sábado, 31 de outubro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 1

Correria pelos corredores da Casa de Descanso… As enfermeiras, desesperadas, batem à porta, insistentemente, com receio que, desta vez, alguma coisa séria tenha acontecido de verdade.

A janela está trancada, com as pesadas cortinas completamente fechadas, de modo que não se pode ver o que acontece lá dentro. Parece que tudo está às escuras. Nem o gato mia, apesar das batidas insistentes.

As enfermeiras ganham uma trégua momentânea… A directora fora chamada. Do meio da sala principal, ela exige respostas.

Há três dias que não se sabe o que acontece no quarto. Há três dias que o homem não sai para fora dos aposentos. Seu velho e companheiro gato está preso lá dentro com ele e nenhum som se consegue ouvir, vindo do pequeno apartamento, provido somente de uma saleta, com uma poltrona e uma escrivaninha à janela, um quartinho com cama e mesinha de cabeceira e um pequeno banheiro com chuveiro. Nada ali é luxuoso, mas confortável o suficiente para uma pessoa que já vive sozinha a sua vida pacata e, quiçá, repleta de recordações.

A directora pergunta como as enfermeiras deixaram de informar o acontecido antes, mas aparentemente ninguém se deu conta que o velho não aparecera às refeições, por tanto tempo. Estas eram religiosamente servidas a cada três horas – duravam cerca de uma hora, cada - e ninguém ousava se atrasar, pois a rotina da cozinha e copa não era quebrada por nada, naquela casa. Quem não estivesse à mesa, tinha que esperar pela próxima ocasião. As enfermeiras não costumavam forçar a presença dos residentes a estas reuniões, pois muitos deles não eram habituados a mais que três refeições por dia. Pular uma ou outra, já era rotina aceita, pois, entre as principais, sempre era servido café e chá com pãezinhos, biscoitos ou bolinhos, sempre acompanhados de geléias, margarina e manteiga, queijo magro e, vez ou outra, algum presunto de frango também.

As moças tinham ordens para manter os alimentos com colesterol baixo sempre à disposição, mas deviam evitar os mais gordurosos – estes, veementemente proibidos pela directora.

Uma das enfermeiras explica que, como a chuva daqueles dias os impedia de ir ao pátio jogar ou tomar sol, as idas e vindas à sala de TV e jogos não eram cronometradas, nem controladas. Com tantos outros afazeres e tantos outros velhinhos para cuidar, elas não notaram a falta…

…Ou notaram, mas não acharam que fosse algo grave ou digno de nota. O velho não é uma pessoa fácil. Muitas vezes era mais um incómodo do que uma simpatia. As enfermeiras o evitam e, na maioria das vezes, os outros moradores da casa também, especialmente quando ele resolve que é tempo de se isolar. Pelo jeito, agora era uma destas ocasiões.

Sabia-se, porém, que o homem não havia saído, pois o portão era vigiado 24 horas por dia e não havia tido nenhuma saída registrada nestes últimos dias.

Mesmo assim, a directora está apreensiva. Uma das enfermeiras mais antigas da casa, a enfermeira-chefe, já acostumada com estas viradas de humor do velho, não se mostrava tão perturbada quanto as outras, mas sabia que ia ser responsabilizada pela negligência. O olhar da directora, entre preocupada e furiosa, cruza com o seu e ela percebe que vai ser atacada.

Sem se colocar na defensiva, a enfermeira se aproxima e se prepara para ouvir o sermão. O velho não aparecia às refeições já há algum tempo e ela sabia que esta, provavelmente, seria a primeira interpelação da directora.


- Água! Água! – grita uma voz feminina, vinda do corredor.


Os passos apressados da mulher ecoam pelo corredor e paredes. Todos olham para aquela direcção, enquanto a enfermeira-chefe solta um contido suspiro de alívio. A directora se vira e corre ao encontro da outra, esquecendo, momentaneamente da mulher que se encontrava à sua frente, segundos atrás. As outras seguem a austera administradora da casa, com a mesma pressa e um misto de curiosidade e apreensão.

Os homens se olham, dão de ombros e voltam para a sala de TV. Ia começar o jogo de futebol e eles queriam assistir…

- Água….ouvi o som de água. Parece ser o chuveiro! – disse, por fim, a esbaforida mulher, que aparece no fim do corredor e que logo percebe que já deveria estar indo na direcção contrária, pois as outras a atropelam na direcção do quarto do velho.

A mulher gira sobre si mesma, perde o equilíbrio, mas nem cai, pois uma outra engancha-se ao seu braço e a arrasta de volta pelo corredor adentro. A gritaria recomeça. Aquele mulherio todo falando ao mesmo tempo, transformam a casa de descanso num pandemónio. Ao chegarem em frente à porta trancada há três dias, a directora levanta a mão e pede silêncio. Como por mágica, todas obedecem e se calam.

