segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


terça-feira, 12 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 2)


A canoa virou, por deixá-la virar

Foi por causa da menina que não soube remar.

Se eu fosse peixinho e soubesse nadar,

Tirava um amiguinho do fundo do mar…


As crianças formavam dois círculos, um que corria por fora, com os alunos mais velhos e outro por dentro, com os menores e mais novos. O círculo do meio rompeu-se e eles começaram a dançar em fila, formando uma espiral que girava para dentro, enquanto o círculo de fora os protegia, girando em sentido contrário. 

- Eles não estão preparados para a vida lá fora! Não, com este programa ingénuo. Vão levar um choque quando mudarem de sistema…

- Eles estão preparados para a vida! Ponto final. São crianças especiais.

- Os pais tem que saber que não vai funcionar, sem algumas mudanças essenciais… 

- Esta insistência é por vingança? É por isso?

- Não mistura as coisas… claro que não é…

- Eu não quero estas crianças no teu programa insano! Não estão sendo talhadas para isso. Esqueça. Eu já te disse que não te quero por cá, com tuas ideias malucas! 

- Olhe para eles! Eles não temem nada. O instinto protecionista em relação aos mais novos que eles têm é natural neles! Basta um toquezinho no programa educacional e eles mostram que vale toda a pena investir neles. 

- Eles são crianças. Não são cobaias. Nós queremos o melhor para eles, em termos de criatividade, colaboração mútua e coragem, é claro… mas coragem no sentido mais lato… coragem para enfrentar a vida sem preconceitos e sem temer as dificuldades ou os perigos da vida.

- Exatamente! É mesmo deles que nós precisamos!

- Chega desta conversa. Não há mais discussões. O programa foi aprovado como está e não vai mudar. O conceito original é diferente das tuas intenções. Saia, agora, por favor. Já te havia dito que não te queria por aqui. 

- Isso vai mudar. Podes ter certeza. Esta conversa não está acabada.

- Está, sim. Agora, saia, por favor.

Ao ouvir meu tom de voz, mostrando impaciência e uma certa agressividade, Ginger levantou a cabeça e ficou a observar-nos, alerta para o que acontecia. Ela virou-se e saiu, sem dizer mais nada. Estava claro que uma mulher daquelas não se dava por vencida, com uma simples negativa. 

Eu fiquei ali, de pé e parado, a olhar a não bem-vinda silhueta desaparecer na distância, enquanto a luz do sol, batendo direta contra minha face, quase feria-me os olhos. Senti uma leve pressão contra a perna e curvei-me para acariciar a cabeça do animalzinho, que parecia dizer-me para ficar tranquilo, como se pudesse proteger-me de todos os males. Desejei que assim fosse, para o futuro da nossa escola e para o bem daquelas crianças.

***

Passarás, passarás

Algum dia ficarás

Se não for o da frente 

Há de ser o de trás...

Queres céu ou inferno?


- É tarde demais!

- Não diga isso! Nunca é tarde demais! 

- Eu não sou um otimista e desconfio daquele tipo de pessoas. Sabes bem disso.

- O programa pode estar ameaçado, mas não está perdido. Quem sabe possamos chegar a um consenso, com ambos os lados cedendo um pouco. Tudo é possível…

- Não neste caso. Achas que aquela louca vai ceder em alguma coisa? Ela nem começou ainda… e eu temo pelas nossas crianças. Olhe para elas. Não sabem o perigo que correm. Não temem nada. Não é justo estragar tudo, por causa daquela… 

Engoli em seco e calei-me antes de dizer um imprecativo. Estava dentro das instalações da escola, afinal, e tinha que manter a linha e respeitar os códigos de ética. Estava possesso pela raiva e precisava muito esforço para não perder, completamente, a calma. Mas minha vontade era de usar nomes muito feios ao referir-me àquela mulher.

