domingo, 4 de dezembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 3 - Treinamento)


- Onde ele está? Não adianta vocês o esconderem, porque eu vou achá-lo, mais cedo ou mais tarde. Se não me disserem onde ele está, eu vou matar a todos.

- Como assim? Então ele não está…?

A pergunta saiu num ímpeto incontrolado, mas o homem parou a frase no meio, como se a verdade tivesse sido percebida justa e somente naquela hora. Arrependeu-se, porém, de ter-se deixado levar pela euforia de saber que o filho não era, afinal, refém do representante do mal.

Os seus companheiros, porém, logo preocuparam-se, por não saber onde poderia estar o guardião, mas só por saber que não estava em poder do grande dragão pardo, sentiram-se, de uma maneira estranha, esperançosos.

O grande réptil, obviamente, percebeu o ingénuo erro e, demonstrando satisfação, deu uma espécie de assobio, levantou o focinho ao ar e meneou a cabeça, como se a desafiar os outros personagens ali, à sua volta.

 - Então… onde estará o rapaz? Vai ser uma grande diversão tentar achar a criaturinha, antes de vocês e… acabar, de vez, com ele…

- Só se passar por cima do meu cadáver!

O dragão abaixou a cabeça e, aproximando-se muito do homem, disse-lhe, com uma voz baixa, calma e grave, num tom bastante irônico:

- Será, mesmo, um prazer extra! Dois, ao invés de um… Perfeito!

O dragão verde-azulado tomou a dianteira e enfrentou o grande animal, mesmo sabendo que aquele era mais forte que ele.

- Saia daqui! Não há nada mais aqui para ti…

- Ainda não. Mas haverá…

E dizendo isso, o dragão saiu, não por medo ou respeito, mas por saber que, tanto ele quanto os outros tencionavam procurar o mesmo, mas nenhum deles sabia por onde começar.

Seria mais fácil se estivesse no ar, ao invés de na terra, onde seus movimentos eram mais limitados. O enorme animal pardo abriu as asas e levantou voo, diante dos olhares preocupados de todos.

- Onde ele poderá estar? Temos que encontrá-lo e tirá-lo daqui antes que seja descoberto pelo nosso inimigo!

O dragão verde-azulado dirigiu-se ao pai e perguntou se o menino costumava esconder-se em algum lugar, em particular. Diante da negativa do outro homem, o velho disse:

- Talvez ele esteja mais perto que pensamos… Tive uma ideia.

E, dizendo isso, atravessou a clareira, a bater com o cajado fortemente no chão, a cada passo que dava.

***

- Eu sabia que não podias estar longe.

- Eu vi que ele andava por perto, porque ouvi os passos e escondi-me… O primeiro lugar que eu encontrei, onde ele não podia entrar, foi a caverna…

- E fizeste muito bem! Mas, agora, temos que proteger-te a todo custo.

- Com todo o cuidado e com o respeito que tenho, não vejo melhor alternativa que tirá-lo daqui o quanto antes. Temos que levá-lo para um lugar onde seja mais difícil ser localizado. Eu tive uma ideia, mas vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos…

O dragão precisava convencer o pai do menino a aceitar a triste realidade do perigo e da necessidade do plano de emergência, mas diante do que havia acontecido poucos minutos antes, pareceu-lhe mais fácil argumentar.

O homem, embora a contragosto, sabia que o filho precisava ser protegido. Uma tragédia estava iminente, mas ele não ia entregar o filho ao inimigo, mesmo que para isso tivesse que abrir mão de tê-lo por perto. A vida era, agora, mais importante que os laços de família.

***

Cada um dos sete dragões acrescentou um pequeno detalhe ao presente que deram ao menino, para servir-lhe de proteção contra todo o mal. Como cada um representava uma virtude, todas elas somadas faziam do pequeno amuleto um poderoso artefacto.

Com excertos da simplicidade do dragão albino, do amor apaixonado do vermelho, da paciência do castanho, da generosidade do dourado, da compaixão do prateado, da força de espírito do dragão negro e da esperança do verde azulado, o guardião tornava-se não somente o mais protegido, mas também o mais poderoso ser de toda a região.

Agora precisava ser treinado com muita urgência. Para confundir as forças do mal, caso o dragão pardo desconfiasse, o menino era preparado em um lugar diferente a cada lua, por um protetor diferente. Assim, às vésperas da sétima lua nova, o dragão verde-azulado tomou sua parte do treinamento, com o auxílio do velho companheiro.