- Ouçam! – disse a mulher, com autoridade.


O som meio abafado do miado do gato é ouvido pelas mulheres. Não se ouve, porém, o som de água a escorrer.

A directora suspira. Ela levanta a cabeça, estufa o peito e bate à porta. As outras percebem que ela tenta manter a calma, mas que isso é um esforço muito grande para aquela mulher, tão acostumada aos insólitos acontecimentos na casa de descanso.

Lá fora a chuva parece ter, finalmente estiado. Uma leve garoa ainda cai, insistente, hora sim, hora não, mas o tempo já apresentava melhora, depois de quase duas semanas ininterruptas de chuva e tédio, na pacata cidadezinha e na grande casa de longos corredores, cheios de diminutos apartamentos individuais, como num pequeno hotel.

A enfermeira-chefe olha, distraída, para a janela, através da qual vê uma fina nuvem de neblina cobrir os montes avistados não muito longe do lado leste da casa. Os sons das batidas da directora, à espessa porta de madeira maciça, vão se distanciando, como se ela já não fizesse parte daquele quadro bizarro. Ela se afasta do grupo e olha para fora, na direcção das montanhazinhas quase apagadas pelos tufos brancos de névoa, como se a formar uma delicada aquarela em branco e verde pálido, com uns leves toques de sépia, aqui e acolá.

De repente, com um leve click, mas sem pressa ou indelicadeza, a porta do quarto abre.

A directora ainda estava com a mão levantada, como se fosse bater novamente, parada em frente a um homem semi-calvo, com os ralos cabelos cuidadosamente penteados para trás, vestido com uma camisa branca de punhos abotoados, uma calça cinzenta e confortáveis sapatos, recentemente retocados de graxa preta, à moda antiga. Aparentava uns 70 anos, mas podia-se enganar facilmente pela cor dos cabelos, que ainda mantinham um pouco do castanho claro natural, com as têmporas rajadas de fios brancos. À mão do homem, a trela vermelha terminava em volta do peito e do pescoço do gato malhado de amarelo e ocre, com o peito e as patas em branco, como se calçasse meias três quartos brancas. O velho usava um par de óculos escuros, não condizentes com sua idade, mas parecia altivo e alheio ao tumulto do lado de fora do quarto.

As mulheres olhavam boquiabertas para a tranquilidade ostentada pelo homem e para o comportamento altivo do felino atrelado ao seu lado. O homem as olha sem interesse e dá um passo na direcção da porta de saída, corredor afora, com o gato perceptivelmente atento a cada movimento seu.

- Bom dia, senhoras. Finalmente um lindo dia para um passeio, não? Vamos, Ginger. Vamos passear no pátio.

O gato grunhe e segue o velho com o mesmo passo, o rabo levantado e o caminhar tranquilo e altivo de um felino acostumado ao humano ao seu lado. Parecia que eles faziam parte de uma estudada peça de teatro, da qual os outros também participavam como elenco, mas que haviam sido tomados de surpresa, pelo improviso da situação acontecendo ali à frente deles.

A directora franze o cenho e toma um ar responsável e austero, preparando-se para dizer umas boas verdades ao homem que a deixara exasperada minutos atrás.

- O senhor deve pensar que tem um privilégio maior que as outras pessoas aqui dentro, disse a mulher. Não se faça de desentendido e me dê atenção! A mulher começava a perder a paciência.

O homem não se virou, nem parou, apenas assobiou uma velha canção que conhecia e que havia estado em sua memória, o tempo todo em que esteve ao chuveiro, nos minutos que antecederam aquela situação de anti-clímax, que agora pairava no corredor cheio de pessoas – a maioria ainda sem entender direito o que acontecera - da casa de descanso. Não demorou muito para que a balbúrdia recomeçasse, às costas do velho, para desespero da directora, cuja voz já não se ouvia no meio do burburinho das outras.

A enfermeira-chefe, quase alheia àquela agitação toda, olha, agora, de volta para dentro do edifício e esconde um sorrisinho de alívio, mesmo sabendo que a directora não vai lhe dar trégua, assim que a confusão acabar.

A dois passos da janela, a porta entreaberta do quarto revela o jeito metódico do velho viver. A cama está arrumada, com as cobertas esticadas, mas não a ponto de parecer intocada. Mais adiante, as roupas sujas repousam dentro de um cesto de vime, à entrada do banheiro, onde está também a caixa de areia do gato, limpa dos vestígios dos três dias de clausura dos dois. Alguns papéis empilhados em cima de uma pequena escrivaninha, com alguns lápis e pincéis dentro de um velho frasco de café solúvel, revelam que o velho tem seu próprio mundo e hobby. Não há um cesto de dormir do gato, mas a colcha da cama esconde dois travesseiros, lado a lado. A enfermeira-chefe conclui que não há necessidade de uma cesta de gato naquele aposento. A um canto, perto do pequeno guarda-roupa, um par de chinelos de dedo e um de ténis esperam a sua vez de serem usados novamente. Do lado oposto da cama, uma tigela de comida semi-consumida e outra com água limpa.