A diretora quase riu, ao ver-me no limiar de saltar a tampa. Ela conhecia a minha história e não escondia sua crença em que o programa, que eu desenvolvera com tanto esforço e precisa técnica, tinha tudo para ser bem-sucedido, depois de passado por várias fases de desenvolvimento e defesa junto à Secretaria da Educação. O programa havia sido desenvolvido durante minha tese de doutorado e, incentivado pelo orientador, passado de uma simples ideia concebida academicamente, para um programa educacional experimental, que envolvia um novo conceito de ensino para crianças de tenra idade. 

Até aquele momento, pelo menos, havíamos provado que estávamos no caminho certo. Eu, todavia, precisava de mais tempo para colher os frutos do sucesso. Não era em mim que eu pensava, mas no futuro das crianças: os filhos que eu não tive, nem ia ter, mas que estudavam ali, sob a minha orientação e tutela direta. Eram crianças que haviam sido cuidadosamente selecionadas segundo um critério bastante rigoroso e perfeccionista. 

Minha interferência havia sido, desde o início do empreendimento, total e absorvedoramente dedicada. Desde a escolha do sítio onde iríamos construir, a criação das áreas internas e externas, o programa educacional em si, a proximidade com áreas de lazer praticamente particulares e quase não frequentadas, os projetos paralelos… tudo havia sido cuidadosamente acompanhado, para seguir o projeto à risca. Algumas mudanças foram introduzidas durante a construção do estabelecimento, mas foram para melhor, como as árvores à volta do pátio, onde as aulas de verão eram lecionadas.

À luz da minha teoria, crianças com tendências artísticas tendem a ser mais livres de preconceitos e apreciam a beleza, a arte e a estética per si, sem misturar crenças, raça, nem tendências aprendidas. O contacto com animais libera os medos e receios e torna-as mais arrojadas e dispostas, além de elevar o grau de protecionismo, altruísmo e confiança nelas mesmas e nas outras. A criatividade, sendo estimulada naturalmente, eleva os níveis de inteligência emocional e facilita a resolução de problemas, pois a mente não vê barreiras intransponíveis, mas apenas desafios que podem e devem ser ultrapassados. O imediatismo não é incentivado e as ciências exatas caminham junto com a liberdade de expressão, complementando e equilibrando os lados emocional e racional das crianças, de maneira espontânea. 

O programa tinha uma grande dose de ingenuidade, por isso era imprescindível que fosse implantado em crianças de muita tenra idade, quando a personalidade ainda estava em formação. As doses de realidade dura e crua era dada em suas próprias casas e famílias. Não tínhamos alunos internos, nem os afastávamos da vida normal, mas a escola era como uma bolha de proteção ao cotidiano. Gerar cientistas artistas era produzir o melhor do melhor, no melhor ambiente. 

Não era nem justo, nem certo, converter aquelas mentes privilegiadas em soldados de elite e estrategistas, movidos à coragem e ousadia, mas desprovidos da intenção original e da relação espontânea com as mais diversas formas de beleza e arte. Queriam transformar homens e mulheres de verdade em máquinas mortíferas, treinadas por mentes perversas, egoístas e voltadas à causas tão duvidosas. 

Eu jamais iria permitir que fizessem um mal tão grande às “minhas” crianças tão especiais.

***

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes

Para o meu, para o meu amor passar


- Vamos juntar pedrinhas do rio, para fazermos uma calçada?


Uma ocasião programamos um acampamento com as crianças, a acontecer num fim-de-semana de verão, quando era mais propício e menos sujeito às chuvas na região. Minhas preocupações desvaneceram por dias, durante a fase de planeamento, organização, contactos e autorizações dos pais e responsáveis, comunicações com o corpo de bombeiros e polícia local e tudo o que pudéssemos para garantir o sucesso do empreendimento. Para mudar de ares, viajamos até uma região na montanha, num parque florestal. O tempo esteve perfeito e as crianças, que falaram no acampamento por umas semanas, não cabiam em si de excitação. Íamos fazer pesquisa de campo, provar um pouco da vida ao ar livre, longe da escola e pernoitar em tendas, armadas perto de um pequeno riacho, estimulando o espírito de sobrevivência na mata e aventura, como fizeram nossos antepassados. Na viagem, num ônibus alugado, estavam todos muito excitados, mas ao chegarmos perto do local, notei um certo nervosismo e o barulho diminuiu. Estavam apreensivos, mas não conseguiam esconder a curiosidade e a excitação do novo.

