domingo, 28 de julho de 2013

O Grande Discurso


- Meus estimadíssimos amigos… Ah! Como eu gosto de chamá-los de amigos. Quase poderia chamá-los de meus queridos filhos… de tanto que, agora, vos admiro.

A voz soou poderosa, em cadeia nacional de televisão, cobrindo todos os possíveis canais, com uma precisão invasiva de dar inveja a qualquer hacker. O foco da imagem foi-se ajustando, mostrando a estranha silhueta da figura em primeiro plano, enquanto o fundo ia desfocando de uma série de barbáries, filmadas em tempo real e reportadas ao longo das eras. E continuou:

- Eu tenho que reconhecer haver feito um belo trabalho convosco. Nunca pensei que uma raça tão limitada, como a vossa, fosse superar quaisquer expectativas que eu pudesse ter. Vós conseguistes ultrapassar toda uma carga de maldades e perversões que eu sequer pude congeminar. E posso garantir que estais em verdadeira e rápida evolução… de iniquidade… Não vos amo, porque não conheço este sentimento… mas vós sois tão odiosos, que me comovem…

Sem pigarrear, nem titubear, a voz procedia naturalmente, como se o discurso tivesse há muito sido preparado, para ser corrente e fluido, durante a transmissão.

- O Altíssimo vos presenteou com o livre arbítrio, com toda boa vontade que lhe é peculiar. Uma pena, para Ele, que a prenda não vos serviu. Eu dei-lhes, em contraponto, a semente da maldade. Não consegui prever, porém, que ela fosse encontrar terreno tão fértil em vós… Se não fosse uma grande blasfémia, eu até diria: Aleluia!!!

Fez um muxoxo, como se a palavra pronunciada lhe queimasse a língua e lábios, mas terminou com um movimento de canto de boca, que mostrou tratar-se apenas de uma ironia, propositadamente colocada, para ter um efeito mais dramático.

- Realmente, eu fui parvo a ponto de achar que era o próprio Mal. (Talvez até já tenha sido… há muito tempo atrás). Tenho muita vergonha de haver-me deixado ultrapassar por uma raça tão ínfima quanto a vossa. Vós conseguistes inventar tantas asneiras, tantas regras que conseguistes quebrar, tantos mandamentos de boa conduta - que fazeis questão de não seguir e que impingem dor e culpa aos vossos semelhantes -, tantos pecados capitais - que fazeis questão de superar com as mais requintadas das maldades -, que chegais a envergonhar até o mais desalmado dos demónios.

Vós rides de vossos semelhantes, daqueles que diferem de vossos padrões – tão perfeitos, esteticamente, que não os conseguis alcançar. E quando vossos corpos são moldados com muito exercício físico, falta-lhes um mínimo de bom senso… ou cérebro, por assim dizer.

Havia um peso silencioso no ar. O mundo havia parado para ouvir o discurso do Diabo. E ele parecia bastante coerente no que dizia. Quanta crueldade existia na verdade, jogada assim, na cara da Humanidade…

- Vós criastes os vossos deuses para, tão-somente, ignorá-los. Engendrastes vossas religiões, vossos novos cultos com os “manuais de procedimento” e discursos cheios de pompa, voracidade e entusiasmo, com palavras vazias de conteúdo e o intuito único de explorar, à vantagem, os pobres e os ignorantes – tão facilmente manipuláveis… E como o fazeis tão perfeitamente bem… Quanta inspiração maléfica tendes! Que pantomima exemplar! Tirais dos pobres para dares aos ricos! Que tão bem feita maldade…

Perdestes toda a fé e a capacidade de sentir remorsos…Nem no Diabo acreditais mais...