Com o cajado em punho, o menino aprendeu a lutar para defender-se, após aprender tudo sobre os pontos fortes e as fraquezas do inimigo pardo, com os outros virtuosos personagens de cores diversas. Não era o treinamento perfeito, mas era essencial conhecer os pontos vulneráveis da força, já que o pequeno guardião tinha forças bastante limitadas, devido à sua juventude e ao seu reduzido tamanho.

Tanto o dragão verde-azulado quanto o velho homem, que outrora havia sido um exímio cavaleiro campeão de muitas contendas, estavam bastante preocupados e faziam de tudo para evitar o confronto entre as duas forças opostas. Sabiam, entretanto, que estavam apenas a adiar o inevitável.

Mas o inevitável pode ser apenas adiado, nunca impedido de acontecer.

O dragão pardo percebeu que estava sendo enganado e passou a vigiar o local onde o velho e o dragão, que representava a esperança, costumavam encontrar-se. No laranjal, por mais que tentassem, não conseguiriam deixar de estarem expostos. Tinham que mudar de estratégia a cada dia, para confundir o algoz, por isso o menino nunca deveria aparecer junto dos dois, quando estivessem por lá. O pai do menino era informado dos progressos do filho, sempre que possível, pelo velho amigo.

O menino, porém, sentiu saudades de casa. Sabendo que corria perigo, consultou seus protectores e combinaram um encontro com a família, numa das noites sem lua, para diminuírem os riscos.

A caverna estava às escuras, os personagens escondidos e em silêncio, no fundo da mesma, onde nunca poderiam ser tocados por uma fera do tamanho daquela que os vigiava constantemente. Num canto de um dos compartimentos mais próximos da entrada da caverna, a armadura parecia um vigia em atalaia, pronto a lutar para defender quem viesse com más intenções, com a espada apoiada ao lado.

O som de passos a aproximar-se deixou-os bastante tensos, mas como eram curtos e ligeiros, a tensão era mais por ansiedade que por medo. Os passos extremamente cuidadosos e um tanto hesitantes, dentro da caverna, pareciam antecipar o encontro entre os personagens, mas todo cuidado era pouco. Um sussurro. Silêncio. Depois outro sussurro. Estava na hora de saírem do esconderijo.

O velho e o menino caminharam cuidadosamente até a sala improvisada. No centro daquela, a silhueta conhecida do homem surgiu contra a abertura da caverna e eles mostraram-se, finalmente, com alegria e entusiasmo, abraçando o visitante, mas este não os pode retornar o entusiasmo e o abraço, pois tinha os braços amarrados às costas e a boca amordaçada.

Atrás dele, um outro homem, bem mais alto, vestido de negro e com cabelos longos e loiros, apareceu com uma espada em punho.

sábado, 19 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 2 - O Guardião)


- Quem é este dragão pardo?

- Ele nasceu das forças do mal e é comandado por um inimigo nosso, que vive muito ao norte, nas terras frias. Seu coração é mais gélido que as neves dos extremos da terra. Além de um animal de muita força, ele é também muito poderoso, perigoso e sabe onde o menino está. É só uma questão de tempo até cá chegar, com o pior dos intuitos. Há uma profecia conhecida que diz que só poderá ser destruído por um guerreiro alimentado com o poder dos sete dragões. Nós sabemos quem este guerreiro é… ele também. O que nós temos que fazer é prepará-lo e evitar o confronto direto, pois pode ser fatal para um dos dois. Se o dragão vencer, será o nosso fim. E ele destruirá tudo e todos que forem contra o seu senhor. Vamos precisar de toda a nossa inteligência em montar uma estratégia e…

O dragão fez uma pequena pausa.

- … e de tempo…, mas este talvez não seja o nosso maior problema.

- O pai… Acredito que ele possa ser um grande empecilho.

- Eu sei. Ele passou maus bocados por causa do acidente com aquela criança. Não vai aceitar ceder assim fácil. Mas temos que falar com ele. Não temos outra alternativa…

- Talvez tenhamos…

O dragão olhou o velho homem e compreendeu, instintivamente, aquela mensagem.

***

- Wow! Isso é sério?

- Mais do que sério!

- Mas eu não serei capaz! Sou pequeno e fraco…

- Por isso nós devemos preparar-te e ensinar-te a lutar… para proteger a ti e a todos…

Os olhos do menino brilharam, mas uma sombra de preocupação seguiu-se á aquela momentânea euforia.

