetido ribombar dos trovões, uma silhueta caminha por uma rua deserta do subúrbio, a procurar, em cada porta, o sinal certo. Cada clarão converte-o em mais detalhes. Suas costas estão a sangrar e o corpo está desnudo. Ele para em frente à uma porta e vê que é o lugar que procura. Sobe o pequeno lance de três degraus e bate na fria e dura madeira.

Uma mulher de idade avançada abre-lhe a porta e escandaliza-se ao ver o estado do homem, que parece um mendigo, encharcado de chuva e com um ar desesperado ou, talvez, enlouquecido. Ela não sabia distinguir qual daqueles dois estados podiam aplicar-se ao homem.

- Eu tenho que vê-la, por favor.

- Vá embora ou eu chamo a polícia.

- Por favor, minha senhora… eu preciso vê-la, nem que seja por um minuto. Custou-me tanto encontrar este lugar…

A mulher tentou fechar a porta, mas o homem apoiou-se na maçaneta e, perdendo o equilíbrio, caiu para dentro, aos pés dela. A mulher não podia deixar aquele homem nu, caído no tapete da entrada, a sangrar. Arrancou a toalha da mesa e estendeu sobre seu corpo. O homem resmungou o nome da filha, pedindo para vê-la.

- De onde tu conheces a minha filha? Oh, cubra-se, pelo amor de Deus!

- Eu sei que ela está adoentada por minha causa. Por favor, senhora. Preciso vê-la.

- Chegaste tarde demais. Ela está nas últimas. Já não há o que se possa fazer.

- Oh! Não pode ser possível. Não pode ser possível!

O homem irrompeu em um pranto inconsolável e a mulher comoveu-se, percebendo que o que ele dizia e o que sentia eram verdadeiros. Convidou-o para ir ao quarto, onde a filha jazia. Ao ver sua amada, quase sem vida, deitada na cama, o homem chorou mais ainda. Aproximou-se do corpo e tocou-lhe a face. Ela abriu os olhos, com muita dificuldade e olhou para o jovem. Ele tinha um aspeto lastimável, mas pareceu sorrir. Ela tentou levantar a mão e tocar-lhe. Ele segurou-lhe a frágil e pálida mão, levou-a aos lábios e beijou, suavemente. Dentro de si, um fogo pareceu arder com o calor de mil fornalhas acesas.

- Minha querida. Que medo eu tive de não chegar a tempo. Perdão, meu grande amor…

A moça tentou sorrir, mas era um esforço muito grande. Tentou falar, mas apenas conseguiu balbuciar uma única palavra, num sussurro quase inaudível.

- Anjo…

Ela fechou os olhos muito devagar. Sua expressão deixou de transparecer tristeza e transmutou-se em algo mais sereno, como se uma inesperada paz tomasse conta de si, naquele momento. Ele aproximou-se e tocou seus lábios, muito suavemente, num beijo frágil como o toque das asas de uma borboleta. Ela respondeu, debilmente, ao contacto da boca daquele jovem, martirizado por uma dor quase insuportável. Suas últimas forças esvaíram-se, finalmente, naquele único beijo, trocado entre os amantes impossíveis. Seu derradeiro suspiro foi na boca de seu amado.

Ele deitou a cabeça no colo dela e chorou copiosamente, como uma criança que experimenta a angústia da perda, pela primeira vez... o que não estava longe da verdade.

 A mãe olhou o jovem enrolado na toalha de mesa, com as costas ainda a sangrar, abraçado ao corpo já sem vida da filha e perguntou-lhe o que aquilo significava.

- É uma longa história...

- Preciso tratar do funeral, mas antes, deixa-me cuidar destes ferimentos... Enquanto isso, tu contas o que te aconteceu.

E ele contou-lhe sua inacreditável saga. A mulher ouviu, com atenção, cada detalhe, como se estivesse ouvindo o relato de um sonho. Não sabia se acreditava naquela loucura ou se considerava a si mesma e à filha, duas afortunadas.

- Admito que seja uma bela história. Um tanto delusória e triste, mas bela, mesmo assim.

O homem sorriu. Era um sorriso consternado, quase um pedido de socorro. Sabia que acreditar no que havia falado pareceria loucura, mas resolveu que não tinha que insistir em dar mais detalhes. Por ora, bastava aquela verdade, apesar de parecer inconcebível, à primeira vista. Terminou, então, o relato com algumas perguntas perturbadoras.

- É isso que chamam de amor, os homens? É sempre assim tão angustiante este sentimento entre as pessoas? Nunca conheci uma aflição tão grande como esta. É por isso que alguns evitam-no de todas as maneiras? Nunca pensei que fosse possível sentir uma dor tão lancinante quanto a que sinto agora. É preferível morrer que viver com isto a maltratar tanto a alma. É mesmo uma sensação horrível…

A mulher olhou o jovem, sentindo uma tristeza pungente a dilacerar-lhe o espírito, sem saber, com certeza, o que responder-lhe. Disse-lhe, entretanto, a única coisa que conseguiu, naquele momento e que, para si, era a mais pura verdade.