A mulher entra, abre as janelas, sem escancará-las, para arejar um pouco o ambiente e sai, fechando a porta atrás de si. Ela avista o velho a sair pela porta que dá para o pátio, com o gato ao seu lado e um batalhão de “aves palradoras” atrás do homem, que parece alheio a tudo, excepto ao gato que o acompanha. Atrás do grupo, vai a directora, com seus passos firmes, no alto do toc-toc de seus saltos de cinco centímetros. Ela diminui os passos, como se lembrando de algo, pára e gira sobre os calcanhares, a olhar a enfermeira-chefe que vem vindo pelo corredor, atrás de si.

- É agora! - pensa a outra.

domingo, 25 de outubro de 2009

Todos os sentidos

Eu ando pelas ruas,
Com os sentidos
- Todos –
Em alerta,
Percebendo os detalhes
Que vão passando
Pelos meus olhos,
Ouvindo os sons
De todas as fontes,
Aspirando os perfumes
De todas as eras,
Sentindo as águas
De todas as chuvas …
Eu ando pela vida,
Ouvindo as músicas
De todas as origens,
Provando os sabores
De todas as culturas,
Sentindo, na pele,
Os prazeres
De todos os amores,
E, no coração,
As emoções
De todas as paixões…
Eu ando
- Solto –
Pelo mundo,
Em terras
Que não são minhas,
Com gentes
De todas as raças,
Bebendo,
Em todas as fontes,
A sabedoria
Que me falta,
Para navegar
Os mares
De todos os oceanos.
Eu ando pelas noites,
Me cobrindo
Com o manto
De todas as estrelas,
Me guiando pela luz
De todos os luares,
Sonhando os devaneios
De todos os anseios,
Enquanto os dias
Não rasgam
A escuridão,
Com sua luz
Sorridente.
Eu ando pelos dias,
Sob o brilho
De todos os sóis,
Em campos de todas as flores,
Sentindo o perfume
De todas as essências,
Nos vapores
De todas as manhãs,
Enquanto os ventos
Espalham as sementes
De todas as plantas,
Nos jardins
De todos os Édens.
Eu ando entre os rostos,
A procurar a luz
De todos os olhares,
A vibrar
Na imensidão
Dos ruídos
De todas as vertentes,
Buscando respostas
Nas vozes
De todos os ventos,
Enquanto observo os detalhes
Despercebidos
A todas as preocupações
Quotidianas,
Que caminham
Ensimesmadas,
Entre o peso
De todas as responsabilidades,
Sem perceber
Que a beleza
Sente a falta
- Constante –
De observadores
Generosos…

Parceria (Para Natasha)

Uma janela
Que se abre
Para o mundo
E uma porta
Que se abre
Para a vida;
Leve como a semente
De dente de leão,
Solta no ar do verão
E forte como o aço,
Que sustenta as estruturas;
Suave como uma brisa
E vigoroso como um furacão;
É trovão no meio da noite
E sol depois da tempestade;
É rio que corre,
Para desaguar no mar
E semente que brota
Depois do inverno;
É dor que dói na alma
E paz que alivia
O coração;
É olhar que se perde
À distância
E os lábios que se aproximam
E se tocam
Na intimidade
Interminável
Da parceria;
É silêncio tranquilo na alma
E grito no coração;
É abrigo das tempestades
E chuva de verão
É choro de saudade
E abraço de reencontro;
É o fogo que aquece
E a brisa que refresca;
É centelha no olhar
E incêndio no peito;
É algema que prende
E chave que liberta;
É perdoar sempre
E magoar nunca;
É um segundo de angústia,
Que dura uma eternidade
E horas de alegria,
Que nunca duram o suficiente;
É o abraço que aquece na chegada
E aquele adeus que esfria a espinha;
É muita conversa
E muito silêncio;
São as canções compartilhadas
E as vozes em meio-tom;
É a dança em contratempo,
Atrapalhando os passos um do outro,
Numa brincadeira de dois;
É amadurecer juntos
E manter o coração de criança;
É tentar manter o sorriso,
Quando as lágrimas inundam a alma,
Com a dor do outro;
É aprender a voar,
Porque os pés
Já não tocam o chão;
É mergulhar num oceano
De incertezas,
Sabendo que vão navegar juntos,
Em qualquer tempo;
É segurar a mão do outro,
Quando o medo
Quer invadir os sentidos
E ser destemido
E avançar
Contra o desconhecido,
Porque a gente tudo pode
Quando está junto do outro…
É ser precioso,
Porque não pode ser diferente;
É ser gigante,
Porque não cabe ser pequeno;
Não é perfeito
E nunca vai ser,
Mas é paixão
E conforto,
Alegria,
Cumplicidade
E uma amizade terna
E eterna…

sábado, 10 de outubro de 2009

Platônico (Excerpt)