A armadura era, obviamente, grande demais e, para empunhar uma espada verdadeira, ainda era muito cedo.

O velho, então, entregou-lhe um bastão de madeira feito a partir de um pedaço de um tronco de laranjeira. O artefacto era coberto por uma camada lustrosa e apesar de muito suave ao toque, também aparentava ser bastante resistente.

E os ensinamentos começaram… Para evitar maiores constrangimentos, as lições eram dadas muito cedo na madrugada até o nascer do sol. A intenção era evitar serem vistos e o confronto iminente com o pai do aprendiz que, invariavelmente, teria que saber de qualquer jeito... quando o momento fosse mais propício.

O velho mostrava os princípios básicos de combate e de como empunhar uma arma e fazer uso dela, especialmente de maneira defensiva. O dragão ensinava-o a pensar estrategicamente, a procurar os pontos fracos do inimigo e a explorar a velocidade do pensamento. O menino era um excelente pupilo, sempre aberto a absorver os novos conhecimentos e era, também, muito curioso. Apesar do que havia passado, suas pernas e braços eram bastante ágeis e sua mente, extremamente sagaz.

O dragão observava o menino com orgulho, enquanto este aprendia o que lhe era ensinado, com precisão e com a habilidade de um verdadeiro guerreiro.

O velho sabia que o tempo corria contra eles e que, mais cedo ou mais tarde, teriam que revelar, à família do rapaz, o que estava acontecendo e o que viria a acontecer, no futuro. Ele, todavia, evitava revelar toda a verdade, com receio que, se soubessem que o dragão pardo queria a destruição do guardião, para poder reinar sobre toda a terra, iriam duvidar da palavra deles, ou esconder o filho, por isso decidiram que iriam inventar uma desculpa qualquer, se fossem vistos a treinar o rapaz.

Os pais, como seria de esperar, logo descobriram e foram totalmente contra, proibindo aquele tipo de treinamento, veementemente. Bastou alguns dias, porém, para os três arranjarem uma outra forma de se encontrarem, retomando a tarefa, cada vez com mais afinco, sempre que lhes era possível.

Uma madrugada, porém, o menino não apareceu. Pensando tratar-se de um empecilho qualquer com o pai, o velho e o dragão ficaram quietos, sem criar nenhum alarde, aguardando o amanhecer.

Algumas horas passaram, sem que o aprendiz chegasse. O som de passos apressados deixou-os em estado de alerta. Os dois esperaram, para ver o que acontecia. O caçador, pai do menino, vinha a passadas rápidas e com uma mistura de fúria e preocupação estampada no rosto.

- Eu avisei que não queria meu filho envolvido nesta aventura, brincadeira ou o que quer que vocês estejam tramando.

Pegos meio desprevenidos, os dois não disseram nada, já sentindo-se culpados. O homem estava mesmo furioso.

- Onde está o meu filho? Quero saber agora!

Os dois trocaram um olhar suspeito e preocupado e, quando se voltaram para o homem, aquele percebeu que algo estava muito errado, pela expressão grave na face do velho homem.

- Oh, não! Não, não, não!

- Ele não está, nem esteve connosco hoje. E isso é grave; muito grave. Temos que procurá-lo, imediatamente. Ele pode estar em grande perigo…

- E não está preparado para defender-se… ainda… O treino não foi suficiente!

- Isso é outra das artimanhas de vocês, os dois? Mais uma vez ele corre perigo por causa de vocês! Desta vez, não vou perdoá-los…

- Não. Ele está em perigo, porque ainda não está preparado para defender-se. Tomara que não seja o que estamos pensando… Se for, é melhor nós corrermos. Acho que temos que pedir ajuda aos nossos companheiros alados.

O velho, então, contou ao pai do menino toda a verdade sobre a profecia e sobre o dragão pardo e seu plano malévolo, o que aumentou a preocupação do homem… e a deles também.

Estava mais que na hora de trazer os outros seis dragões para perto deles. O menino precisava ser encontrado, antes que fosse tarde demais.

O dragão verde-azulado preparava-se para levantar voo e buscar os companheiros, quando o chão sobre os pés deles estremeceu grandemente, para surpresa de todos. Os homens olharam para o dragão, que olhava para o centro da clareira, com uma expressão ameaçadora.