Por vaidade - (esse pecado merecia ser escrito com letra maiúscula!) e ganância - (esse também!) haveis cometido tamanhos desvarios e tantas inexplicáveis loucuras… que faltam-me palavras para vos enaltecer. Aliás, criar sete pecados capitais foi uma ideia de génio! Eu devia ter pensado nisso, antes que a igreja os houvesse publicado…

 Sabia que havia tocado num ponto crucial, mas também sabia que o mundo estava perdido. O discurso era enaltecedor - não um arrependimento, nem uma promessa de mudança…

- Vossos líderes - tanto políticos quanto religiosos - tem a capacidade de reverter qualquer posição tomada e assumida em completa vantagem pessoal. Vossos governantes e magnatas querem sempre mais e não medem esforços para deter toda a riqueza e poder possível, a qualquer custo. Que óptimo! Haveis acumulado não somente opulência, mas também desumanidade e indiferença… e orais para ter mais.

Orar? Para ter mais? Para ter mais dinheiro??? Mais riquezas???

O Grande Maligno deu uma gargalhada.

- Falais de pobreza, promoveis o castigo aos ímpios e pecadores e, no fim, sentais em tronos de ouro, com vossos dedos ornados com anéis de grande valor e ostentação… Ora, que grande atrevimento! Que genialidade maléfica!

Vós mereceis que eu vos tire o chapéu, ou até mesmo os meus cornos, em reconhecimento à vossa tão depravada imaginação!!!

A humanidade está, realmente, condenada, por vosso imensamente estimado livre arbítrio...

Graças a Deus! ...Oops! Perdão…

Ele deu uma risadinha e esperou, um segundo interminável.

As plateias, reunidas à volta de enormes telas em Times Square, Tóquio, Rio de Janeiro, Londres, Paris e Sydney, entre outros grandes centros de concentração, ficou em silêncio, por mais um instante. O diabo tinha um discurso bastante congruente. Parecia um grande político, fazendo um retrato dos seus mais desejados eleitores...

Alguém perguntou em alta voz se tratava-se de uma campanha política…

O diabo sorriu para si mesmo. Que grande ideia acabara de nascer!!!


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ginger


A velha mesa redonda havia sido encerada, ficando impecavelmente limpa e luzente. A empregada fizera um bom trabalho.

O velho sentou-se a ler, concentrado, o diário matutino. De repente, um furacão arruivado passou com a velocidade da luz e arrebatou-lhe o jornal das mãos. Um estranho estrondo seguiu-se àquela confusão momentânea.

Ele olhou à volta e logo compreendeu o que acontecera. O gato pulara sobre a mesa, para cumprimentá-lo, como de costume, sem saber que aquela estava, além de polida, tremendamente escorregadia. Ainda tentou voltar atrás, mas as almofadinhas e os pelos em suas patas não o ajudaram… Ao contrário, tornaram o deslize mais fácil. O gato perdeu o controlo, tentou agarrar-se ao que havia pelo caminho, levando consigo as folhas do jornal, passou directo até a borda da mesa e caiu desajeitadamente.

Do chão, ainda meio agachado, com os olhos arregalados e uma expressão aparvalhada, ele olhava o velho, sem perceber muito bem o que acabara de acontecer. O jornal, totalmente desfolhado e meio destruído pelas unhas afiadas, jazia ao seu lado, testemunhando a confusão acontecida há poucos segundos.

O velho riu alto e acarinhou a cabeça e o dorso do animalzinho, para acalmá-lo. Ele parecia bem, apesar de ainda assustado.

O homem, então, pensou na relação – especial e de amor incondicional - que tinham. Nunca havia imaginado que um mero gato de rua, gorducho e de tamanho além do normal, traria tanta diferença em sua vida, desde que fora adoptado.

Ginger nascera em África e sempre fora livre como o vento. No mais comum dos dias, vivia no jardim a caçar insectos e pequenos pássaros, subir nas árvores e nos telhados, ou simplesmente a dormir em baixo dos arbustos.

Brincalhão, inteligente, trapalhão, carinhoso, manipulador e muito esperto - quando queria algo - o felino sabia fazer-se comunicar, de uma forma que era clara como água, para o velho.

O nome dado referia-se à bela cor ruiva de sua pelagem. Mais de treze anos haviam-se passado, desde o dia em que a falecida esposa o trouxera para casa. Quando ela partiu, deixou-os a trazer consolo, cumplicidade e companhia um ao outro.