A montagem do acampamento foi um sucesso, com todos muito empenhados em ajudar e dividir as tarefas. Logo ficamos cientes que eles esqueceram completamente dos apetrechos eletrónicos modernos e estavam mais interessados em saber como funcionava uma bússola, como orientar-se pela posição do sol e coisas similares. Acredito que, por ser uma coisa nova para eles, meninos e meninas da cidade, estavam todos com pressa de ver como funcionava a montagem das tendas, a organização do lanche e almoço, as atividades de pesca, os banhos numa área escolhida com cuidado, onde o rio formava uma piscina natural, sem corredeiras nem perigos, as excursões de observação dos pássaros e animaizinhos da região, a ‘siesta’ depois do almoço… Tudo fora muito bem recebido e com excitação crescente. Era diferente das idas à praia ou ao parque. Era mais selvagem e livre, por isso mesmo, mais estimulante. Observei como os alunos mais velhos mantinham o instinto protetor aos mais novos e aquilo deixou-me bastante satisfeito. Era natural neles. Um bom sinal.

À noite, sem micro-ondas e apenas com um fogão improvisado, fizemos a refeição à volta da fogueira, em assentos e mesas também improvisadas. Depois, ainda ali, sentados confortavelmente, contamos histórias sobre nossos antepassados e como eles viviam, naturalmente, naquela região, caçando, pescando, plantando, colhendo, construindo suas cabanas, que depois evoluíram para casas sofisticadas. Não demorou muito para os rostos fatigados, mas sorridentes, começarem a mostrar um visível cansaço físico. O toque de recolher foi quase um despertar e as tendas foram imediatamente invadidas e os sacos-camas preenchidos por corpinhos cansados e felizes. 

Quando o sol estava alto, na manhã seguinte, os professores e as auxiliares, que estavam acampados à volta das tendas dos miúdos, levantaram-se e tocaram o toque de despertar. Coisas banais como lavar-se, pentear-se, vestir-se e preparar-se para o pequeno-almoço, viraram uma verdadeira algazarra, mas sem nenhuma resistência. Quem iria pensar que despertar as crianças e preparar a refeição fosse ser tão divertido?

O programa da manhã era simples. Os mais novos iriam ficar mais próximos do acampamento, a brincar na piscina, enquanto os maiores iriam fazer excursão à mata, em grupos pequenos e separados. O objetivo era, durante o almoço, trocarem experiências e contarem o que viram. Como a turma era pequena, não foi difícil arranjar as equipas, que rumaram para cada um dos quatro pontos cardeais principais. 

Dois dos meninos, amigos inseparáveis, que foram para o norte, contaram que viram uma área, no topo da montanha, sendo preparada para virar uma base militar. A imaginação deles era fértil. Perguntados como eles chegaram à aquela conclusão, o menino de óculos disse que viu soldados armados a cuidar da área, facto que não foi confirmado pelo professor-monitor, mas que foi veementemente confirmado pelo amigo inseparável. Aquela não era uma área com interesse militar, pelo que nós soubéssemos. Não fazia sentido. Mesmo assim, a história gerou um grande rebuliço nos alunos, cujas mentes livres de amarras, viajavam em tempo e espaço, construindo teorias e possibilidades. 

Partimos de volta, depois do almoço, no pequeno autocarro alugado. A maioria dormiu a ‘siesta’ durante a viagem. Somente os dois amigos, ainda excitados pelo que disseram haver testemunhado, viram um jipe do exército passar na direção oposta à que íamos. O menino de óculos puxou-me o braço e disse:

- Viu como nós estávamos certos? Aquele é um jipe do exército!