Um grande animal pardo surgiu e aproximou-se deles, com a boca escancarada, pronto a atacá-los…


sábado, 12 de novembro de 2016

Revisitando Dragões (Parte 1 - Despedidas e Reencontros)


As belas escamas verde-azuladas refulgiram contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da clareira ao pé do laranjal.

O velho homem fica a acompanhar, com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.

O homem sorri, um tanto tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha, confortado.

Atrás de si, um menino, de não mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre suas cabeças.

Um fino fio de fumaça sobe do meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa nostalgia.

Ele havia mudado, com toda a certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua condição de ser humano frágil e vulnerável.

A magia daquele lugar pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo, relaxado.

O velho despediu-se do homem e do menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um fazendeiro normal.

No meio da clareira, onde as cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar, pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.

Quando reinstalou-se, sentiu que sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma, sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.

E veio a noite mais escura do ano.

E ele pôs-se a pensar e sentiu falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar, mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e apanhar um pouco de ar.

Lá fora, uma brisa fresca trazia o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som tranquilo das águas dos regatos.

Estava perdido em suas tantas recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram, imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à água, ele voltou-se e esperou em silêncio.

A noite sem lua, escura como breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.

Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio de nostalgia?

Ele resolveu que deveria voltar para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a vida de continuar.

Saltou da rocha e começou a caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo, sem olhar para trás.

Quando pisou no alpendre, ainda voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.

Nada.

Ele entrou na casa e acendeu uma lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a mão à fruteira e apanhou a grande laranja.

Mais por instinto que por necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu. Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente inocente.

Foi então que ele ouviu um ruído pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a  lutar, como no seu passado… pela própria vida...

Ele olhou para trás e viu, através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele correu para fora.

- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...

O animal piscou, lentamente, seus grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre eles, era…

O velho estendeu a mão e deu a outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele encontro não programado começava naquele momento…

***

- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo custo.

- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…

- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável, embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais poderoso ainda, com o passar do tempo…

O velho olhou o amigo, muito seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.

No meio do laranjal, o dragão verde-azulado dirigia-se ao menino.

- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como “o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.

A mente do velho homem voltou ao presente...

- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?

- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens a armadura?

- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito grande para ele…

O dragão encarou o velho homem e falou, muito gravemente:

- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…

O homem balançou a cabeça, afirmativamente. Os novos desafios e perigos apenas começavam para aqueles personagens cujas vidas estiveram, sempre, tão interligadas entre si.

- Vou buscar a armadura e a espada…


domingo, 30 de outubro de 2016

Birds In Love


- I think I have fallen in love.

- Seriously?

She blushed. To me, she was still that little girl I saw growing up, who used to run fearless through the house and used to sing the lyrics of songs invented by herself, each time in a different way and that left us astonished and giggling, before her early cleverness...

- Very seriously!

- Is he good for you? Does he respect you and make you feel good?

She looked at me thoughtfully, hesitated for a millisecond and answered.

- Yes.

- So I can only support you, of course, my love.

She smiled and hugged me, whispering a 'thank you' to my ear, as if my support would make a difference in how she felt or to what she wanted. It certainly lightened a huge emotional burden with my approval but could not change her feelings.

She kissed my cheek and ran out of the door, to 'dunno-where'...

I watched the way she looked radiant. She was almost floating with such happiness. Before leaving the gate, she still turned around and waved me a funny goodbye with a huge grin on her youthful face. I smiled and waved back at her, noticing finally that she had fully grown and blossomed. Youth is such a wonderful stage of life.

I watched the empty gate after she disappeared in the distance and thought about my own life.

Behind me, the words of a known song playing, seemed to poke my heart with a certain almost intentional cruelty. My memories were always so associated with music and many meaningful songs, I could hardly control my emotions, every time I heard something that had somehow marked my life.

... I wish you, I wish you, I wish you all the best

    I'll miss you, I'll miss you, I'll miss you not the least ... *


***

- Dad?

- Yes, my love...

- Who was the greatest love of your life?

The question caught me off guard. I played with the answer, to gain some time.

- It was Ginger.

She laughed.

- I should have waited for that answer, but I mean it. Ginger was undoubtedly a great love, but I was talking about a person, not the cat.

- Ginger was more than a cat. He was a great companion, my love...

- Dad?

I smiled. I knew she was not going to give up without receiving an acceptable response. Her eyes seemed like two big balls of dark glass. I pretended I did not notice...