- Nem sempre é assim, meu rapaz... Nem sempre... Às vezes, um único contacto, um breve momento já valem a pena. O que importa é a intensidade do sentimento. O amor consegue curar até mesmo as mais profundas dores e transformar as mais horríveis cicatrizes em memórias, somente. Lembre-se disso, no futuro, pois é um poder grandioso demais, para ser menosprezado ou banalizado.

***

Alguns longos anos se passaram. O rapaz, que inicialmente evitava o contato humano, expondo-se muito pouco e usando subterfúgios para não mostrar suas estranhas estigmas, amadureceu e aprendeu a lidar com a dor e com as limitações da sua condição e aparência física. Não queria ser considerado um masoquista, adepto de estranhos jogos de autoflagelo e mutilação, ou mesmo um louco.

Esperava que na hora certa, com a pessoa certa, ele, talvez pudesse mostrar evidências do que havia passado. Sua trágica história estava escrita nas marcas que o corpo iria carregar, enquanto vivesse. Mais profundas que as do corpo, porém, eram suas cicatrizes na alma: as marcas indeléveis do seu passado, em outra condição de "vida". Eram também suas provas de alguma vez, quase já esquecida, haver feito parte da legião do amor infinito do todo-poderoso.

Sabia que se o tempo passasse muito depressa, até mesmo aquelas memórias acabariam por dissipar-se por completo... como uma maldição... ou uma dádiva...

Infelizmente o tempo era, também, servo do todo-poderoso e apressou-se a passar mais rápido que o homem conseguiu reter as memórias... conforme fora previsto pelo mestre de todos os mestres...

***

Um homem de pele muito clara e cabeça calva viu a pessoa que saía da estação, com um ar sombrio, como se carregasse um fardo maior que merecesse e viu que era a perfeita circunstância para entrar em contato. Fingiu distração e deixou-se esbarrar, fazendo com que os pacotes que carregava nas sacolas às suas mãos, caíssem todos sobre o passeio...

***

- Eu juro que vi, no corpo dele, cicatrizes parecidas com aquelas nas minhas costas.

- Deves ter sonhado, ou era efeito do álcool. Sabes que não pode ser, mesmo, uma coisa destas...

- Não. Eu vi mesmo!

- Ah! Tá! OK. Já acreditei.

Ela tinha razão. Eu devo ter-me enganado. Não podia ser...

Sacudi a cabeça, como quem tenta desvencilhar-se de um mau pensamento e saí. Eu sabia que às vezes sonhava que podia voar como um anjo e que aquilo era uma evidência a comprovar que meus sonhos poderiam mais que isso, apenas. Ou talvez não...

***

Agora, olhando, assim, seu corpo tão pálido e tão plácido, deitado na cama, ao meu lado, tento não fazer movimentos bruscos, para não acordá-lo. Esta sua tranquilidade faz-me crer no poder de um amor, que é capaz de vencer todas as dores e que parece emanar dele, mesmo quando dorme como um humano. 

Observo as cicatrizes, pouco disfarçadas pelas tatuagens muito bem feitas e sinto que a fortuna fê-lo aproximar-se de mim, tornando-me um ser tão especial quanto ele. Tenho ímpeto de tocar-lhe as costas, de leve, tentando apaziguar-lhe toda a dor que alguma vez sentiu e todas as provações pelas quais passou.

Nunca tive coragem de perguntar-lhe como conseguira fugir do inferno em que foi jogado e, para falar a verdade, não sei se, realmente, me interessa. Meu anjo caído dorme em paz. Eu vivo em paz, na paz dele... e é o que me basta...

Beijo suas cicatrizes, como quem deseja a cura de todos os males do mundo e sinto que sua musculatura reage ao calor morno dos meus lábios. Ele geme, baixinho e vira-se um pouco. Seus olhos verdes fixam-se nos meus e eu penso que o amor é uma conexão entre o divino e o humano e que quanto mais ele cresce e intensifica, mais próximos do divino nos tornamos. 

Ele parece ler meus pensamentos e puxa-me para si, abraçando-me com seu corpo cálido. Neste momento, sinto que eu poderia voar, mesmo sem as asas que o todo-poderoso retirou-me, quando lançou-me ao limbo, por tentar desafiar suas ordens e fazer pacto com seu anjo desobediente... 

Ele passa as pontas dos dedos nas minhas cicatrizes e diz-me que tudo vai ficar bem... e eu acredito nele, afinal. Ele fez-me recuperar a memória perdida dos tempos em que ambos vivíamos no paraíso e que éramos parte do amor do amor...

Vivi tanto tempo entre os homens, que cheguei a esquecer-me completamente quem eu era, até que ele esbarrou em mim, talvez de propósito, talvez por acaso... e mudou, totalmente, minha vida...

Teria o divino reconsiderado e decidido nos dar uma segunda chance? Teria ele feito um pacto de recuperação de ambos, se aquele doce demónio conseguisse fazer-me ver, novamente, o lado positivo do amor?

Acho que nunca saberei a verdade...