Eu fiquei a olhar o carro desaparecer na distância, um pouco intrigado pelo que acabara de ver e, não só por dar asas à teoria dos dois pequenos amigos, mas por ser obrigado a concordar que algo sério podia estar a passar naquela região…


domingo, 3 de abril de 2016

Cantigas de Roda… (Parte 1)



Que olhos lindos

Que olhos lindos tem a Rosa

Que ainda hoje

Ainda hoje eu reparei

Se eu reparasse,

Se eu reparasse há mais tempo

Eu não amava,

Eu não amava quem amei…



As crianças brincavam de mãos dadas, formando um círculo, que movia-se em sentido horário. Eu observava, de longe, os movimentos, a cantiga, as risadas e a folia imensa e ingénua que elas faziam. A menina Rosa, uma loirinha de cabelos cacheados, tinha as faces afogueadas, tanto por uma certa porção de timidez, quanto pelo calor que fazia, naquela manhã de verão. O pátio, diferentemente do que eu havia idealizado e concebido no projeto original, era rodeado de grandes árvores, cujas amplas e frondosas copas delineavam desenhos abstratos de luz e sombra, no chão coberto com uma espessa camada de areia fina e solta. O propósito, naturalmente, era ser, o mais possível, à prova de machucados nas crianças… à toda prova de crianças, para bem dizer a verdade. Reconheci que o resultado ficou muito melhor que eu imaginara, quando o projetei. Da minha janela, via-se, claramente, as atividades no grande pátio.

As professoras acompanhavam, com olhos atentos, os movimentos de todos, sempre prontas a correr, se necessário fosse, para resolver alguma disputa ou socorrer alguma emergência. Pensei que haviam criado um bom clima naqueles miúdos, que não pareciam carregar nenhum preconceito quanto à brincadeira de roda. Naquela idade era mais fácil controlarem ou contornarem os preconceitos que vão-se formando com o tempo, por influência da sociedade ou das famílias. Aquela brincadeira de meninos e meninas, sem tempo ou possibilidade de levantar suspeições machistas ou feministas agradava-me de todo. 

Eu sentia orgulho daquilo que havíamos conseguido na escola. Não éramos nada especiais, apenas tentávamos ser o mais livres de preconceitos que pudéssemos, para criar crianças saudáveis e ilimitadas em criatividade. O colégio seguia uma linha experimental de educação, onde a liberdade de expressão era estimulada ao limite. 

As aulas, no verão e com bom tempo, eram dadas ao ar livre, em baixo das árvores, assim como as refeições, que eram partilhadas igualmente e com a participação de todos, tanto na organização quanto na distribuição e posterior limpeza do local. A ideia havia sido inspirada em um modelo japonês e até então não havíamos tido quaisquer problemas ou restrições dos pais ou das crianças. Nenhuma forma de expressão era retida, desde que fosse para criação e o progresso de uma mentalidade avançada em termos sociais e artísticos. O respeito e aceitação que as crianças sentiam pelos colegas e pelos mestres era destacável e evidente. 


Salada, saladinha bem temperadinha

Com sal, pimenta

Vinagre e etc.


No terreno atrás do prédio principal da escola tínhamos algumas árvores frutíferas plantadas. Além das nossas atividades normais, estimulávamos o contato com a natureza, através do cultivo de uma pequena horta, que servia de fornecedor para parte das refeições das crianças, com alguns legumes e vegetais para saladas, a maioria de fácil lavoura e que cobriam uma boa parte dos custos que poderiam haver, se não as tivéssemos. Ainda criávamos algumas galinhas, que nos forneciam ovos e das quais também aproveitávamos o estrume, para adubar a terra. 