- Yes, my love.

- Who was it? I mean it!

- I do not know if there was the 'greatest love' of my life...

- Oh! Really? And mom?

I looked at the serious face of my little girl and I answered truthfully.

- She was truly a great passion and she gave me you, who are my greatest gift of life. It is true that I had many other passions, but to be the greatest love, it cannot be a one-sided thing, is not it?

- Not necessarily. If that made you feel loved; if it was intense; if it made you dream and feel special and somehow a better person... If that brought out the best of you...

- So much wisdom in such a young creature...

She laughed awkwardly, with her cheeks blushing slightly. I recognized that time had transformed that little girl into a young and wise woman and I thanked heaven for that. She was radiant and her happiness made her shine and had some grip on me too.

But she was right. Who else could make us happy, but ourselves, even for a few moments? Is this not the true meaning of love - to make us spring and bloom from the inside out?

I had learned, however, that neither the small nor the great love survives the distance or the lack of reciprocity or even worse, the lies. Sooner or later these things come up to the surface and destroy the good things the feelings used to keep in ourselves. The masks fall off, the truth appear, the time and distance cool down our links and the affections fade to the point where the thread of tenderness finally breaks forever and what was everything turns into only a destroyed illusion and a sad and harsh reality of broken expectations...

Even worse is when that love turns into hatred or contempt or other feeling as bad as these. Instead of being happy for what was good, we feel bad about what no longer exists.
  
How could I tell her that my heart had many very intense passions, but I could never reveal they have ever existed? For all practical purposes, those were just ‘affairs' that never happened. For all practical purposes, they were passions that only mattered to me and no one else... unilaterally. That sad but that true...

- Well, I think this is the greatest love of my life.

- I'm glad for you, my love. I'm sure it can only do you good. It seems like you've seen a blue bird!

- It's green, dad! Green Birdie!

I laughed. She laughed too. That was a little joke we were used to. A 'private joke' only ours.

- My little love, never let people, who do not know your history, interfere in your love life. Your life is only of interest to you and no one else...

- I know, Dad.

- And be careful not to hurt yourself. The heart sees through glasses that reason does not wear.

Even knowing better than anyone that a person in love does not listen to advices like those, as consistent as they may be, I could not help but give them.

I knew that what mattered most was the voice of the heart and the way we live intensely...

"May it be eternal while it lasts," as the poet used to say...

And how would I know if she was right or not in defining that as "the" love of her life, if I was not living what she was? In the end, I just wanted her to be happy.


***

- Are you nervous?

- No! You?

- A little worried.

- I understand. But don’t worry. No one will notice if something goes out of your plans. Everything is part of the process.

She seemed to absorb those words with confidence. Whatever happen would not ruin the brightness of that day. Only the closest people were present and there was no reason for worries. Her simplicity and charisma were enough to make her shine, but she was less aware of that than I was.

- Go there. Now it's just a matter of facing it and go ahead!

She was, so to speak, marking her birthday with a very important and courageous decision.

When she returned, dressed as if for the most memorable occasion of her life, until then, she looked stunning and nervous at the same time. She had sparkles in her eyes that left no doubt about the purpose of that decision.

At her side, the love of her life smiled, fingers entwined in hers, as happy and gorgeous as my little girl.

The two formed an exceptionally smooth and beautiful couple, that was, at the same time, strong and fearless, like two brave amazons.

I smiled and opened my arms and the two girls fell into my fatherly embrace. At the foot of their ears I said quietly:

- You are two warrior goddesses! Be very, very happy!

The two lovers embraced me and kissed my cheeks. They were blessed.

What would come forward from there, were battles for the two to face together...



* (Benjamin Clementine's "The Movies Never Lie")


domingo, 23 de outubro de 2016

Pássaros Azuis


- Acho que estou apaixonada.

- A sério?

Ela corou. Para mim, era ainda a menininha que eu vi crescer, que corria pela casa e que cantava as letras das canções inventadas por ela mesma, cada vez de um modo diferente e que nos deixava atônitos e a dar risadas, diante da esperteza dela…

- Bem sério!

- Ele é bom para ti? Te respeita e faz-te sentir bem?

Ela olhou-me séria, hesitou por um milésimo de segundo e respondeu.

- Sim.

- Então só posso apoiar-te, obviamente, meu amor.