O meu amor
É um menino,
Construindo castelos
De areia
À beira do mar:
Mesmo que a maré
Destrua as fortalezas,
Sempre há disposição
Para voltar
A levantar paredes,
Antes que a noite chegue,
Antes que o sol
Se ponha,
- Em silêncio -
Dentro do oceano…
O meu amor é simples
Como as coisas simples
Devem ser:
Directo,
Leve,
Livre,
Despojado de posse,
Cheio de entusiasmo,
Repleto do poder
Da vida.
Assim como caminhar
Pelas madrugadas
Da cidade,
Com a cabeça
Cheia de músicas
E poemas
Nunca acabados,
Atento aos detalhes
De cada ruela,
Das flores
Nos jardins,
Das folhas secas
No Outono,
Meu amor observa
A vida,
Sem querer mudar
A intocável
Mutabilidade
Da natureza...

Hoje...

Hoje, eu sinto falta
Do vento
Que desalinha
Meus cabelos
E do perfume
De alfazema,
Nas urzes
Dos caminhos
Que teus pés
Trilharam.
Hoje, eu sinto falta
Do som
Das águas dos riachos,
A correrem,
Quase silenciosas,
Na direcção do mar
Do teu olhar.
Hoje, eu sinto falta
Do sorriso
Que é só teu,
- Aquela curva,
Suave,
No cantinho
Da tua boca –
Gravado,
Tão nitidamente,
Na minha memória.
Hoje, eu sinto falta
De ti,
Da tua voz,
Das tuas palavras,
Do teu breve contacto.
Hoje, eu sinto falta
De te ver,
De falar contigo,
De te sentir por perto,
De perceber
Que procuras, também,
Subtilmente,
Um sinal da minha presença.
Hoje, eu sinto
Uma saudade imensa
De ti!!!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Janelas

Tu abriste
Uma janela
Na minha alma,
Donde sai
A musicalidade
Das palavras
E, também,
O silêncio
- Tranquilo –
Das cores.
Tu abriste
Esta janela
No meu peito,
Donde voam
As borboletas,
Que agitam
Minhas entranhas,
Quando vejo
Um indício
Da tua presença,
A movimentar
A placidez
Das águas
Do meu espírito
Inquieto.
Tu abriste
Uma janela
Nos meus sentidos,
Para ver,
Através dos teus olhos,
A magnitude
Da beleza
Que a vida traz,
Em cada pequeno
Detalhe,
Que, nem sempre,
Prende minha atenção,
Quando passo,
Apressado,
Em busca
De mim mesmo.
Tu abriste,
Sem querer,
Esta janela
Na minha alma,
Para me mostrar,
Que tudo aquilo
Que entra,
Traz, consigo,
Um pouco
De ti
Para junto de mim
E, o que sai,
Leva, consigo,
Um pouco
De mim,
Para junto de ti…

Efeitos

Tuas palavras
Tem o efeito
De pétalas
Macias,
A cair,
Suavemente,
No meu coração;
De borboletas
Inquietas,
Em voo,
A roçar
No meu estômago;
De música
Nos meus ouvidos;
De perfumes
Incensando
A minha alma…
Tuas palavras
Tem o poder
De alegrar
Meus sonhos,
De alagar meus olhos,
De lavar minha alma,
De mitigar minha dor
E preencher
Os espaços vazios,
Deixados no meio
Da minha solidão…
Tuas palavras
São alívio
Para minha febre,
Abrigo para meu cansaço,
Chuva fresca
Caindo, abençoada,
No calor do verão…
Tuas palavras
Alimentam minha fome
De viver,
Saciam minha sede
De afeição,
Fulguram nos meus olhos
Como candeias
Na escuridão
Das noites…
Tuas palavras
Tem o poder
Curativo
De mil ervas
E a força
Genuína
Das verdades,
Que enchem meus olhos
Com esperança…
Tuas palavras
Quebram o silêncio
Que insiste
Em estacionar
No nosso meio
E fazem todo o resto
Que me cerca
Perder a significância…
Tu alegras minha vida
E preenches meus vazios,
Consolas meu sono
E abrandas o cansaço
Do meu corpo,
Nesta distância
Insuportável,
Que nos separa
De um abraço,
Que eu desejo muito
Há tanto tempo…