Às vezes, ao chegar à casa, uma tristeza abatia-o e ele sentia uma vontade enorme de chorar. Então, jogava-se no sofá, exausto e consternado. O gato deitava-se sobre seu peito, olhava-o nos olhos e ficava ali, presente, enquanto o velho desabava em lágrimas...

O animalzinho era sempre tratado com cuidado, carinho e, sobretudo, com extremo amor.

Apesar de saudável, porém, o bichano já era um sénior e o homem sabia que a expectativa de vida começava a aproximar-se do limite. As variáveis podiam ser muitas e, como tudo na vida, podiam alterar os prazos.

O homem tinha ciência que ele poderia faltar-lhe, um dia qualquer, num futuro bem próximo. Sabia também que ia sofrer. Sabia ainda que o vazio, tanto na casa, quanto em sua vida, ia ser bem maior que muitos podiam suportar, mas ele tinha que ser forte.

Não ia ser fácil viver sem o seu grande companheiro, depois de tanto tempo a conviverem juntos. Mas não podia deixar de amar o animalzinho dedicada e intensamente, nem de dar-lhe, cada vez mais, o máximo de atenção que exigia. Não temia, de jeito algum, sofrer a perda, nem devia evitar a dor.

O gato era uma grande parte do que ele era. Tinha o direito a ter uma vida mais curta, sim, porque - diferentemente do seu humano – ele já tinha a sua missão praticamente cumprida: a de fazer do velho um homem melhor.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Um Vazio...


Pela janela, eu olhava a faixa escura, além das luzes da cidade. Um desconfortável e negro vazio esmagava-me a alma, sem piedade alguma, pintando minhas recordações com tons sombrios. O som da campainha a tocar trouxe-me, subitamente, de volta à realidade.

Abri porta e convidei-o entrar. Com um sorriso maroto e atraente, puxou-me para si. “Abraçou-me, como se abraça o tempo, a vida num momento, em gestos nunca iguais”*...

Depois disse-me ao pé do ouvido, que sentia saudades minhas e fez-me navegar naquela onda de carinho. Suas mãos tornaram-se suaves instrumentos de deleite, ao tocar minha pele, meus cabelos, minha boca… Ele experimentou o sabor do meu corpo, minha saliva, meu suor… fazendo-me gemer, como se sentisse alguma dor… tão próxima do prazer, que confundia-me os sentidos.

E olhou-me como se visse através de mim… e consumiu-me, como se faminto estivesse… e bebeu-me, com a sede de um andarilho no meio do deserto… e sufocou-me, com seu beijo voraz, um grito incontrolado, como se quisesse alimentar-se do meu gozo…

Se pudesse ler-me os pensamentos, perceberia que nos carinhos dele eu ganho asas… poderosas e imensas. E sinto que “uma asa voa a cada beijo”* seu e que ele dá-me aquilo que eu nunca pensei ansiar: a loucura de voar e ganhar outros céus…

E quando, depois de nos rendermos ao desvario da entrega, o calor de nossos corpos arrefece e ficamos abraçados, quietinhos, a aproveitar o doce remanso da paixão, ele fala de suas incertezas e inseguranças. E diz-me que tem receio de pensar que nossa relação não seja o que eu espero, nem o que ele pode oferecer-me. E, às vezes, até chora… um choro angustiado e quase silencioso…

Eu, porém, sinto-me em segurança, num conforto preenchido por uma paz, que bem pode ser falsa, mas que não importa, realmente, contanto que esteja ali, com ele, pelo menos naqueles intensos momentos em que o sinto só meu.

Às vezes apetece-me também chorar, no abrigo de seus fortes braços, sentindo o calor de seus lábios a roçar-me o pescoço e arrepiar-me a pele, numa impressão controversa de frio e quente, que o diverte e o faz rir-se de mim, fazendo-me enrubescer com falso pudor… mas, sentindo-me, ao mesmo tempo, mais que especial.