Ela sorriu e me abraçou, sussurrando um ‘obrigada’ ao pé do ouvido, como se o meu apoio fosse fazer alguma diferença no que ela sentia ou queria. Certamente aliviaria uma carga emocional enorme, pela aprovação que ela queria, mas não poderia alterar seus sentimentos.

Ela beijou-me a face e saiu correndo pela porta afora, a caminho de ‘sei-lá-para-onde’… Fiquei a olhar a forma como ela parecia radiante. Quase flutuava, de tanta felicidade. Antes de sair pelo portão, ainda voltou-se e acenou-me um adeus engraçado, com um sorriso enorme estampado na face jovial. Eu sorri e acenei-lhe de volta, dando-me conta que ela havia, definitivamente, crescido e desabrochado. A juventude é mesmo uma fase maravilhosa da vida.

Fiquei a olhar o vazio no portão, depois que ela desapareceu na distância e a pensar na minha própria vida.

Atrás de mim, as palavras de uma canção conhecida a tocar, pareceu cutucar meu coração com uma certa crueldade, quase intencional. Minhas memórias estavam sempre tão associadas à música e às muitas canções significativas, que eu mal conseguia controlar minhas emoções, cada vez que ouvia alguma que havia, de alguma forma, marcado minha vida.

… I wish you, I wish you, I wish you all the best
    I’ll miss you, I’ll miss you, I’ll miss you not the least…*

***
- Pai?

- Diz…

- Quem foi o grande amor da tua vida?

A pergunta pegou-me desprevenido. Brinquei com a resposta, para ganhar algum tempo.

- Foi Ginger.

Ela deu uma gargalhada.

- Eu já devia esperar por esta resposta, mas falo sério. Ginger foi, sem dúvida um grande amor, mas eu falava de uma pessoa, não do gatinho.

- Ginger foi mais que um gatinho. Foi um grande companheiro, meu amor…

- Pai?

Eu sorri. Sabia que ela não ia desistir, sem receber uma resposta aceitável. Seus olhos pareciam duas grandes bolas de vidro escuro. Fingi que não percebi…

- Diz.

- Quem foi? De verdade, mesmo!

- Não sei se houve ‘o grande amor’ da minha vida…

- Oh! Mesmo? E a mãe?

Eu olhei a face séria da minha menina e respondi com sinceridade.

- Ela foi uma grande paixão, é verdade e deu-me a ti, que és o meu maior presente de vida. É certo que tive muitas outras paixões, mas para ser o grande amor, não pode ser uma coisa unilateral, não é mesmo?

- Não necessariamente. Se te fez sentir amado; se foi intenso; se te fez sonhar; se te fez sentir especial e, de alguma forma, uma pessoa melhor… Se soube trazer à tona o melhor de ti...

- Quanta sabedoria em uma criatura tão jovem…

Ela riu, meio sem jeito, com as faces enrubescendo ligeiramente. Eu reconheci que o tempo havia transformado aquela menininha em uma jovem e sábia mulher e agradeci aos céus por aquilo. Ela estava radiante e aquela felicidade fazia-a refulgir e contagiava a mim também.

Mas ela estava certa. Quem, além de nós mesmos, pode-nos fazer felizes, mesmo que por uns breves momentos? Não é este a verdadeiro sentido do amor: brotar e desabrochar de dentro para fora?

Havia aprendido, contudo, que nem os pequenos, nem os grandes amores sobrevivem à distância, ou à falta de reciprocidade, ou à mentira. Mais cedo ou mais tarde estas coisas vêm à tona e destroem o que de bom os sentimentos ainda possuem. As máscaras caem, as verdades aparecem, o tempo e a distância esfriam as ligações e os afetos vão-se desvanecendo, até o ponto em que o fio da ternura parte-se, para sempre e aquilo, que era tudo, passa a ser, apenas, mais uma ilusão destruída e convertida em dura e triste realidade e em uma quebra nas expectativas…

Pior ainda é quando o tal amor transforma-se em ódio ou desprezo, ou outro sentimento tão negativo quanto estes. Ao invés de nos sentirmos felizes pelo que foi, nos sentimos mal pelo que deixou de ser.
 
Como eu ia dizer à ela que meu coração teve muitas paixões muito intensas, mas que eu jamais poderia revelar que alguma vez existiram? Para todos os efeitos, foram ‘affairs’ que nunca aconteceram. Para todos os efeitos, foram paixões que só disseram respeito a mim e a mais ninguém… assim unilateralmente. Sad but true…

- Pois eu acho que este é o grande amor da minha vida.