Também estimulávamos o contato com os animais, especialmente os de estimação, que promoviam um clima de carinho, respeito e segurança, livrando as crianças de medos infundados e dando-lhes maior confiança. Em conjunto com uma entidade que recolhia animais de rua e uma clínica veterinária, acolhíamos os animaizinhos e promovíamos a reintegração dos mesmos em lares permanentes. Os animais adultos eram mais difíceis de ser recolocados, mas aquilo não nos constituía problema, pois a escola mantinha-os abrigados e com boa saúde. Eles acabavam por fazer parte do sistema e da educação das crianças. 

Um deles, Ginger, um gato ruivo de idade avançada, que estava sempre por perto, como se vigiasse e assegurasse que tudo estivesse bem no ambiente, vivia connosco desde sempre. As crianças aprenderam a lidar com ele e com seu comportamento, observando e interpretando, com acuidade, os sinais que enviava. Ginger era sociável e calmo, sendo respeitado e acarinhado como parte da classe, que ele tomava como sua propriedade e território. 

Eu estava contente e satisfeito com o sucesso que vínhamos conseguindo com aquele grupo de crianças. Éramos vistos como projeto piloto de escola e de sistema de educação. Apesar de não estarmos localizados em uma área essencialmente urbana, sobretudo pela necessidade de espaço na propriedade, para nossos projetos paralelos, tínhamos alunos de várias localidades da região, com idades entre 3 e 8 anos. 

Fora da escola ainda fazíamos excursões programadas às galerias de arte e museus, sempre que haviam exposições que valessem a pena e, ainda, à Biblioteca Pública Municipal. 

Em época próxima do verão, com bom tempo, levávamos os pequenos à uma praia que havia muito próxima e que era demarcada por rochedos em ambos os lados. Era uma área muito particular e por ter os limites muito bem delineados, era-nos fácil controlar os movimentos de todos. Nestas curtas excursões, era permitido levar os animaizinhos para brincar com as crianças. Ginger era um passageiro frequente e estava sempre por perto das crianças, que o respeitavam e traziam-lhe brinquedos e comida. O atento felino recebia de bom grado aqueles presentes e participava, como podia, dos folguedos.


Caranguejo não é peixe, 

Caranguejo peixe é; 

Caranguejo só é peixe 

Na enchente da maré. 

Ora, palma, palma, palma 

Ora, pé, pé, pé 

Ora, roda, roda, roda, 

Caranguejo peixe é…


Eu estava sentado na areia a observar o grupo de miúdos, que brincava de roda e divertia-se a jogar-se na areia fofa e branca, quando a cantiga terminava. As gargalhadas soltas e espontâneas faziam-me rir, satisfeito, do que havia conquistado com eles. 

Um pequeno caranguejo-branco-da-areia saiu de uma toca e veio na direção de um dos menores, que ficou a olhar o bichinho mover-se, naquele caminhar engraçado. Os olhos estirados para fora do corpo movimentavam-se com atenção e com curiosidade menor que a daquelas crianças. Ginger levantou-se e veio para a beira deles. Se foi por curiosidade ou por instinto protetor, eu não consegui distinguir, mas fiquei impressionado pela forma com que ele parecia mostrar-se presente e disposto. Era mesmo uma figura de suporte à segurança dos nossos alunos. O caranguejo levantou as pinças, como a defender-se do gato, que deu um passo atrás, depois levantou a pata e deu um toque no bichinho, que recuou e voltou a esconder-se na toca de onde havia saído. Ginger ainda foi até a beira do estreito buraco, para certificar-se que o crustáceo não ia mais sair e ali manteve atento plantão por um bom tempo. 

As crianças riram-se e aplaudiram o salvador, que se sentiu o verdadeiro dono da praia. 


- Ele é esperto!

- Pois é!


Eu voltei-me para conversar com quem eu pensei ser uma das professoras ou uma das auxiliares, mas, ao virar-me, fui pego de surpresa. Não era nem uma nem outra. Eu pensei, quase em alta voz:


- Mas o que esta mulher está fazendo aqui?


Minha cabeça deu uma reviravolta. Não podia ser…