Ele, então, recomeça a brincadeira de tocar-me o corpo, com a delicadeza de suas mãos grandes e mornas, fazendo-me desabrochar com seu contacto, como se das cinzas revivesse e a descobrir-me sensual, como nunca dantes pensara ser...

Uma explosão vermelha faz-me imaginar que o mundo lá fora parou de girar… distante de nós, numa outra galáxia, talvez… até que o despertador do telemóvel, insensível e cruel, toca outra vez e ele levanta-se da cama quente - em um silêncio, que não sei, ao certo, compreender – veste-se e sai, por fim, (...),”levando-me o perfume de tantas noites mais”.*

Eu, então, encolho-me com as cobertas entre as pernas, como se fosse uma flor a murchar ao frio e ao vento e volto a sentir aquele imenso vazio negro a dilacerar-me por dentro, com seu frio e afiado punhal, que vai cortando, lentamente, todas as minhas alegrias e esperanças.

Vejo-o a partir novamente, após a breve despedida… e penso nele a chegar a casa e abraçar a fiel esposa…


(* Extraído de Pedro Abrunhosa: Eu não sei quem te perdeu)



segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Carta


Assim que entrei, os meus olhos foram atraídos pela folha de papel. A carta, pousada em cima da mesa vazia, estava, estranhamente, assinada por ela.

Não se tratava de uma despedida. Era mais um recado: simples, breve e direto. Anunciava, apenas, o fim… quase impessoal, como uma lista de compras ou um comunicado de que ia chegar mais tarde do trabalho.

Senti um vazio…um enorme vazio a abraçar-me a alma, a pesar-me nos ombros e um cruel e triste silêncio a impregnar a casa deserta.

Mas não era aquela sensação que incomodava. Eu já sentira muito mais vazio, estando a seu lado, dividindo a cama, sem compartilhar os sonhos, sem sentir prazer no sexo automático - que já nem frequente era – e que só me fazia sentir vontade de lá chegar, para sair logo, tomar um banho, voltar a deitar-me e dormir.

Não era tampouco a carta, assim secamente escrita, ainda pousada sobre a mesa, a anunciar a partida – sem volta - sem considerar o que alguma vez sentimos, ou mesmo o que fizemos um pelo outro, que me inquietava.

Já não havia nenhuma emoção desnecessária, nem tampouco explicações, no teor da mensagem … pois estas já não faziam, mesmo, diferença alguma. Já não havia nenhuma necessidade de demonstrar ódio, nem amor, nem piedade, nem nada… A nossa história havia-se simplificado nas estéreis palavras escritas naquela folha de papel.

Pensei no tempo que havíamos perdido, sem que, por comodismo, tomássemos a corajosa-covarde atitude que ela tomara sozinha e na minha ausência. Talvez evitasse, assim, a obrigação de olhar-me nos olhos e hesitar...

Aquele era apenas um fim. Daqueles que não deixam ódio, nem mágoa, nem mesmo qualquer amizade. Daqueles que fazem, no futuro, questionarmo-nos as razões de havermos deixado a relação chegar ao ponto de a separação não fazer mossa alguma em nossas vidas.

O fim, sabe-se, nunca advém do nada. Vem sempre como consequência de muitos fins… de muitos erros e de muitos desencontros... de tantos pequenos e incómodos gestos que, então, somam-se, como gotas d’água de intolerância, ao copo já totalmente cheio.

Não era nada daquilo que, naquele momento - a olhar a folha de papel, então em minha mão e a pensar numa parte de minha vida praticamente desperdiçada - me incomodava o espírito.

O que me incomodava, na realidade, era ter sido ela - e não eu - a ter tomado aquela decisão. A bravura de ter tomado a dianteira e resolver por um termo à relação, deveria ter-me acontecido há muito tempo atrás, antes que os sentimentos - tanto os pequenos, quanto os grandes; tanto os bons, quanto os maus - houvessem partido, definitivamente, sem deixar qualquer vestígio em nossas emoções…

Antes mesmo que eu olhasse aquela assinatura no papel e a visse como de uma verdadeira e completa desconhecida…