- Fico feliz por ti, meu amor. Tenho certeza que só pode fazer-te bem. Parece até que viste um passarinho azul!

- É verde, pai! Passarinho verde!

Eu ri. Ela também. Aquela era uma piadinha que nós fazíamos. Uma ‘private joke’ só nossa.

- Meu amorzinho, nunca deixes as pessoas, que não sabem a tua história, interferirem na tua vida amorosa. A vossa vida só interessa a vocês e a mais ninguém…

- Eu sei, pai.

- E tenha cuidado para não te machucar. O coração vê através de óculos que a razão não usa.

Mesmo sabendo melhor que ninguém que uma pessoa apaixonada não ouve conselhos daqueles, por mais coerentes que possam ser, eu não pude furtar-me de dá-los.

Sabia que o que importava, realmente, era ouvir a voz do coração e viver intensamente… “Que seja eterno enquanto dure”, como dizia o poeta…

E como eu poderia saber se ela estava certa ou não, em definir aquele como “o” amor da sua vida, se não estava vivendo o que ela sentia? No fundo eu só queria que ela fosse feliz.

***
- Estás nervoso?

- Não! Tu?

- Um pouco preocupada.

- Eu compreendo. Mas não te preocupes. Ninguém vai notar se alguma coisa sair fora do teu plano. Faz parte do processo.

Ela pareceu absorver aquelas palavras com tranquilidade. O que acontecesse, não ia estragar o brilho daquele dia. Apenas as pessoas mais íntimas estavam presentes e não havia motivos para apreensões. A simplicidade e o carisma dela eram suficientes para fazê-la brilhar, mas ela talvez tivesse menos consciência daquilo, que eu mesmo tinha.

- Vai lá. Agora é encarar e ir em frente!

Ela ia, por assim dizer, marcar o dia de seu aniversário com uma decisão bastante importante e muito corajosa.

Quando ela voltou, vestida como se fosse para a ocasião mais marcante de sua vida, até então, parecia deslumbrante e nervosa, ao mesmo tempo. Tinha um brilho no olhar que não deixava dúvidas sobre o propósito daquela decisão.

Ao seu lado, o amor de sua vida sorria, com os dedos entrelaçados nos dela, tão deslumbrante quanto a minha menina.

As duas formavam um par excepcionalmente suave, belo e, ao mesmo tempo, forte e destemido.

Eu sorri, abri os braços e as duas encaixaram-se no meu abraço. Ao pé dos ouvidos delas, eu disse, baixinho:

- Vocês são duas deusas guerreiras! Sejam muito, muito felizes!

As duas me abraçaram e beijaram-me as faces. Estavam abençoadas.

O que viesse, dali, para frente, eram batalhas para as duas travarem juntas...


*( Benjamin Clementine's "The Movies Never Lie")


domingo, 9 de outubro de 2016

The Secret Files


- There's nothing bad about them... nothing to be ashamed of. They are very good, to tell you the truth.

- But they are not good enough. They’re just studies...

- You are such a hard person. I can’t argue with you to any further extent. You’re too perfectionist…

- I just think I need to practice a lot more... that's all...

- You know it better. But if they are studies, they are better than a lot of what you see around.

- I think it will sound arrogant, if I agree, of course. There is still a long way before I consider myself happy with the results of those...

- I surrender.

- And I have to laugh. What is the point of arguing with someone who gives up so easily?

He laughed. He did it to incite a reaction.

- Open those 'secret files' once. You will be surprised!

- I need to think about it...

- Please, do it. It will be really nice.

The so-called secret files were nude studies in various styles and techniques, which I used to make for fun, but that I did not show to but a few people. Insistence was part of the process in which we have worked together anyway for a time then.

- Not all are butterflies. There are other things around you… around us.... Butterflies are gorgeous, but there is so much more than that... There is no reason to be afraid of anything or even be ashamed of in showing the pictures... There is nothing wrong with them... It’s quite on the contrary!


- I'll do my best...

- As long as you don't stop making them...

And then, after some thinking, I decided to open the secret files. It was not only a matter of courage, but also acceptance on the quality of the studies. I knew they were not as good as I wanted, but in a certain way, with time, I should be able to see or notice a substantial change in my work.

Some of the components of the secret files are shown below.

(The female figure is based on an original by Dusan Djukaric).